A democracia na América (EUA) está a passar por um período menos bom. Está em curso, no plano interno, uma autêntica erosão do Estado de direito. Senão vejamos: os ataques à liberdade de imprensa são frequentes (1), as interferências no funcionamento do sistema judiciário são crescentes (2), os excessos cometidos no combate à imigração ilegal são evidentes (3), crescem as interferências no funcionamento das universidades e nos programas de apoio à ciência (4), os ataques aos mecanismos de discriminação positiva conhecidos por DEI são notórios (5), crescem os ataques aos direitos sociais e laborais (6), sobem as manobras de intimidação contra os advogados (7), é claramente contraproducente o uso abusivo das tarifas comerciais para inverter os saldos comerciais (8), é crescente a confusão nas relações político-diplomáticas mesmo entre países aliados (9), é abusivo e excessivo o uso dos poderes executivos excecionais como instrumento de governação e administração (10).
Por outro lado, no plano da política externa, a presidência americana utiliza a diplomacia da ameaça e do medo para obter contrapartidas favoráveis dos seus adversários, quando diz, por exemplo, que não nos interessa a ordem internacional, é muito cara para nós, é preciso mudar a relação com os aliados tradicionais por causa dos custos excessivos do multilateralismo ocidental. O Presidente americano iniciou uma estratégia revisionista do Ocidente Global baseada na lei da força, da segurança e da riqueza e numa atitude transacional e mercantilista que ninguém sabe como irá acabar.
Por fim, a radicalização política interna e a legitimação do populismo autoritário por via de um regime plutocrático, ultraliberal e desregulado, com um controlo social operado através da instrumentalização das redes sociais e da esfera mediática. Trata-se de montar um novo ecossistema informacional, um verdadeiro aparelho de desinformação, onde a inversão acusatória e do ónus da prova fazem a lei e onde as democracias liberais se revelam como regimes fracos que consentem o caos social e a corrupção das elites.
Aqui chegados, há, claramente, uma perda grave de reputação e muito menos crédito dos EUA no plano das relações internacionais e da Comunidade Internacional. E perante esta evidência é muito pertinente a questão de saber como irão a Europa e a União Europeia abordar esta preocupante decadência do Ocidente, no preciso momento em que as sociedades democráticas, ditas liberais e representativas, estão sob uma enorme pressão das circunstâncias histórico-políticas, as suas vulnerabilidades estão severamente expostas e perante a iminência de uma policrise existe o risco sério de um desvio autoritário e autocrático. Vejamos, então, na atual conjuntura geopolítica, algumas derivações desta policrise e como poderiam a Europa e a União Europeia recuperarem a perda de reputação e o crédito do lado Ocidental.
Em primeiro lugar, a inércia política, o aumento dos Estados relutantes e a balcanização da política europeia (1) é o caminho mais curto para o fim anunciado do projeto político europeu tal como o conhecemos ainda hoje; um compasso de espera nesta altura e não é impossível que as tendências europeias atuais se agravem antes de melhorarem.
Em segundo lugar, uma abordagem puramente tecno-burocrático-digital por via de uma inovação tecnológica disruptiva (2) que promova uma visão hierárquica e autoritária de federação europeia, favoreça o upgrade da administração europeia e a constituição de um aparelho político-burocrático com um impacto visível nas administrações nacionais; uma visão tecnocrática e autoritária na atual conjuntura não parece ter condições para fazer vencimento, embora alguns dos seus elementos estejam a fazer o seu caminho por via da instalação da sociedade algorítmica.
Em terceiro lugar, os seis países fundadores recriam o momento fundador do projeto europeu através de um Ato Único Europeu de natureza federal (3); ao constatarem odeclínio do sistema de poder ocidental imerso num caldo de cultura tecno-plutocrático onde riqueza e poder andam a par de desigualdades sociais profundas que emagrecem e empobrecem as classes médias, os seis países fundadores lançam uma proposta política de inspiração federal para, de algum modo, separarem o trigo do joio, e assim, criarem uma Europa a várias velocidades e de geometria variável; este cenário é perfeitamente possível e pode ser proposto em qualquer momento se a geopolítica europeia se agravar repentinamente.
Em quarto lugar, a União Europeia converte-se num executivo europeu, uma espécie de networking state, que transforma os diversos pactos europeus em cooperações estruturadas reforçadas e em estruturas de missão (4) que reúnem a administração europeia e as administrações nacionais as quais, por sua vez, assentam em parcerias, consórcios e plataformas colaborativas de geometria variável de acordo com a vontade dos Estados membros;
Em quinto lugar, e para contornar a revisão dos tratados, alguns Estados membros propõem acordos intergovernamentais hors-traités, de natureza cirúrgica e operacional, naquelas áreas mais críticas – política orçamental, política monetária, política de segurança e defesa – onde a unanimidade impede uma resposta cabal (5); é um cenário muito provável no atual contexto, usado com alguma frequência para a constituição de mecanismos e fundos e não me surpreenderia que voltasse a ser utilizado.
Dito isto, e como já escrevi em outro local (OBS, 3 de maio 2025), no modelo político e no sistema de poder europeus seis fragilidades são especialmente notórias e preocupantes no atual contexto geopolítico: o frágil policy-making decision das atuais instituições (1), a ausência de um cluster tecno-digital de dimensão europeia e mundial (2), a escassa dotação de recursos próprios em matéria de energia e terras raras (3), o baixo investimento na indústria militar e a modernização do sistema de defesa europeu (4), a debilidade do mercado de capitais europeu (5), a frágil projeção do poder europeu no mundo multipolar em formação (6). Estas fragilidades não são resolúveis a curto prazo e não se compadecem com a débil diplomacia europeia nesta fase.
Nota Final
A União Europeia está, pois, num impasse. De um lado, a impotência do modelo normativista de soft power da União Europeia coloca o projeto político europeu em compasso de espera e refém dos custos de contexto e transação geopolíticos. A política europeia é muito reativa e depende da gravidade dos acontecimentos. De outro, sem uma clara política de recursos federais que antecipe algumas reformas de fundo, todo o esforço financeiro para acolher as despesas de segurança e defesa, sobretudo em caso de prolongamento da guerra na Ucrânia, é realizado em prejuízo de outras políticas públicas europeias e nacionais que, assim, vêm descontinuado o esforço levado a cabo durante anos. Ou seja, doravante, as relações económicas passarão a ser filtradas pelo critério da segurança coletiva em sentido amplo.
No final, todos os cenários estão em aberto. Um compasso de espera republicano e tudo voltará ao antigo normal, um mundo multipolar em formação e um novo normal, um mundo cheio de guerras híbridas e lutas de proxies, uma nova guerra fria euroasiática da Ucrânia até Taiwan, uma Europa à la carte e de geometria variável, a refundação da Europa em termos federais através de um Ato Único. Assim será se a Europa quiser.
Leia também: Europa, o risco de fadiga e deceção democráticas | Por António Covas

O Europe Direct Algarve faz parte da Rede de Centros Europe Direct da Comissão Europeia. No Algarve está hospedado na CCDR Algarve – Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve.
CONSULTE! INFORME-SE! PARTICIPE! Somos a A Europa na sua região!
Newsletter * Facebook * Twitter * Instagram