Periodicamente, o tema ressuscita.
Cerca de oito anos depois de adotada pelo Diário da República e pelos serviços de tradução portuguesa das instituições europeias; utilizada correntemente pelas três maiores estações de televisão e pela maior parte da imprensa escrita de Portugal; ensinada desde há anos nas escolas (o que significa haver já uma geração de jovens portugueses que não sabem escrever de outra maneira) — a ortografia resultante do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) continua a ser cavalo de batalha numa polémica que tem tanto de estéril quanto de desgastante.
Mesmo depois de demonstrado o caráter falacioso da argumentação que Vasco Graça Moura inaugurou e outros aproveitaram — um «facto» não é um «fato», um «pacto» não é um «pato», um «cágado» não se confunde com algo malcheiroso —, figuras públicas da sociedade portuguesa (da parte das quais seriam de esperar maior rigor e conhecimentos mais exatos) continuam a repescá-la.
José Pacheco Pereira — que emprega palavras como know-how, bullying, media, likes; que recorre a termos como «instrumental» (colagem ao inglês instrumental, que, em português, se traduziria por «útil»), «municipalidade» (colagem ao francês municipalité, que, em português, se traduziria por «município»), «adquirido» (colagem ao francês acquis, que, em português, se traduziria por «acervo» ou por «conquistas»); que utiliza o verbo «falar» em lugar do verbo «dizer»; que transforma verbos reflexos em verbos intransitivos («a situação começa a acalmar»); que emprega neologismos escusados como «exce[p]cionar» (descurando o consagrado «exce[p]tuar»); que constrói frases à inglesa («Várias prisões foram feitas… notícias contraditórias chegavam à polícia», quando, classicamente, o português usaria inversões: «Foram feitas várias prisões… chegavam à polícia notícias contraditórias») ; e que, num programa da série Quadratura do Círculo, ouvi explicar que «adolescentes» queria dizer teenagers (não, não foi o contrário!) — compara o AO90 a uma «perda de identidade» e a um «abastardamento da língua». Não discuto os méritos de Pacheco Pereira enquanto historiador, mas discuto as suas incongruências quando declara um quixotesco combate ao que não passa de mero ajuste da ortografia (como tantos que houve ao longo da história da língua e que consiste, maioritariamente, em se suprimirem consoantes mudas ). Causas mais gloriosas não lhe faltariam.
Considerar que um ajuste da ortografia, baseado essencialmente na supressão de consoantes mudas, constitui um «abastardamento», uma «perda de identidade», é no mínimo deplorável — sobretudo se atendermos a que os próprios falantes da língua portuguesa estão a transformá-la numa espécie de esperanto atabalhoado , invadindo-a insolentemente com palavras americanas para as quais o nosso léxico contém alternativas consagradas (logo, mais inteligíveis). Amiúde por puro exibicionismo, diz-se target em vez de «alvo» ou «meta», coach em vez de «treinador», training em vez de «formação», break em vez de «intervalo», benchmarking em vez de «aferição comparativa», assets em vez de «ativos», players em vez de «intervenientes», chef em vez de «chefe», shopping center em vez de «centro comercial», sponsoring em vez de «patrocínio», deadline em vez de «prazo», stakeholder em vez de «parte interessada», turning point em vez de «ponto de viragem», meeting point em vez de «ponto de encontro», submeter em vez de «enviar», «entregar» ou «apresentar» (por tradução acrítica do inglês to submit), suportar em vez de «apoiar» (por tradução acrítica do inglês to support)… e fico-me por apenas alguns exemplos do verdadeiro «abastardamento», da verdadeira «perda de identidade».
Do mesmo modo, se seria descabido contestar os méritos de António Vitorino de Almeida enquanto compositor, permito-me pôr em causa uma afirmação sua, num programa da série 5 para a Meia-Noite, há alguns anos, de que a palavra «espetador» se confundia com «esp’tador»: lembro que «esquecer», «arrefecer» e «padaria» não se pronunciam «esq’cer», «arref’cer» ou «pâdaria» — ou seja, há vogais que se «abrem», independentemente de a sua oralidade ser assinalada por acentos ou outros diacríticos. Se para abrirmos o segundo «e» de «espetador» tivermos de lhe acrescentar um «c» mudo, então teria lógica escrevermos «esqueccer», «arrefeccer» e «pacdaria», subentendendo-se que aqueles «cc» seriam mudos e só serviriam para abrir a respetiva vogal antecedente.
José Pedro Vasconcelos (apresentador do dito 5 para a Meia-Noite) ironizou com a (por ele suposta) nova ortografia «egícios» (brilhante suposição a que terá chegado na sequência de o AO90 ter introduzido a grafia «Egito»). Ora, nunca o AO90 impôs a aberração «egícios», porquanto o seu objetivo não é alterar a pronúncia, mas sim adaptar a escrita à pronúncia — logo, se na pronúncia de «egípcios» há um «p», também na sua ortografia continua a havê-lo.
Por sua vez, Ricardo Araújo Pereira, ao mesmo tempo que apela a que «não toquem na [sua] língua», sustenta que a grafia «arquitetas» implica, por força, o fechamento da vogal «e» para [ê], com a inevitável (e jocosa) ambiguidade de sentido que daí resultaria. Ora, o fechamento do «e» em «arquitetas» é tão forçoso como em «netas» (a ninguém passa pela cabeça que, na frase «a avó foi passear as netas», a última palavra se pronuncie nêtas). Em português, independentemente do AO90, verificam-se há muito ambiguidades ortográficas, em consequência das quais nem sempre é evidente o fechamento ou a abertura de vogais: por exemplo, na palavra «segredo», o segundo «e» será aberto [è] se se tratar de uma das formas do verbo segredar, mas será fechado [ê] se se tratar de um substantivo («eu segredo um segredo»); na palavra «almoço», o segundo «o» será aberto [ò] se se tratar de uma das formas do verbo almoçar, mas será fechado [ô] se se tratar de um substantivo («eu almoço à hora de almoço»); na palavra «cor», o «o» será aberto [ò] se se tratar do substantivo designativo de memória (por «coração»), mas será fechado [ô] se se tratar do substantivo designativo da impressão cromática («conheço de cor aquela cor»); na palavra «topo», o primeiro «o» será aberto [ò] se se tratar de uma das formas do verbo topar, mas será fechado [ô] se se tratar de um substantivo («eu topo tudo no topo»); na palavra «pega», o «e» será aberto [è] se se tratar de uma das formas do verbo pegar, mas será fechado [ê] se se tratar do substantivo designativo de certos corvídeos («pega aí a pega»); o mesmo com a palavra «exagero», na qual o segundo «e» será aberto [è] se se tratar de uma das formas do verbo exagerar, mas será fechado [ê] se se tratar de um substantivo («eu exagero com grande exagero»); o mesmo com a palavra «coma», na qual o «o» será fechado [ô] se se tratar de uma das formas do verbo comer, mas será nasalado [õ] se se tratar do substantivo designativo de um estado de inconsciência («ora coma, se não quer entrar em coma»). E muitos mais exemplos haveria. Só pelo sentido e pelo contexto podemos decidir-nos por uma pronúncia ou pela outra.
No fundo, a oposição às novas regras ortográficas do português assenta, maioritariamente, em equívocos e fantasmas. A ortografia do português sofreu constantes reformas ao longo da História. A quem passa pela cabeça que, no tempo de D. Dinis, se escrevia como imediatamente antes deste chamado «Acordo Ortográfico de 1990»? E nem precisaríamos de recuar à época de D. Dinis, bastando quedarmo-nos pela de Camilo Castelo Branco (ou melhor, «Camillo Castello-Branco»).
As regras pelas quais se pautam os mais acérrimos adversários do AO90 são as de uma reforma de 1945 (revista em 1973). E já antes dessa houvera a de 1911, causadora de violentíssimas polémicas nos jornais da época, com desafios para duelo e ameaças de bengalada. Nesse tempo, escrevia-se «lyrio», «mechanico», «photographico», «auctor», «Christo», «portugueza», «illustração». Fernando Pessoa ateve-se sempre à «pharmacia» e ao «cagado», porque nessa altura as esdrúxulas (ou proparoxítonas) não levavam acento gráfico (ou «graphico»?).
Já ouvi, em inquérito de rua, uma telespetadora dizer, em categórico tom proclamatório, que estava a ler o último livro de Saramago em inglês, porque não suportava lê-lo «em acordês». Seria caso para lhe perguntar se também lia Pessoa numa qualquer tradução: é que, no seu tempo, Pessoa se ergueu acerrimamente contra a reforma ortográfica de 1911, por via da qual a escrita do português sofreria uma transformação muito mais drástica do que a atual. Acresce que, antes de chegar à versão imediatamente anterior à do AO90, a ortografia sofreu ainda a reforma de 1945. Portanto, o Pessoa que hoje a dita telespetadora eventualmente lê distancia-se muito mais do Pessoa original do que o Saramago pré-AO90 se distancia do Saramago pós-AO90.
Um outro argumento, dos mais conspícuos, tem a ver com a grafia, imposta pelo AO90, da terceira pessoa do singular do verbo «parar» no indicativo presente: «ele/ela pára» passou para «ele/ela para». Portanto, na frase, exemplificativa, «chuva para Lisboa», ficar-se-ia sem saber se se prevê chuva para a cidade de Lisboa ou se esta última ficou parada devido a uma copiosa precipitação. É certo, mas eu atrever-me-ia a alvitrar que a ambiguidade da frase «chuva para Lisboa» poderá ser vista mais como um trocadilho apetecível do que como uma inconveniência a evitar. Quero dizer, concretamente, que um título de jornal como aquele poderia ser propositado, precisamente para incitar à leitura da notícia. Seria, também, o caso de um título como «Empresários com sede no deserto»: o leitor sentir-se-ia tentado a procurar no texto da notícia se se tratou de empresários que, em viagem pelo deserto, não se tinham devidamente munido de líquidos, ou de empresários que sediaram as suas empresas (de safáris, por exemplo) no próprio deserto.
Ainda no âmbito das ambiguidades inócuas: alguns dos leitores talvez se lembrem de uma peça de teatro, de há umas boas dezenas de anos, intitulada Um zero à esquerda; havia ali uma ambiguidade propositada, porquanto esta expressão tanto pode ser tomada, seriamente, no seu significado matemático como, maliciosamente, com um sentido político.
A ambiguidade entre «para» [à] e «para» [â] não é mais grave do que a ambiguidade — há muito existente — entre «sede» [ê] e «sede» [è]. A diferença é que a possível ambiguidade entre «para» [à] e «para» [â] é uma novidade resultante do AO90, ao passo que a possível ambiguidade entre «sede» [ê] e «sede» [è] já existia (tal como muitas outras), por imposição do Acordo Ortográfico de 1945, quando aprendemos a escrever.
De resto, a ambiguidade entre «para» [forma verbal] e «para» [preposição] existe há muito no Brasil, com tantos (ou tão poucos) efeitos «nefastos» como a ambiguidade entre «sede» [ê] e «sede» [è] que, tal como muitas outras, há muito existe em Portugal: com efeito, os brasileiros, embora utilizem uma única grafia para ambas as palavras («para»), pronunciam-nas de modo inequivocamente distinto: a forma verbal «para» pronuncia-se pàra, a preposição «para» pronuncia-se sempre (mas sempre!) prà .
E note-se que o «problema» não se restringe à língua portuguesa. Um dia, deparei-me com um texto relativo ao livro The cosmic race (versão inglesa de uma obra do mexicano José Vasconcelos Calderón). Tratar-se-ia de uma «corrida cósmica»? Só ao cabo de alguns parágrafos me dei conta de que o autor se referia aos povos iberoamericanos, de língua espanhola e portuguesa, que designava por «raça cósmica», porque, em sua opinião, resultavam de um cadinho de todas as raças e etnias que compõem a Humanidade.
Rematando a minha refutação de que a ambiguidade resultante de uma homografia para as palavras «para» [forma verbal] e «para» [preposição] constitua um problema intransponível, citarei um exemplo extraído de um jornal ecologista poucos anos após a democratização de 25 de abril de 1974: em determinado artigo escolheu-se o título «Uma experiência de recuperação de bufos»; à primeira vista, houve quem se interrogasse se a experiência tinha a ver com a «reciclagem» dos denunciantes a que recorria a recentemente extinta polícia política; ora, na verdade, tratava-se de recuperar (para o habitat natural) espécimes, por algum motivo a ele subtraídos, da espécie Bubo bubo, que os especialistas designam como «mocho-real» mas que, em português vernáculo, tem o nome genérico de «bufo». A ambiguidade fora propositada, no sentido de «apimentar» o título e, desse modo, despertar a curiosidade para o texto.
Retomo agora o «Egito» e os «egípcios», para discutir um outro frequente argumento dos opositores à nova ortografia: todas as palavras de uma mesma família etimológica deveriam conservar as consoantes de origem, ainda que não se pronunciassem. Assim, o topónimo «Egipto» deveria continuar a escrever-se com «p» (embora não pronunciado) por uma espécie de solidariedade etimológica com o correspondente gentílico, «egípcio». Ora, isto é esquecer que, só no domínio dos topónimos e respetivos gentílicos, há inúmeros casos de divergência, com o gentílico a manter-se mais próximo do étimo (latino ou latinizado, na maioria dos casos). Com efeito, dizemos «Braga» mas «bracarense», «Bragança» mas «brigantino», «Chaves» mas «flaviense», «Évora» mas «eborense», «Guimarães» mas «vimaranense», «Idanha» mas «egitanense», «Lamego» mas «lamecense», «Lisboa» mas «lisbonense», «Penafiel» mas «penafidelense».
É que, em tempos, havia uma cidade chamada «Bracara», cujos habitantes eram, logicamente, «bracarenses»; entretanto, o topónimo evoluiu para «Braga» mas o gentílico continuou a ser «bracarense». Do mesmo modo, em tempos, havia uma cidade chamada «Brigantia», cujos habitantes eram, logicamente, «brigantinos»; entretanto, o topónimo evoluiu para «Bragança» mas o gentílico continuou a ser «brigantino». Havia uma cidade chamada «(Aquae) Flaviae», cujos habitantes eram, logicamente, «flavienses»; entretanto, o topónimo evoluiu para «Chaves» mas o gentílico continuou a ser «flaviense». Havia uma cidade chamada «Ebora», cujos habitantes eram, logicamente, «eborenses»; entretanto, o topónimo evoluiu para «Évora» mas o gentílico continuou a ser «eborense». Havia uma localidade chamada «Vimaranes» (propriedade da condessa Mumadona Dias), cujos habitantes eram, logicamente, «vimaranenses»; entretanto, o topónimo evoluiu para «Guimarães» mas o gentílico continuou a ser «vimaranense». Havia uma cidade chamada «Egitania», cujos habitantes eram, logicamente, «egitanenses»; entretanto, o topónimo evoluiu para «Idanha» mas o gentílico continuou a ser «egitanense». Havia uma cidade chamada «Lamecum», cujos habitantes eram, logicamente, «lamecenses»; entretanto, o topónimo evoluiu para «Lamego» mas o gentílico continuou a ser «lamecense». Havia uma cidade chamada «Olisippo», que evoluiu sucessivamente para «Olissipona» e «Lisbona»; os habitantes de «Lisbona» eram, logicamente, «lisbonenses»; entretanto, o topónimo evoluiu para «Lisboa» mas o gentílico continuou a ser «lisbonense» (que coexiste com a forma mais popular «lisboeta»). E havia uma localidade chamada «Pena Fidelis», cujos habitantes eram, logicamente, «penafidelenses»; entretanto, o topónimo evoluiu para «Penafiel» mas o gentílico continuou a ser «penafidelense».
Pela mesma ordem de ideias, seriam «ilógicas» as formas «Chipre»/ «cipriota»: o topónimo original, «Kýpros», teve uma evolução distinta da do correspondente gentílico. E seriam «ilógicas» as formas «Cádis»/ «gaditano»: o topónimo original, «Gadir», teve uma evolução distinta da do correspondente gentílico. É também o caso de «Salamanca»/ «salmantino».
No caso em apreço, temos um país, de capital no Cairo, geograficamente coincidente com um império da Antiguidade chamado «Egipto», cujos habitantes eram, logicamente, «egípcios». Entretanto, o topónimo evoluiu para «Egito» mas o gentílico continuou a ser «egípcio». Se há aqui contrassenso, então rebatizem-se imediatamente Braga, Bragança, Chaves, Évora, Guimarães, Idanha, Lamego, Lisboa e Penafiel com os seus nomes de há mil ou dois mil anos. Insistir em escrever «Egipto» embora pronunciando «Egito» faz tanto sentido como insistir em escrever «Bracara» embora pronunciando «Braga».
Nas estirpes etimológicas, é por vezes notória a deriva das palavras mais usadas (e, portanto, mais «desgastáveis») relativamente às palavras-irmãs: embora provindo de um étimo comum (regra geral, latino ou latinizado), as palavras mais utilizadas são também mais erodidas (evolução por via popular), num fenómeno que se traduz pelo abrandamento de consoantes («p» para «b», «t» para «d», «c[k]» para «g», «c[s]» para «z»), pela palatalização de pares de consoantes («cl»/«fl»/«pl» para «ch»/«lh»), pela aglutinação de sílabas, enfim, pela supressão pura e simples de consoantes, ao passo que as palavras menos utilizadas da mesma linhagem se mantêm muito mais próximas do étimo, com a adaptação idiomática que a evolução por via erudita constitui: abelha, mas apicultor; agudo, mas acutilante, acutângulo; chama, mas flamejante, inflamar; idade, mas etário, coetâneo; e um imenso etc…
Texto com adaptações em relação ao inicialmente publicado em A Folha — boletim da língua portuguesa nas instituições europeias, n.º 53 (primavera de 2017) https://ec.europa.eu/translation/portuguese/magazine/documents/folha53_pt.pdf
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