Na agenda da União Europeia 2030, uma das questões mais críticas desta década diz respeito à sua autonomia estratégica no âmbito de duas grandes tendências pesadas. A primeira diz respeito aos impactos das chamadas Grandes Transições e à sua capacidade para a produção dos bens públicos globais (BPG) correspondentes. A segunda diz respeito à sua autonomia estratégica em matéria de segurança e defesa, em virtude das alterações profundas na ordem internacional que decorrem não apenas da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mas, também, da competição geopolítica e geoeconómica entre a China e o chamado Ocidente Alargado liderado pelos EUA. No primeiro caso, mais autonomia estratégica pode colidir com uma maior relutância dos Estados membros em soluções mais integracionistas ou federalistas, no segundo, mais autonomia estratégica pode colidir com as orientações hegemónicas da potência liderante desse Ocidente Alargado que visa, em primeira instância, promover os interesses geoestratégicos dos EUA no plano global. Em ambos os casos, a União Europeia vive uma espécie de dilema do prisioneiro, por ser, digamos, potência coadjuvante. Vejamos, mais de perto, estas duas grandes tendências pesadas que condicionarão a agenda europeia até 2030, pelo menos.
Autonomia estratégica e bens públicos globais (BPG)
Os impactos devastadores das grandes transições – climáticas, energéticas, ecológicas, alimentares, demográficas, migratórias, digitais, laborais, securitárias, geopolíticas – e, muito em especial, as linhas vermelhas das alterações climáticas (IPCC) – o esgotamento da camada de ozono, a integridade da biosfera, a poluição química, a concentração de CO2, a acidificação dos oceanos, o consumo de água doce, as alterações do uso da terra, os fluxos de azoto e fósforo, a carga atmosférica de aerossóis – remetem-nos para o grande tema do défice de bens públicos globais cuja responsabilidade global a União Europeia e os seus parceiros não podem, de modo nenhum, declinar. Vejamos alguns destes défices de BPG.
Os bens públicos globais (BPG), pela sua escala e natureza, fazem parte da casa comum da humanidade e são, por isso, provisionados pela cooperação internacional e as organizações multilaterais. Nos últimos quatro anos, porém, a cooperação internacional e o multilateralismo sofreram um rude golpe, a pandemia, a guerra, as sanções, as cadeias
logísticas, a inflação, tiveram consequências sérias e graves sobre a provisão dos BPG. A título de exemplo, e apesar da criação da COVAX para combater a pandemia, este BPG que é a vacinação generalizada e solidária ficou muito aquém do que era desejável como facilmente se comprova pelas taxas de vacinação. De facto, a distribuição é de tal modo desigual que podemos falar, mesmo, de uma verdadeira geopolítica da vacinação.
Em segundo lugar, a tendência mais pesada e a causa de quase todos os males, as alterações climáticas, têm origem no nosso modelo de crescimento económico e respetivos padrões de comportamento que geram uma entropia sistémica sem paralelo. Não é por acaso que se fala tanto em biodiversidade, descarbonização, economia circular e sustentabilidade como os principais problemas e agendas para a próxima década. Nesta matéria, aliás, as comunicações digitais de alto débito, que também têm uma alta pegada energética, geraram um volume imenso de desinformação e negacionismo, ao ponto de serem, hoje, dois dos maiores obstáculos da sociedade da informação e conhecimento. A reputação da União Europeia nesta matéria é absolutamente essencial.
Em terceiro lugar, a cooperação científica internacional que tornou possível a fabricação de uma vacina em tempo record é de tal forma inspiradora e prometedora que me interrogo sobre as razões pelas quais investimos tão pouco em humanidade, cooperação e solidariedade, por exemplo, a conversão da propriedade industrial e intelectual num BPG, e muito mais em armamento e indústrias de defesa como agora se observa com o reforço dos orçamentos de defesa e uma nova corrida aos armamentos. As prioridades da agenda europeia até 2030 afetarão substancialmente a reputação da União Europeia nestas duas matérias essenciais, a cooperação internacional, de um lado, a corrida aos armamentos, do outro.
Em quarto lugar, a segurança e a paz, de um lado, a ajuda ao desenvolvimento e a estabilidade financeira, de outro, dois BPG essenciais, viraram um campo geoestratégico privilegiado onde prolifera o realismo e o cinismo, sempre em prejuízo dos grupos e países mais vulneráveis, que têm poucas ou nenhumas almofadas para proteger os seus cidadãos mais desprotegidos. As alterações climáticas, a pandemia, a pobreza, a guerra e os efeitos de ricochete das sanções provocaram uma desigualdade profunda, muitos fluxos de refugiados e migrantes, muito tráfico de pessoas e armamento entre o Grande Médio Oriente, a zona do Sahel e as duas margens do mediterrâneo. Um pacto europeu para as migrações é um BPG de uma importância fundamental, assim como uma nova política de ajuda e cooperação internacional entre as duas margens do Mediterrâneo. É, mais uma vez, a autonomia estratégica e a reputação da União Europeia que estão em causa.
Em quinto lugar, os sucessivos fracassos da ONU, do G7 e G20, mostram que a recomposição geopolítica prevalece sobre as necessidades da cooperação multilateral. O risco aqui é a instrumentalização política dos países mais desprotegidos para alguns jogos de poder como facilmente se observa, por exemplo, na região do Grande Médio Oriente. A doença, o desemprego, a fome e o terrorismo no Médio Oriente e em Africa não são de hoje e não se combatem com uma ajuda de emergência despejada para cima dos problemas. Acresce que, a penetração do terrorismo em países e estados falhados acelerou o cibercrime e as guerras informáticas. O ciberespaço é um BPG essencial e sem cooperação internacional nesta matéria seremos uma presa fácil da ciberguerra.
Finalmente, as linhas vermelhas que já enunciei dizem-nos que os oceanos serão o principal teatro de operações do próximo ciclo climático-ecológico que, de resto, já aí está. Os oceanos são um órgão vital da terra-mãe natureza, onde a captura do carbono, o aquecimento das águas e a sua acidificação, a subida do nível das águas costeiras, as tempestades, têm os oceanos como cenário e agente-principal. O risco é irreversível e iminente, enquanto a inversão de tendência só acontecerá, se acontecer, a longo prazo. Uma política global para os oceanos será, seguramente, um BPG inestimável no futuro próximo e uma ajuda fundamental para os países mais desprotegidos.
Os BPG são, assim, a expressão mais autêntica dessa herança tão genuína que é a casa comum da humanidade. Percebe-se, agora melhor, a importância nuclear de uma organização como a União Europeia na passagem desse testemunho e na provisão mínima dos principais bens públicos globais, mas sabemos, também, que essa grande missão da União Europeia exige a mobilização de recursos gigantescos e mexe estruturalmente com a sua autonomia estratégica em matérias controversas no quadro europeu como: mutualização de dívida, novos recursos próprios, federalismo orçamental e monetário, indústrias europeias de segurança e defesa e, enfim, a revisão dos tratados europeus.
Autonomia estratégica e Ocidente Alargado
Trinta anos depois da queda do muro de Berlim e do fim da União Soviética, um período hegemonizado pelo chamado mundo ocidental e a liderança indiscutível dos EUA, a ordem internacional construída nos meados do século passado está posta em causa. Estamos a sair do multilateralismo global de inspiração liberal e a entrar numa
espécie de multilateralismo de blocos ou áreas de influência, em que uma separação de filiações dá lugar à formação de novos realinhamentos com matizes muito diferenciados. Não é por acaso que se fala cada vez mais em Ocidente Alargado, Indo-Pacífico, BRICS, Sul Global, União Económica Euroasiática, Grupo QUAD, entre outros.
Passados trinta anos, a China é um ator geoestratégico global que acredita que a cooperação euroasiática alargada, desde logo entre a China e a Rússia, pode servir para disputar a hegemonia do chamado Ocidente Alargado que, entretanto, se constituiu para contrabalançar a ascensão do poder global da China. Deste facto objetivo decorre uma tese, que nos parece óbvia, acerca da guerra na Ucrânia: China e Rússia não têm os mesmos interesses, mas têm o mesmo inimigo comum, por isso, Pequim tudo fará para evitar uma derrota clara da Rússia de Putin e o seu enfraquecimento político no plano doméstico; por outro lado, a guerra na Ucrânia mantém os EUA afastados de Taiwan e isso interessa à China cuja ambiguidade estratégica na guerra visa, afinal, enfraquecer todos os contendores.
Até agora, este conflito arrastado e cruel tem sobrecarregado todos os contendores envolvidos menos a China. De resto, a Rússia e os EUA conhecem bem os danos imensos das suas guerras por procuração que chegam a durar décadas. E, neste sentido, o corolário de uma guerra penosa, longa e arrastada pode levar o Presidente Zelenski a declarar que: a Ucrânia é uma vítima de uma guerra por procuração entre a Federação Russa e o Ocidente e reclama que o Conselho de Segurança da ONU coloque imediatamente tropas de interposição de paz no território ucraniano. Porém, esta afirmação das vítimas por procuração pode desagradar imediatamente aos EUA e mudar provavelmente a natureza do apoio ocidental à Ucrânia. Além disso, até onde estão as opiniões públicas internas dispostas a ir se, por exemplo, a guerra escalar perigosamente e a inflação teimar em não descer?
Um fator adicional de instabilidade geopolítica e geoestratégica diz respeito a Taiwan. Se a China considerar que uma linha vermelha foi ultrapassada, mesmo que seja apenas para provocar a distração americana, o foco geoestratégico dos EUA pode deslocar-se para a região do Indo-Pacífico e, nessa altura, a União Europeia ser chamada a assumir a pesada responsabilidade de uma guerra de consequências imprevisíveis junto às suas fronteiras. É, mais uma vez, a sua autonomia estratégica que está posta em causa.
Notas Finais
Três notas finais. O Ocidente Alargado acreditou, após 1991, que o multilateralismo sistémico liberal hegemonizado pelo Ocidente resolveria todos os problemas emergentes, mas rapidamente se constatou que os poderes dos estados autoritários, dos atores não estatais, das redes de criminalidade organizada, das correntes de opinião radicalizada, reintroduziram as relações de força e os jogos de poder para desarticular os valores dominantes da ordem demoliberal. A ordem internacional e mesmo a ordem constitucional foram postas em causa. A autonomia estratégica da União Europeia é diretamente afetada pela crise destas duas ordens fundamentais.
A segunda nota diz respeito à guerra comercial e tecnológica entre as duas grandes potências globais, EUA e CHINA, e seu impacto no curso da guerra. Se a diplomacia das duas potências globais regular as suas dissensões e chegar a um acordo de regras mínimas do comércio global, esse facto terá repercussões positivas no curso da guerra e poderá mesmo conduzir a uma proposta de cessar-fogo. Todavia, se assim não for, pode acontecer que as retaliações sejam recorrentes e recíprocas e esse facto arraste ainda mais os efeitos contraproducentes da guerra e mesmo a sua escalada para patamares de elevada perigosidade.
Por último, se os pedidos reiterados do Presidente Zelenski de rearmamento mais sofisticado não foram atendidos em tempo útil de guerra de agressão, receio bem que a União Europeia seja colocada, mais uma vez, perante um dilema geopolítico, qual seja, o de diferenciar mais o seu apoio e escalar a ajuda especificamente europeia para um outro patamar. Cuidado, pois, União Europeia, a guerra na Ucrânia pode ser o princípio do fim de uma utopia. Estamos num impasse. O mercado russo já encolheu dramaticamente, o mercado chinês está muito condicionado pela guerra comercial e tecnológica, o mercado americano está acessível, mas com restrições, e como potência coadjuvante dos EUA e da NATO a União Europeia vive, neste momento, um verdadeiro dilema do prisioneiro. Por exemplo, a sua margem de liberdade para propor soluções especificamente europeias para o cessar-fogo e negociações de paz é praticamente nula. Os termos da autonomia estratégica da União Europeia precisam de ser debatidos com urgência, antes de um qualquer cisne negro anunciar um risco disruptivo grave.
Artigo publicado no Observador.
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