Em lugar algum é mais pertinente o questionamento de Leonardo Padura – seria em Adiós Hemingway? – sobre se aquelas músicas que intoxicam o ar do Caribe, não serão na verdade uma única e mesma cantilena. Ainda antes que alguma das pálpebras desproteja um olho insone, já aquele ritmo repetitivo nos agita os sentidos mal despertos.
Nem tudo é belo na Cartagena actual. Áreas lacustres que a rodeavam desapareceram, e há um cerco constante, confuso e opressivo de betão, erguendo-se desde a beira-mar como lanças cravadas na costa. Todavia, o cerne, é de uma beleza que consegue sublimar tudo o mais.
Logo no século XVI chegou a ter umas muralhas de tal modo impressionantes que se considerava a cidade inexpugnável. Que o diga Francis Drake, o pirata e o rei Carlos III que, em Madrid, quando reviu os custos da obra, terá dito: “Isto é ultrajante!” e olhando pela ocular do seu telescópio “por este preço havia de ser possível vê-las desde aqui.” Uma anedota deliciosa que nos recorda o quão intemporais são determinados episódios.
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É fácil começar a ver os locais como personagens dos romances. Figuras que conhecem as deixas e as declinam na perfeição
García Márquez, não nasceu na cidade, mas fê-la presente em vários romances. Em nenhum tão presente, como em O amor nos tempos de cólera, e de uma maneira tão sublime e subtil que, mesmo sem mencionar a cidade, a encontramos desbordando das páginas do livro.
Adentrando a cidade velha pela passagem sob a Torre do Relógio, é impossível não reconhecer no Portal de los Dulces, o Portal dos Escrivães do romance de Márquez.
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Recordemo-lo: Márquez inspira-se no encontro entre os seus progenitores. Florentino e Fermina, de 14 anos, por quem ele se apaixona perdida e desesperadamente. Começa a segui-la pelas ruas da cidade, vigiando a casa onde mora, acompanhando-a à igreja e fazendo-lhe serenatas. Desgraçadamente, e fosse de outro jeito não teríamos o romance, Fermina casará com o respeitável, o adjectivo é importante, médico, Juvenal Urbino. E custará a Florentino uma espera impressionante de quase cinquenta e dois anos, para, por fim, a conquistar.
Pois é nesse mesmo portal, de má reputação, arcadas sob o corpo das muralhas, onde o autor instala os escrivães e onde o próprio Florentino se dedicará à escrita, colocando o seu talento ao serviço de amantes iliteratos a quem empresta parágrafos doces e irresistíveis, graciosamente. Ali, Fermina abrigando-se do calor, escuta as pregoeiras de doces que enchem o espaço convidando a comprar cocadas de piña para la niña e cocadas de coco para el loco. Ainda lá estão, banca após banca, com grandes frascos, elegantemente etiquetados, para tentar vontades mais frouxas.
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Na praça, estão os coches para levar a passear os amantes e os turistas, por esta altura já indistinguíveis, e um bulício perpétuo, a que as señoritas, acrescentam cor – a praça regurgita com prostituição.
É fácil começar a ver os locais como personagens dos romances. Figuras que conhecem as deixas e as declinam na perfeição. Impossível não recordar o episódio da estalajadeira que cobrava extra pela utilização da escada – indispensável para aceder aos quartos do primeiro andar – calando, candidamente, o cliente com: Já verás que em Cartagena tudo é diferente. Assim mesmo me respondeu a mulher que lavava roupa a peso, ali pelo final da Calle 36, que utilizava uma balança de pratos iguais, onde equilibrava a roupa do cliente com dois tipos diferentes de pedras a de 20.000 pesos e a de 50.000 pesos, quando atónito a questionei, também me respondeu como a estalajadeira.
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Adossado à muralha fica, o Museu de Arte Moderna, nos antigos armazéns do porto, frente à Igreja de São Pedro Claver. No museu temos novo encontro com o escritor, que parece ter-se obstinado em deixar-nos mensagens por toda a (sua) cidade. Entre as obras expostas, num texto de poucos parágrafos, uma reminiscência sobre o local, de quando era jornalista e arrastava as noites até chegar a madrugada, bebendo rum de cana e escutando as histórias do guarda-nocturno.
Em suma, Cartagena continua a valer-se e a valer a viagem, o betão excessivo – perdoem o pleonasmo – é mantido respeitosamente à distância, pelas muralhas que permanecem, orgulhosas, de pé. Talvez também por respeito às señoritas… em Cartagena as coisas não envelhecem, parafraseando-o de novo: em Cartagena preservou-se o tempo para que as coisas continuassem a ter a sua idade original enquanto os séculos envelheciam.
Entretanto, a atmosfera, espessa e húmida, desabrocha eflúvios de jasmim, gardénias e camélias, e cantos das aves, que esquivam os pregões, eternos, e o fumo dos havanos.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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