Sontag, Vida e Obra, de Benjamin Moser, premiado com o Prémio Pulitzer de Biografia em 2020, apresenta-se como «o grande romance americano sob a forma de biografia», publicado pela Editora Objectiva.
Incluindo dezenas de imagens, este livro parte de inúmeras entrevistas conduzidas em diferentes países. O biógrafo foi o primeiro a ter como fonte os arquivos privados da escritora e testemunhos inéditos de várias pessoas que com ela privaram, tendo realizado entrevistas com personalidades como Annie Leibovitz. Além disso Sontag deixou inúmeros diários, como quem nasce determinada a fazer nome e deixar um legado para a posteridade. É, na verdade, um dos aspetos mais marcantes desta biografia: a forma como compreendemos a determinação de Sue Rosenblatt se transformar em Susan Sontag. Essa capacidade de remodelar a realidade parece aliás vir da leitura: «Uma criança mais feliz talvez nunca se tivesse tornado uma leitora tão consumada.» (p. 41)
«Infeliz em casa, esquisita na escola, deslocada geograficamente, refugiava-se dentro de si, na leitura – e, cada vez mais, na escrita.» (p. 51) Susan tinha uma relação conturbada com a mãe, figura que assombra todos os seus futuros relacionamentos, como mãe e amante, e começa a escrever diários desde cedo (a Quetzal reeditou recentemente Renascer, Diários e Apontamentos, de 1947 a 1963). A autora teria então cerca de 14 anos, em 1947, e já então assume estar a escrever para futuros biógrafos…
A biografia é escrita, geralmente, com avanços e recuos, de modo a tornar mais coerente ao leitor a linha de pensamento que se segue. É curioso como, paradoxalmente, se nota o fascínio do biógrafo por Sontag ao mesmo tempo que emerge uma acutilante certeza de que a figura era bastante pouco humana para os que lhe eram mais próximos. Por outro lado, Sontag era dotada de um genuíno altruísmo, como veremos adiante. Sontag mostrava muitas vezes consciência do quão difícil era; intransigentemente exigente consigo mesma e com os outros, perdeu inúmeros amigos ao longo da vida, especialmente nos últimos anos, ainda que se mantivesse intacto o fascínio e admiração que tinham por ela. Tirânica ao ponto de recusar-se a admitir que dormia, como qualquer outro ser humano. Tão genial quanto alheada de ações quotidianas essenciais, como tomar banho, lavar os dentes, ou pagar as contas. Em contrapartida, via todas as óperas, lia todos os livros.
Um livro que explora quer as forças, quer as fraquezas de uma mulher mitificada, ainda quando viva, profundamente ciente de que ela própria vestia uma máscara, movida por ambições tão precoces quanto arreigadas. Benjamin Moser denota isso mesmo nos diários da autora, que supostamente seriam textos íntimos e privados, escritos para si mesma: «Uma sensação de estar a representar, de se estar a esforçar para dar a impressão que era alguém que não era, permeia esses textos. Há um abismo não apenas entre a pessoa que ela é e a que os outros percecionam, mas também, mais incisivamente, entre si própria e alguma força superior que estivesse a zelar por ela. Fazer pose: não é coincidência que Susan Sontag tenha sido uma das figuras públicas mais fotogénicas da sua geração, nem que, no seu melhor romance, O amante do vulcão, a protagonista seja uma especialista em “atitudes”.» (p. 72) Até à publicação deste romance, que Sontag sente dever ser considerado a sua grande obra, tornara-se uma espécie de lugar-comum considerá-la uma excelente ensaísta, mas uma má ficcionista. Também os filmes que realizou eram bastantes crípticos, sem que os próprios atores compreendessem o que estavam a fazer.
Quanto mais lemos, e mais nos é exposto sobre a sua vida e obra, mais fugaz parece ser a certeza de efetivamente a conseguirmos tocar e perceber. O próprio biógrafo parece reconhecer que falamos de duas mulheres: a Susan humana e a Sontag simbólica, ou seja, a metáfora.
Quando jovem escritora, a tendência de Sontag em ver «o mundo como um fenómeno estético» implicava excluir o impacto da política e da ideologia (p. 173), por isso em França nunca menciona que o país quase mergulhou numa guerra civil por causa da Argélia, não menciona factos como o assassinato de Kennedy nos seus diários, e ao visitar Cuba em 1960 não há qualquer referência à revolução, apenas mencionando Fidel Castro para dar conta das suas opiniões sobre poesia. Décadas depois, Sontag torna-se muito mais envolvida socialmente e revela-se dotada de grande altruísmo, ainda que as suas atitudes denotem alguma inconsistência. Por exemplo, é presa por se manifestar contra a guerra no Vietname, mas durante a crise da sida nos anos 80 recusa terminantemente assumir a sua homossexualidade (nunca se assumiu como lésbica, da mesma forma que nunca assume a sua sobejamente conhecida relação com Annie Leibovitz).
Quando escreve o ensaio «A sida e as suas metáforas», a reação geral foi de indiferença, sem que o artigo seja sequer referenciado, apesar da insistência dos amigos para que ela dissesse “eu”, “o meu corpo”, recusando-se a admitir que fizesse diferença ela “sair do armário” – quando, na verdade, era uma intelectual influente e uma das escritoras mais famosas do país, com incomparável autoridade cultural. Mais tarde, Sontag é das primeiras a apoiar Salman Rushdie, durante a fatwa em que a sua cabeça fica a prémio, e fá-lo justamente na condição de primeira presidente mulher do PEN América. Em 2003 na Feira do Livro de Bogotá recebe uma ovação da plateia colombiana por denunciar o apoio de Gabriel García Márquez a Fidel Castro, mesmo quando ele avança com a execução de intelectuais. Em abril de 1993, faz a primeira de 11 viagens a Sarajevo, levando a peito o dever público do escritor e demonstrando incompreensão perante os que não compareceram; há hoje uma praça no centro da cidade com o seu nome e o filho ponderou enterrá-la ali. Foi também capaz de escrever sobre o 11 de Setembro de forma tão profética quanto incompreendida, deixando a América em choque, como se já previsse que o governo de Bush estava prestes a mergulhar «na maior catástrofe de política externa desde o Vietname» (p. 544), manipulando dados e opinião pública.
Uma leitura apaixonante que é também uma radiografia do século XX, ao longo da intimidade de uma mulher que escreveu sobre alguns dos grandes acontecimentos e conturbações sociopolíticas das décadas ao longo das quais viveu. Os seus ensaios e outros textos, sobre arte, política, feminismo, homossexualidade, drogas, fascismo, freudianismo, radicalismo e comunismo, são igualmente passados à lupa por Moser, capaz de uma análise arguta, sem cair no risco de deificar a pensadora.
Benjamin Moser nasceu em Houston em 1976. Formou-se em História pela Universidade de Brown, onde também estudou Português, escolha que influenciaria o seu trabalho futuro. Em 2009, publicou Porquê este mundo: uma biografia de Clarice Lispector, aclamada biografia da autora brasileira de origem ucraniana, finalista do National Book Critics Circle Award e classificada pelo New York Times como um notable book. Trabalha, há quase vinte anos, na edição anglo-americana das obras de Lispector. Mais tarde, na Holanda, onde vive atualmente, doutorou-se pela Universidade de Utrecht. Em 2020, publicou a biografia de Susan Sontag, agora traduzida entre nós, que foi na altura vencedora do Pulitzer, finalista do prémio PEN e considerada «Livro do Ano» para a Spectator, o Telegraph, a New Statesman e o Financial Times.