Um Vasto Céu Azul é o novo thriller de Kate Atkinson, publicado pela Bertrand Editora, com tradução de Miguel Batista. Esta editora publicara já Transcrição (2020), um romance de espionagem passado durante a Segunda Guerra – mas muito diferente dos romances Vida após Vida e Um Deus em Ruínas (Relógio d’Água), cuja ação também se desenrola nesse período, e ambos vencedores do Prémio Costa.
Um Vasto Céu Azul assinala a estreia em Portugal de uma das personagens mais célebres da autora, o detetive privado Jackson Brodie. A saga iniciou-se com o livro Case Histories (ainda por traduzir) e foi adaptada a série de televisão pela BBC, com o mesmo título. Existem ainda outros livros na saga – One Good Turn, When Will There Be Good News?, Started Early, Took My Dog –, que podem ser lidos separadamente, mas serão mais desfrutáveis, naturalmente, se forem lidos pela sua ordem de publicação. Todos eles são êxitos de vendas. Um Vasto Céu Azul é o tão aguardado regresso de Brodie no mais recente livro da série, originalmente publicado em 2018, com o título Big Sky.
Jackson Brodie mudou-se para uma tranquila vila na costa oriental do Yorkshire, onde leva uma vida igualmente pacífica, dividida entre a ex-companheira, o filho adolescente Nathan e a cadela labrador já velhinha batizada de Dido (por causa da rainha de Cartago, não por causa da cantora). Ex-militar, ex-polícia, com um passado familiar trágico, Brodie é agora detetive privado, embora ele tentasse não usar essa designação: «tinha demasiadas conotações glamorosas (ou manhosas, dependia do ponto de vista.) Remetia demasiado para Raymond Chandler. Criava expetativas às pessoas.» (p. 31) A atual missão de Brodie é a de recolher provas da infidelidade de um marido a mando da sua mulher. Contudo, um encontro fortuito com um homem desesperado, prestes a atirar-se de uma falésia, é apenas o princípio do desenrolar de uma longa e intrincada série de peripécias, que o leva a descobrir uma sinistra rede de tráfico humano. Como proclama a sua antiga companheira: «Jackson nunca precisara de ir à procura de sarilhos, (…) os sarilhos encontravam-no sempre.» (p. 342)
Kate Atkinson consegue a proeza de criar uma narrativa tão emocionante quanto atípica, atendendo ao facto de Um Vasto Céu Azul ser um livro tão diferente dentro do género policial. Entrelaçam-se aqui várias histórias, mediante o cruzar de diversas personagens, num calmo crescendo, até que as várias pontas soltas começam a formar nós e pespontos. Brodie tem mais de anti-herói do que de herói, pois apesar da sua calma compostura e do seu humor sarcástico não deixa de ser ultrapassado, várias vezes, pelos acontecimentos. Até Crystal, a dona de casa com ar de boneca, o ultrapassa na capacidade de reação, perfeitamente ciente, por exemplo, de que ele a seguiu durante todo o dia…
Bastante único, dir-se-ia até avesso ao género policial, é o humor – negro ou talvez tipicamente britânico – que perpassa a narrativa. Ainda que especialmente centrado na personagem de Brodie, a narração na terceira pessoa, que acompanha à vez a focalização das várias personagens, através de vários pequenos capítulos, dá-nos momentos de humor genuíno, em particular quando o leitor capta o que se vai passando dentro da cabeça do protagonista. Veja-se, por exemplo, este pequeno episódio quando Jackson bate à porta da casa de uma mulher:
«- O que é? – perguntou a mulher do casaco de malha. «Muito bem, não há cá preâmbulos.», pensou Jackson. De perto, conseguia ver o ar de desespero cavado nas feições esqueléticas dela. Podia ter qualquer idade entre trinta e setenta anos. Trocara os chinelos de avó por um par de botas pretas de couro envernizado, até ao joelho, e por baixo do casaco de malha, tamanho extra, vestia uma saia curta e um reduzido top de lantejoulas. Por muito que não gostasse de tirar conclusões precipitadas, Jackson não pode deixar de pensar «mulher da vida», e em saldos, ainda por cima.» (p. 263)
A confirmar Kate Atkinson como uma das mais proeminentes romancistas da atualidade, independentemente do género em que se move, é também a forma como, num thriller policial, se mantém a qualidade literária a par de uma leitura que se quer rápida – devido à pulsão do leitor de querer saber rapidamente o que vai acontecer em seguida. Apesar da profusão de personagens e dos velhos segredos que muitas delas escondem, a narrativa mantém sempre a devida tensão. Há inclusive momentos em que, sem escorregar nas velhas fórmulas televisivas, a narrativa dá saltos ou, por outro lado, revela analepses – o que torna, com eficácia, a intriga ainda mais surpreendente. Da mesma forma, tecem-se, aqui e ali, pistas de leitura para outros livros de Brodie, da mesma forma que aqui ressurgem personagens já conhecidas. Há, por fim, uma pungente melancolia em algumas passagens, especialmente na relação entre Brodie e o filho Nathan, ou na relação com a filha, prestes a casar-se (e que se zangou com o pai, chamando-o de ludita). Esperemos que esta melancolia não signifique que esta seja a despedida de Brodie, da mesma forma que, ainda que este livro possa perfeitamente ser lido de modo isolado, ficamos ansiosamente à espera que se traduzam e publiquem os restantes livros da série.
Kate Atkinson, publicada em dezenas de países e idiomas, conquistou o reconhecimento dos leitores e da crítica. Tem, assim, o raro dom de conquistar importantes prémios literários (como o Costa Book Award, três vezes) e estar simultaneamente sempre nas listas de êxitos de vendas. Foi agraciada pela rainha Isabel II com o título de Membro da Ordem do Império Britânico por serviços prestados à literatura.