Terminei o primeiro artigo com esta asserção “E é aqui, justamente, que se revelam as consequências do atual dissenso político europeu, ao não reconhecer, nesta oportunidade singular, a importância fundamental de um governo dos comuns europeus e, em vez disso, deixar-se arrastar para uma nova tragédia dos comuns ou, então, para mais uma simples política de resgate e reparação de danos”.
Volto a um tema que insisto em considerar uma das missões mais fundamentais e, também, mais crítica do projeto político europeu para os próximos anos. Refiro-me aos impactos diretos das grandes transições e a gestão dos seus efeitos indiretos, positivos e negativos, ou externalidades. Sem qualquer dúvida, a Europa passará nos próximos anos por grandes transições – climática, energética, ecológica, digital, demográfica, migratória, socio-laboral, geopolítica – e esta será, já é, uma tarefa extraordinariamente complexa e exigente que, só por si, revela bem a duplicidade deste grande projeto. Se, como dita o artigo 1º do Tratado de União Europeia, prevalecer uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa, o projeto sairá vencedor. Se, pelo contrário, a união for titubeante, defensiva e calculista o projeto sairá, muito provavelmente, perdedor.
É nesta espécie de limbo que nos encontramos hoje. Senão, vejamos. Há Estados membros muito preocupados com o volume de divida pública e privada acumulado durante os últimos anos, a França é o melhor exemplo. Os sinais de crise iminente crescem todos os dias. A guerra da Ucrânia e a sua reconstrução, as futuras relações com o vizinho russo, uma nova crise de ajustamento macroeconómico na zona euro, a ocorrência de acidentes graves devidos às alterações climáticas, a emergência de uma nova crise pandémica, crises de segurança em consequência de ciberataques e biopirataria, novas crises migratórias, a desestruturação socio-laboral devido aos impactos da transformação digital e da inteligência artificial, crises geopolíticas motivadas pela falta de confiança e cooperação internacionais, crises geoestratégicas em resultado do crescente poder hegemónico da China na zona do Indo-Pacífico. Todas estas crises desencadeiam uma dupla leitura, europeia e nacional, mas a única certeza neste momento são os choques assimétricos e os efeitos externos sobre países, economias e regiões mais vulneráveis do espaço europeu.
Aqui chegados, é preciso prevenir e acautelar que alguns factos ocorram efetivamente e promover aqueles que gostaríamos que, de facto, acontecessem. Se assim for, teremos reduzido o impacto dos seus efeitos externos ou externalidades, sobretudo, as negativas.
Em primeiro lugar, é preciso impedir que, depois das guerras da Ucrânia e do Médio Oriente, possa eclodir uma terceira guerra, agora na região do Indo-Pacífico, seja entre as duas Coreias, a Coreia do Norte e o Japão, a China e Taiwan, a China e os seus vizinhos no que diz respeito à soberania dos mares do sul da China. Entretanto, aumenta a pressão da China sobre Taiwan, como manifestação de retaliação e poder territorial face à política norte-americana de protecionismo comercial e tecnológico, uma vez que Taiwan é um fornecedor importante de microchips e semicondutores para a economia americana e ocidental.
Em segundo lugar, é preciso impedir que nas negociações de paz a Ucrânia e a União Europeia sejam os atores secundários. Para condicionar e impedir a convergência geoestratégica entre a Rússia e a China há sinais suficientes de que a presidência americana vai promover uma paz à custa da Ucrânia e com encargos acrescidos para a União Europeia no que diz respeito à interposição de forças de paz e segurança na Ucrânia, assim como a reconstrução do território ucraniano. Em cima da mesa de negociações estão os pacotes de sanções à Federação Russa, as condições de adesão da Ucrânia à Nato e União Europeia, o estatuto político transitório dos territórios ocupados, as garantias de segurança territorial oferecidas à Ucrânia, um pacote de ajudas de pré-adesão à reconstrução da Ucrânia, uma nova política de vizinhança entre a Federação Russa e a União Europeia.
Em terceiro lugar, é preciso evitar que as dificuldades da política transatlântica, assim como da relação bilateral e multilateral com a China, aumentem a tensão geoestratégica e geopolítica europeia. Não há, ainda, um acordo evidente quanto à política de segurança e defesa europeia, enquanto a instabilidade governativa e o fraco crescimento da economia europeia não facilitam as transações políticas no seio da União. O multilateralismo global e o institucionalismo europeu cedem o lugar às diligências intergovernamentais e bilaterais. Registe-se, entretanto, como ponto positivo a relação triangular entre o Reino Unido, a França e a Alemanha em matéria de segurança e defesa.
Em quarto lugar, é preciso promover, a todo o custo, o arranque efetivo do Plano Draghi, pois o impacto das suas externalidades positivas é indiscutível. Lembremos as suas duas condições: um acordo político suficiente entre os Estados membros para mobilizar e emitir sob a forma de dívida conjunta uma parte substancial dos 750/800 mil milhões propostos no Relatório Draghi e, por outro lado, um acordo político com a Federação Russa para um cessar-fogo que permita iniciar um período de negociações e, ao mesmo tempo, lançar um programa de reconstrução para a Ucrânia. Uma vez a guerra congelada, as negociações com a Federação Russa podem começar, pois todos precisam de um compasso de espera para resolver problemas internos. Um acordo político mínimo obtido pelo Conselho Europeu talvez permita lançar, ainda em 2025, uma versão reduzida do Plano Draghi.
Em todos os casos, a União Europeia deve evitar que a sua relação bilateral e multilateral com a China seja descontinuada e que a Rússia e a China formem uma frente comum antiocidental. Ora, esta eventual descontinuação sino-europeia é indissociável do que acontecer nos próximos meses na fronteira leste europeia. Um acordo de cessar-fogo na Ucrânia é, portanto, fundamental para serenar os ânimos. No mesmo sentido, é essencial impedir que a guerra não regresse ao Indo-Pacífico e que os proxies dos EUA e da China não sejam as próximas vítimas de uma nova guerra global.
Acresce que, num plano mais operacional, como, de resto, se comprova com a atual execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), os efeitos externos ou externalidades têm tempos de vida e horizontes temporais muito diferenciados, um desdobramento muito atribulado e contraproducente e os seus impactos cruzados transformam os atos de gestão de medidas de política em operações de uma elevada complexidade que, muitas vezes, não se compadecem com as estruturas verticais e sectoriais de um Estado-administração convencional.
Em jeito de síntese, vejamos algumas externalidades mais importantes e como elas implicam com a governação multiníveis da União Europeia:
– Em primeiro lugar, importará saber em que medida os novos atos normativos europeus sobre mercados e serviços digitais irão ser utilizados pela União Europeia no equilíbrio de poderes e relações com os EUA e a China, não apenas para evitar qualquer risco de colisão grave com as grandes tecnológicas americanas e chinesas, mas, sobretudo, para preparar o plano de investimentos e a cooperação nesta área crucial da política europeia;
– Em segundo lugar, uma externalidade importante diz respeito à forma como os interesses financeiros da União Europeia estão a ser salvaguardados: os novos recursos próprios, a emissão de dívida conjunta e a reorganização do mercado de capitais europeu, mas, também, os problemas de soberania e extraterritorialidade em matéria de evasão e fraude fiscais, o combate à corrupção e a prevenção em matéria de segurança cibernética;
– Em terceiro lugar, e tendo em conta a situação geopolítica atual e futura, como deve a União Europeia reapreciar a globalidade dos seus interesses comerciais e considerar a sua pretendida reindustrialização à luz das novas relações transatlânticas, do acordo de proteção de investimentos com a China e, ainda, das relações de comércio e investimento com a India após o acordo de princípio já obtido;
– Em quarto lugar, é preciso estar atento às alterações do semestre europeu e aos critérios europeus de condicionalidade financeira e seus efeitos externos sobre a estrutura da despesa pública e dos benefícios fiscais (despesa fiscal), de modo a não prejudicar, por um lado, o programa de investimentos públicos e, por outro, o lançamento do mercado de capitais e os instrumentos de recuperação, aquisição, fusão e concentração de empresas;
– Em quinto lugar, uma alteração de política com alguns efeitos cruzados e contraditórios diz respeito à revisão da estrutura regulatória e concorrencial, nos planos europeu e nacional; é preciso evitar que as grandes transições (a lei do clima e a descarbonização, a transformação digital) não criem efeitos assimétricos graves e novas discriminações em matéria de competitividade, em especial as que decorrem do impacto das regras ESG (environment, social, governance) sobre a rentabilidade e a governança empresariais;
– Em sexto lugar, as novas metas e indicadores do pilar social europeu precisam de ser administradas com muito cuidado para evitar que se agrave o círculo vicioso que associa as desigualdades sociais, a pobreza, os fluxos migratórios e a falta de investimento público em habitação, saúde e educação, mas, também, as novas externalidades negativas em resultado da desmaterialização de processos e procedimentos da nova administração digital e inteligente que se traduzem numa redução progressiva do emprego público;
– Em sétimo lugar, é imprescindível que, em nome do pilar europeu da coesão territorial, seja atribuída uma preferência política à Europa das regiões, às redes de cidades, aos agrupamentos europeus de cooperação territorial e às macrorregiões europeias: em conjunto e por via de plataformas colaborativas podem administrar, de modo mais eficaz, os efeitos externos negativos através de programas de acolhimento de imigrantes, formação de ativos, proteção social, promoção de emprego e serviços de proximidade;
– Em oitavo lugar, as questões geopolíticas de comércio e segurança internacionais parecem, cada vez mais, associadas à definição de novas áreas de influência, no momento em que entrámos, claramente, num período pós-ocidental; as guerras tarifárias do presidente americano ameaçam criar uma frente comum antiocidental que a Europa precisa de evitar a todo o custo, veja-se, por exemplo, a ameaça das chamadas sanções secundárias e os efeitos cruzados que ela pode provocar.
Aqui chegados, a economia-mundo atingiu um tal grau de interdependência e interação que qualquer vetor desencadeia de imediato riscos e efeitos de ricochete por todo o lado. A covid 19 é a demonstração disso mesmo. Ou seja, não resolveremos, em definitivo, nenhum dos grandes problemas enunciados se não tratarmos de curar, também, da sociedade dos riscos globais em que vivemos. Por isso mesmo, é imperioso regressar a uma agenda dos bens públicos globais, a uma globalização benigna, uma missão conjunta que a Europa poderia promover junto dos seus parceiros globais.
Neste sentido, parece-nos imprescindível criar uma estrutura de observação com a missão de antecipar e prevenir, por um lado, e mitigar e adaptar, por outro, as tendências pesadas das grandes transições e as entropias, assimetrias e disfunções destas grandes realizações, de tal modo que os alertas e avisos e a sua correção sejam feitas em tempo útil. A agenda dos bens públicos globais e a globalização benigna poderiam funcionar como agenciamentos positivos de uma nova fase de cooperação internacional.
Artigo publicado no Observador.
Leia também: União Europeia, governo dos comuns e gestão de externalidades (I) | Por António Covas

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