Na agenda política europeia e nacional pode parecer paradoxal, na actual conjuntura, falar de Europa das Cidades e Regiões e de uma doutrina regionalista das suas macrorregiões. Sabemos como a opinião publicada de referência é dominada pela temática das Grandes Transições e seus efeitos assimétricos sobre os territórios, a saber: as alterações climáticas, as secas severas e o seu impacto sobre a produção de alimentos, os efeitos das sanções de guerra, a transição energética e os surtos inflacionistas, o inverno demográfico e as grandes fluxos migratórios, a pobreza, a fome e a emergência de novas epidemias, a disrupção tecnológica e digital e a adaptação dos mercados de trabalho, a confusão geopolítica atual marcada pela guerra na Europa e a regionalização da ordem internacional e da globalização com graves ruturas nas grandes cadeias logísticas de abastecimento. Ou seja, é o tempo da macropolítica e da macroeconomia, com o apelo a maiores índices de despesa em defesa e segurança coletivas, por um lado, e mais rigor no equilíbrio entre política de ajustamento conjuntural e despesas estruturais, por outro.
Neste contexto, a mesopolítica e a mesoeconomia das euro-regiões e euro-cidades, das áreas metropolitanas, das redes de cidades e, de uma maneira geral, dos agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT) são observadas com alguma relutância a partir das capitais e consideradas como variáveis endógenas da política macroeconómica e financeira decidida em Bruxelas e Frankfurt, isto é, acabam por funcionar como instrumentos de gestão da procura agregada e, portanto, sujeitas ao stop-go dessas políticas e à sua descontinuação e cativação na transição entre quadros comunitários de apoio e na execução orçamental da respetiva programação plurianual. A esta restrição geral de natureza macroeconómica, acrescentam-se os efeitos da guerra e das sanções (veja-se, por exemplo, a interdição da Polónia e Hungria à importação de cereais da Ucrânia), os impactos de uma eventual reindustrialização do mercado único europeu e a distorção das ajudas de estado nesse contexto e, finalmente, a antecipação das consequências que os próximos alargamentos à península balcânica poderão desencadear nos países que hoje são os maiores beneficiários da política de coesão. A questão central que aqui se coloca é a ordem de importância relativa dos temas em agenda e as prioridades políticas que se estabelecem quando não há tempo e recursos para atacar todos os problemas de uma só vez. Face aos graves problemas em agenda na atual conjuntura, é bem provável que alguns temas da agenda europeia tenham de ser sacrificados e que um desses temas seja, justamente, a coesão territorial no interior da União Europeia, por maioria de razão quando a teoria da estabilidade e da condicionalidade prevalece sobre a teoria da coesão e da solidariedade. Essa é, também, a razão pela qual nós dizemos que falta uma doutrina de inspiração federativa e regional à União Europeia e que é um crime de lesa-europa não aproveitar o potencial de crescimento distribuído e colaborativo que reside na Europa das Regiões, nas redes de cidades e nos agrupamentos europeus de cooperação territorial.
Estamos em maio de 2023, recordemos brevemente os factos mais relevantes dos últimos anos. Em 2008 eclodiu uma crise sistémica do capitalismo com os efeitos que são conhecidos nas dívidas soberanas e bancárias. Em 2010 e 2011, os países do sul da Europa foram sujeitos a vários regimes de condicionalidade macroeconómica no quadro do pacto de estabilidade e crescimento, do tratado orçamental e do semestre europeu. A consequência imediata deste ajustamento severo entre 2011 e 2015 foi uma degradação na oferta bens e serviços públicos e uma nova geração de desequilíbrios regionais que não só colocou em causa o esforço de investimento e convergência feito em quadros comunitários anteriores como deixou a política de coesão regional à beira de um ataque de nervos. Entre 2016 e 2020, apesar de uma ligeira melhoria e recuperação, o peso da dívida pública acentuou a cativação do investimento público. Entre 2020 e 2022 vivemos a epidemia da covid-19 e, em fevereiro de 2022, eclode a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, assim como as consequências das sanções aplicadas à Rússia. A inflação regressa à Europa e as taxas de juro de referência do BCE voltam a subir até aos 4%.
Neste contexto tão sobrecarregado, e não obstante as intervenções de emergência já efetuadas – o programa RePower EU, a suspensão dos regimes de condicionalidade macroeconómica e a criação de um mecanismo de recuperação e resiliência (programas de recuperação e resiliência até 2027) – o arranque desta década fica fortemente marcado pelo período entre 2020 e 2023. Basta observarmos a lentidão exasperante em executar o PT 2020 até 2023 ou o modo como está a ser montada toda a engenharia técnica e financeira do PRR 2026 e do PT 2030 que, na prática, já consumiram o período entre 2020 e 2023 sem resultados materiais muito visíveis. Basta lembrar, ainda, o peso excessivo do serviço da dívida soberana nos orçamentos nacionais dos países do sul, os valores ridículos do investimento público orçamentado e a falta de capitais próprios (dívida privada) para realizar investimento privado e recapitalizar pequenas e médias empresas, para termos uma perspetiva aproximada do que será a política de coesão territorial até 2030 e, porventura mais grave, o baixo valor do PIB potencial no final do período (ver programa de estabilidade e crescimento de Portugal 2023/ 2027).
Uma Europa das cidades e regiões
Aqui chegados, este é, também, o momento oportuno para elaborar um pouco mais fora da caixa no que diz respeito à política de coesão mais convencional que, em minha opinião, continua a girar muito em redor das clientelas e dos destinatários habituais. Em síntese, creio que poderíamos elaborar sobre dois cenários de política de coesão regional até 2030. Um cenário adaptativo em ambiente de severidade geopolítica e securitária na Europa (1) e que visa, sobretudo, prevenir e mitigar as principais distorções que impendem sobre a política de coesão mais convencional. Em segundo lugar, um cenário mais ambicioso, numa linha de integração positiva, mais integracionista e unionista, se quisermos, mais federal (2) que mutualiza recursos comuns e aposta numa Europa de macrorregiões e cooperação territorial descentralizada, uma Europa de cidades e regiões inteligentes e criativas.
No primeiro cenário trata-se, sobretudo, de acautelar uma erosão da política de coesão em resultado de quatro tipos eventuais de distorção: uma distorção provocada por reafectação de meios financeiros à segurança e defesa coletiva da Europa (1), uma distorção provocada por uma reindustrialização europeia e ajudas de estado discriminatórias que beneficiam os estados mais ricos (2), uma distorção provocada por uma nova condicionalidade macroeconómica mais severa e rigorosa (3), uma distorção provocada por reafectação de meios aos novos estados aderentes da península balcânica (4). Como se pode imaginar, estas distorções podem ainda, com um grau elevado de probabilidade, aparecer acumuladas. No segundo cenário trata-se de promover uma via de integração positiva de natureza federal, que associa novos recursos próprios e a mutualização de outros recursos (subsidiariedade ascendente) com o reforço da cooperação territorial descentralizada que as redes colaborativas e as plataformas digitais estimulam e promovem (subsidiariedade descendente).
No final, o primeiro cenário corresponde a uma política regulatória mais defensiva que visa proteger a atual política de coesão e os meios que lhe estão afetos. O segundo cenário é uma linha politicamente mais ambiciosa e que aponta para um horizonte federal em 2030, o que irá exigir, também, em certa altura, uma revisão dos tratados europeus. No entretanto, espero bem que as instituições da União Europeia saibam estar à altura das suas responsabilidades políticas e que um cenário de compromisso entre estes cenários possa ser prosseguido, proposto e obtido. Seja como for, a grande questão desta década é a de saber se a guerra na Europa e a ambiguidade geopolítica da ordem internacional impelem a União Europeia para o caos intergovernamental ou para a ordem política federal. Estamos, claramente, a meio da ponte e tudo pode ainda acontecer.
Se a guerra na Ucrânia perdurar e a ambiguidade geopolítica da ordem internacional permanecer, a União Europeia corre o risco de ver aumentar o número de Estados relutantes, de pender para o caos intergovernamental e a política de coesão ser, ao mesmo tempo, uma variável endógena da política europeia e uma variável renacionalizada pelas ajudas internas concedidas por cada Estado membro.
Mesmo neste contexto, porém, uma Europa das Regiões poderia ser promovida por uma razão menos comum e que tem a ver com a segurança colectiva da União e da sua fronteira exterior, uma vez que o reforço da ajuda à fronteira exterior da União, porta de entrada de fluxos erráticos de população, é fundamental para prevenir crises agudas de regionalismo que, por esta via, poderiam conseguir argumentos adicionais para emergirem com uma legitimidade acrescida. No mesmo sentido, pode a Europa das Regiões ser transposta para fora da União sob a forma de cooperação transfronteiriça e transnacional, uma faceta da política regional que precisa de ser claramente explicada às regiões europeias, sob pena de se exacerbarem os egoísmos regionais face a regiões de terceiros países e que precisa, ainda, de ser reforçada no plano orçamental. As duas margens do Mediterrâneo estão aí para o provar.
De acordo com a segunda perspectiva, mais integracionista e unionista, o território da União Europeia deixaria de ser uma variável endógena ou então um actor de 2ª ordem para passar a ser um actor de primeiro plano no contexto de uma multiterritorialidade mais claramente federal ou federativa. Nesta linha de pensamento, a coesão territorial e a política regional teriam de ser variáveis exógenas e poupadas à austeridade de uma macroeconomia disciplinar de curto prazo. Uma abordagem possível e viável desta Europa das Regiões corresponderia a organizar o território europeu através de uma rede de macrorregiões europeias (a península ibérica, os países bálticos, as ilhas britânicas, a península da escandinávia, etc), de regiões transfronteiriças e transnacionais e de redes de cidades (capitais, temáticas, históricas, etc). Esta Europa das Regiões teria o mérito de ser muito mais cultural, humanística e simbólica, mas, também, muito mais colaborativa e solidária por comparação com a Europa actual das mercadorias e dos capitais.
Notas Finais
Estamos na primavera de 2023. Os modelos convencionais da política de coesão territorial parecem estar esgotados. De um lado, procura-se uma afetação mais temática e transversal, para crescer depressa e melhorar a competitividade global, o que, na prática, favorece mais os territórios já competitivos, do outro, uma afetação mais distributiva e regional que, todavia, apenas proporciona um crescimento lento e não dá garantias de poder resolver os problemas estruturais das regiões menos desenvolvidas.
Este é o tempo da inteligência coletiva territorial, das plataformas digitais colaborativas e da multiterritorialidade europeia. Este é o tempo das macrorregiões europeias (a península ibérica), das euro-regiões e euro-cidades, das interligações fortes entre universidades, associações empresariais, centros de investigação, instituições sociais e culturais de todo o tipo. Pensemos por um momento no enorme potencial interativo e colaborativo que está contido no complexo de programas e subprogramas constantes no PRR 2026 e no PT 2027. Se a estes dois grandes complexos adicionarmos os programas especificamente europeus e, muito em especial, os programas que nos relacionam com o vizinho peninsular – o INTERREG VI 2027 Portugal/Espanha, nas suas três componentes A (cooperação transfronteiriça), B (Espaço Atlântico) e C (Urbact, cooperação entre cidades) – teremos reunidas as condições para uma verdadeira Europa das Cidades e Regiões ou, mais precisamente, para uma cooperação territorial descentralizada entre as cidades e regiões de Portugal e Espanha no horizonte 2030. Seria uma experiência colaborativa extraordinária pegar no grande interior da fachada peninsular e através das euro-regiões e euro-cidades, das parcerias universitárias e dos consórcios empresariais construir uma espécie de arquitetura de interiores e uma genuína curadoria territorial e por via dessas interligações promover novas economias de rede e aglomeração em áreas estruturalmente deprimidas.
A terminar, a filosofia política e institucional dos agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT) já está no terreno e uma política de coesão regional territorialmente mais criativa e colaborativa poderia surgir como um espaço de concertação de iniciativas e projetos, associada a fórmulas organizativas mais inovadoras e libertas da tutela administrativa mais tradicional. Mais preocupantes, porém, são as previsões do nosso programa de estabilidade e crescimento para 2023-2027, em especial, as baixas taxas de crescimento do produto, em redor de 1,9% em média anual. Num período em que os investimentos do PRR e do PT 2030 são elevados, estas previsões do produto denunciam uma baixa produtividade da economia portuguesa (1,6% em média anual), um baixo investimento publico nacional (inferior a 2% ao ano) e uma taxa de crescimento do produto potencial em redor de 1,8%. Estes sinais paradoxais, numa década que reúne tantos meios financeiros para o investimento, deixam-nos um certo amargo de boca e não nos permitem antecipar uma correção dos desequilíbrios estruturais há muito existentes, ou seja, o programa optou por ser defensivo e privilegiar, claramente, a estabilidade em vez do crescimento. É uma opção, no mínimo, discutível e que não favorece a abordagem que aqui apresentámos.
Artigo publicado no Observador.
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