A revista dos consumidores franceses Que Choisir publicou um texto sobre a refundação da legislação europeia do medicamento, que terá sério impacto em todos os setores: na indústria, no setor distribuidor, na prescrição médica, na dispensa farmacêutica, no acesso e na bolsa dos doentes e utentes. Essencialmente, o que se prepara para garantir medicamentos mais disponíveis, mais acessíveis e mais abordáveis?
Parte-se da constatação de que o preço dos medicamentos tem aumentado, há penúrias recorrentes e o quadro de autorização de introdução no mercado é bastante rígido. Para que esta refundação seja bem-sucedida, a Comissão Europeia propõe dois textos: um centrado no desenvolvimento dos novos medicamentos e a sua colocação no mercado, e o outro centrado na gestão do abastecimento e nas missões que competem à Agência Europeia do Medicamento.
Irá procurar-se facilitar a montante da autorização de colocação do mercado reduzindo os chamados procedimentos administrativos a que são obrigados os fabricantes. Prevê-se a supressão da renovação da autorização de introdução no mercado, limitando esta reavaliação quinquenal, o que tem oposição de muitos críticos, já que esta reavaliação permite integrar novos dados sob os efeitos indesejáveis e o interesse terapêutico do medicamento. É essa a opinião de Rita Kessler, encarregada de comunicação da revista independente Prescrire (reconhecida a nível mundial pelo seu rigor e isenção), que diz mesmo que a reavaliação limitada se revela perigosa tendo em conta o número de autorizações aceleradas, e constata haver um paradoxo de fundo nesta medida prevista pela Comissão, já que esta insiste na importância da avaliação ao longo do ciclo de vida do medicamento e na tomada em conta dos dados da vida real na avaliação.
A Comissão Europeia promete também reduzir a duração do exame de um dossiê pela Agência Europeia até 180 dias, contra 210 que é o prazo atual. Serão suprimidas algumas comissões nesse processo de exame e reforçados os meios noutros setores para permitir atingir este objetivo. Novo reparo da Prescrire: “Avaliar seriamente os dados farmacêuticos, toxicológicos e clínicos referentes a um novo medicamento exige um tempo que não deve ser comprimido.”
Também neste mesmo espírito de simplificação os constrangimentos regulamentares deverão ser aligeirados. Assim, será facilitada a realização de ensaio clínicos adaptativos. Popularizados para os ensaios do tratamento contra a covid-19, têm por característica adaptar a repartição dos doentes voluntários em função dos resultados obtidos no decurso do estudo. Se este método pode ser benéfico para os doentes, o que não há garantias, pode também ameaçar a integridade dos resultados finais. Acontece que o rigor dos ensaios apresentados aquando dos pedidos de autorização é já problemático.
Medida determinante desta reforma, a duração de exclusividade dos novos medicamentos fica reduzida a 8 anos, contra os atualmente 10 anos, isto com o fim de acelerar a chegada dos medicamentos genéricos/biossimilares sobre o mercado. Mas os fabricantes terão mesmo assim a possibilidade de apanhar mais uns meses ou anos de proteção do mercado desde que preencham algumas condições. Entre elas, a comercialização do medicamento num conjunto de Estados-Membros, a realização de ensaios clínicos comparativos ou ainda a possibilidade de tratar diferentes patologias com o mesmo medicamento. No total, os fabricantes poderão obter até 12 anos de exclusividade (13, se o tratamento visar uma doença rara), a possibilidade de dispor de versões genéricas ou biossimilares dos medicamentos corre o risco de ser afetada por estas disposições.
Para olhar dos interesses dos doentes e utentes, deve-se saudar algumas imposições suplementares para os fabricantes. Eles passarão a ter a obrigação de tornar públicos os financiamentos diretos decorrentes de fundos públicos ou de organismos financiados por estes. Esta informação poderá pesar nas negociações sobre os preços, esta é a expetativa da Comissão. A avaliação dos riscos ambientais, que já é obrigatória, poderá ser conhecer uma melhor utilização. A autorização poderá assim ser recusada se o laboratório não fornecer “as provas de que os riscos ambientais foram avaliados e que as medidas de atenuação dos riscos foram tomadas”.
No que toca à questão das penúrias de medicamentos, o papel de vigilância dos Estados-Membros e da Agência Europeia do Medicamento será reforçado, também os fabricantes deverão elaborar um plano de prevenção e notificar antecipadamente as penúrias. Uma lista de medicamentos críticos deverá ser igualmente elaborada. Porém, o impacto destas medidas fica por demonstrar. Dê-se como exemplo que não fica estabelecida nenhuma obrigação de stock mínimo.
Por fim, a reforma da legislação farmacêutica passa por uma restruturação da Agência Europeia do Medicamento: menos comissões, mais trocas de informações com os fabricantes a montante do pedido de autorização. Será reforçada a atividade de aconselhamento qualificada de “suporte científico à medida”. Parecer científicos precoces serão emitidos, mesmo anos antes de se depositar um pedido de autorização. Mas há críticas, dizendo que a questão da pertinência dos dossiês ou da solidez das provas não parece uma questão central, Rita Kessler observa que depois dos anos 2010 as publicações científicas revelam o cada vez mais fraco nível de exigência das agências do medicamento no processo de outorga na autorização de introdução do mercado.
A concluir, existem sérias reservas sobre a transparência da atividade de conselho e até de recomendações escritas, há que enquadrar e exigir o maior rigor na transparência nesta atividade de conselho, este aspeto é uma grande ausente da reforma que começa agora a dar os seus passos.
O autor sente-se perfeitamente identificado com as apreciações feitas pela revista Qui Choisir sobre esta matéria.