Estamos no outono de 2025. No plano global, a história e a geografia voltam a estar frente a frente. Perante o impasse político que vive hoje a União Europeia, a qualquer momento pode eclodir um facto grave e precipitar uma crise de consequências imprevisíveis. Sempre foram os fatores externos a determinar os grandes momentos do projeto europeu. Hoje, os bons pretextos abundam: as alterações climáticas, os fluxos migratórios, os estados falhados, o terrorismo internacional, as guerras do Médio Oriente e do Norte de Africa, o problema russo-ucraniano, as implicações do neoprotecionismo da administração americana, para citar apenas os mais importantes.
Se a nossa relação com o futuro fosse saudável e prometedora os episódios ou acontecimentos mais recentes teriam provavelmente uma distribuição normal ao longo do eixo do tempo. Todavia, o facto de o futuro ser largamente incerto e intransparente faz com que os problemas se acumulem no presente que, dessa forma, aparece bastante congestionado. Em consequência, já não se trata apenas de prever o futuro, trata-se agora, também, de prever o presente que vive uma vertigem permanente entre a voragem histórica do passado recente e a turbulenta antecipação do futuro.
Esta contingência europeia tem outra consequência muito relevante, qual seja, a de agravar a impotência das instituições europeias no que diz respeito à efetividade do seu processo de tomada de decisão, como, aliás, se observa, agora, a propósito da política externa, segurança e defesa. De resto, este facto agrada aos agentes políticos que desejam reduzir o perímetro geopolítico do projeto europeu, pois, devido à escassez de soluções de futuro, assistimos a uma espécie de fracionamento da decisão política europeia, a uma espécie de sucessão de decisões modestas e recorrentes sem eficácia real e, do mesmo passo, a uma certa balcanização da política europeia.
Dito isto, e perante as linhas de fratura que atravessam a União Europeia, hoje e no futuro próximo, uma primeira abordagem a esta policrise diz respeito à associação primordial entre riscos globais e bens comuns europeus. O combate aos grandes riscos, do risco humanitário ao risco climático, do risco sanitário ao risco financeiro, do risco económico ao risco securitário, e a formação de comunidades de risco europeias e cosmopolitas, pode ser, mesmo, a fonte de relegitimação política que faz falta à União Política Europeia, para lá da legitimidade formal que lhe é conferida pelas regras de governo das instituições europeias. E, assim sendo, qual é a consistência e a verosimilhança de um governo dos comuns europeus, de acordo com os princípios gerais de um federalismo partilhado, cooperativo e descentralizado?
Em primeiro lugar, opropósito do projeto europeu não parece ser a edificação de um Estado supranacional, pois, à evidência, um Estado supranacional é um Estado contraproducente. Falo de uma federação europeia e não de um estado federal. Uma Europa Federação é uma sociedade mais horizontal do que vertical, feita de estímulos, sanções e disciplinas, mais do que hierarquias, estruturas e organizações burocráticas que, uma vez criadas, criam a sua própria comunidade de interesses corporativos. Um equívoco muito comum em matéria europeia, quase um tabu, é a chamada via única, a subsidiariedade ascendente. Ora, a transferência de atribuições e competências entre as administrações europeia e nacionais e a respetiva reforma política daí decorrente é biunívoca, corre nos dois sentidos, umas vezes reforçando os poderes do centro em Bruxelas, outras vezes devolvendo poderes às capitais nacionais. Também aqui não parece haver direitos adquiridos, mas equilíbrio de checks and balances.
Em segundo lugar, um governo dos comuns para a União Europeia faz convergir três blocos de políticas públicas. Um bloco de bens comuns fundamentais (1), de acordo com uma visão mais civilista e cosmopolita da sociedade europeia, e que conjuga a carta dos direitos fundamentais e a procuradoria europeia, a preservação do modelo social europeu e a coesão territorial, a cobertura dos grandes riscos e a cooperação internacional e a paz. Um bloco de bens comuns de natureza mais instrumental (2), onde se incluem a natureza, dimensão e funções do orçamento da união política, a tributação própria, o papel do banco central com as funções de reserva federal e, por último, a criação de um fundo monetário europeu e de um mecanismo de gestão da dívida pública europeia com o duplo objetivo de providenciar maior estabilidade financeira aos Estados membros e mais recursos financeiros à União Europeia junto dos mercados internacionais. Um bloco de bens comuns de relações internacionais (3), onde se inclui a política externa, a segurança e a defesa comum, assim como a cooperação para o desenvolvimento.
Em terceiro lugar, e quanto à verosimilhança de uma união política europeia com assento numa economia política dos comuns europeus, talvez possamos dizer o seguinte:
– No plano histórico-político, o contexto e o pretexto já existem, isto é, a geopolítica europeia atual é suficientemente grave, séria e complexa para justificar plenamente a próxima fase do processo de integração;
– No plano da doutrina e teoria política, a distinção entre Federação Europeia e Estado Federal oferece uma clara separação das vias de integração e a teoria e governo dos comuns europeus uma abordagem benigna das grandes tarefas da Federação Europeia; todavia, é necessário acautelar a formação de círculos concêntricos, várias velocidades e outros tantos regimes de exceção para não balcanizar a política europeia;
– No plano jurídico-político a abordagem constitucional parece estar fora de questão, tal como aconteceu em 2005 com o chumbo dos referendos ao tratado constitucional europeu; todavia, uma abordagem mais pragmática como um Ato Único Europeu pode ser objeto de discussão e um bom ponto de partida;
– No plano das famílias políticas europeias, cresce o populismo nacionalista e oportunista, a pulverização do espetro político-partidário e a instabilidade governativa que se aproveitam do atual processo de tomada de decisão europeu para colocar o dissenso político à frente do consenso político;
– No plano da liderança político-institucional, finalmente, há uma clara perda de confiança em quem representa as instituições europeias, as elites políticas, como agora se comprova à evidência; esta perda de reputação das instituições europeias e multilaterais favorece as representações populistas e demagógicas e introduz um viés cognitivo grave na perceção política dos cidadãos europeus que é preciso contrariar a todo o custo.
No final, e tudo somado, a consistência e verosimilhança de uma economia e governo dos comuns para a União Europeia, de acordo com os princípios gerais de uma Federação Europeia e de um federalismo partilhado, cooperativo e descentralizado, nas atuais circunstâncias geopolíticas europeia e global, não parecem estar asseguradas. E é aqui, justamente, que se revelam as consequências do atual dissenso político europeu, ao não reconhecer, nesta oportunidade singular, a importância fundamental de um governo dos comuns europeus e, em vez disso, deixar-se arrastar para uma nova tragédia dos comuns ou, então, para mais uma simples política de resgate e reparação de danos.
(continua)
Artigo publicado no Observador.
Leia também: União Europeia: A insustentável leveza do ser | Por António Covas

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