O ensaio que acompanha uma nova exposição em Lisboa está a gerar debate sobre memória histórica e responsabilidades no presente. O texto, assinado por Eliane Brum, a mais premiada jornalista brasileira, coloca a discussão num plano coletivo e transnacional, tema que tem alimentado posições contrastantes. Num dos eixos centrais do ensaio, a autora confronta a ideia de herança partilhada e escreve sobre como a jornalista brasileira culpa Portugal em termos coletivos pelas consequências da colonização.
No centro do texto “Carta de Desfundação do Brasil — Dirigida aos descendentes dos súditos do Rei Dom Manuel I”, Brum sustenta: “individualmente, cada português não é culpado pelo que seus antepassados fizeram. Como seriam, se nem estavam vivos naqueles anos? Mas coletivamente, sim, são responsáveis”. Entre os exemplos que apresenta estão a apropriação de terras indígenas e a escravidão, que, na sua leitura, produziram efeitos duradouros. A autora enuncia que aceitar os benefícios legados pelo passado implica reconhecer, no mesmo plano coletivo, os respetivos custos humanos.
Debate sobre responsabilidade coletiva
Brum argumenta que “o que os homens portugueses começaram a fazer aqui tão logo colocaram as suas botas” resultou na construção de “ruínas”, numa formulação que associa violência colonial e efeitos acumulados. A autora vincula ainda responsabilidades a outras potências europeias envolvidas na expansão, como Espanha, Inglaterra e França. Na mesma linha, defende que a aceitação de “pau-brasil e ouro” que ergueram monumentos e património requer, em coerência, aceitar “os assassinatos” que os acompanharam.
Ao mesmo tempo, a jornalista inclui-se no balanço ético que propõe, afirmando: “Eu, mulher branca, descendente de imigrantes italianos esfomeados também carrego a minha [responsabilidade]”. O gesto serve para enquadrar a responsabilidade como condição histórica que atravessa fronteiras de nacionalidade. No fecho da carta, Brum estende um convite ao diálogo: “Precisamos de vocês, descendentes dos invasores, para barrar a destruição dos brasis.”
Exposição na Gulbenkian e posição institucional
O ensaio integra o catálogo da exposição “Complexo Brasil”, que abre ao público na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. A instituição sublinha a relevância do debate e, segundo uma porta-voz, não assume posição sobre o conteúdo do texto. A expectativa é a de “maior amplitude de debate”, preservando o espaço para a discussão pública e o confronto de ideias.
A inclusão do ensaio num contexto expositivo visa enquadrar a reflexão sobre passado e presente em registos artísticos e documentais. A opção curatorial procura, assim, ativar leituras múltiplas, colocando em relação testemunhos, arquivos e interpretações de contemporâneos.
Contexto político recente
A discussão sobre colonialismo e herança histórica tem ecoado noutras frentes. Nas comemorações dos 50 anos de independência de Angola, o Presidente João Lourenço afirmou que o colonialismo português “oprimiu e escravizou durante séculos” o povo angolano. Em reação, o presidente do Chega, André Ventura, anunciou que proporia um voto de condenação no Parlamento, criticando também o Presidente de Portugal por não se ter demarcado.
Estes episódios enquadram a receção pública do ensaio de Brum num ambiente de alta sensibilidade política. A controvérsia evidencia como o tema mobiliza leituras opostas sobre memória, responsabilidade e reconciliação.
Linguagem, memória e herança comum
A tese de Eliane Brum articula o vínculo entre benefícios materiais herdados e responsabilidades partilhadas. Ao insistir no plano do “nós”, a autora defende que a discussão não se fecha em culpas individuais, mas opera na esfera do comum. É nesse quadro que reaparece a formulação de que a jornalista brasileira culpa Portugal em chave coletiva, como parte de um retrato mais amplo de processos históricos e dos seus efeitos.
Para a autora, o reconhecimento desse legado é pré-condição para enfrentar problemas contemporâneos, da proteção de povos indígenas à crise ambiental na Amazónia. A carta, escrita a partir de Altamira, cidade onde Brum vive, liga a crítica do passado às urgências do presente.
A abertura de “Complexo Brasil” em Lisboa tende a ampliar a discussão em círculos culturais, académicos e cívicos. A exposição e o seu catálogo colocam os visitantes perante um conjunto de documentos e interpretações que pedem leitura informada e confronto crítico. O objetivo é gerar uma conversação sustentada sobre responsabilidade, justiça histórica e futuro comum.
Num cenário marcado por posições divergentes, a proposta do ensaio assenta na ideia de que o reconhecimento do passado pode orientar escolhas no presente. Entre acordos e desacordos, o efeito imediato é a reativação de um debate que atravessa fronteiras e que, inevitavelmente, continuará no espaço público.
















