Em Abril deste ano no artigo “Como funciona a nossa cabeça?” abordámos a primeira Crítica do filósofo Immanuel Kant (1724-1804) ― Crítica da Razão Pura ― que versava sobre a problemática do conhecimento. Alguns dos participantes do Café Filosófico continuaram a manifestar um grande interesse em conhecer melhor o pensamento kantiano, assim, voltamos agora a este filósofo abordando a seguinte pergunta: o que é que acontece (dentro da nossa cabeça e não só…) quando dizemos “isto é belo”? Na terceira crítica ― Crítica da Faculdade do Juízo ― Kant olha para a natureza não para a investigar e a conhecer cientificamente, como faria na primeira crítica, mas para a contemplar: ocupa-se do sublime. No que ao homem respeita, Kant tem agora em conta a sua actividade artística, ocupando-se do belo na arte.
O filósofo percebeu com agudeza que, no estado contemplativo, o nosso modo de nos relacionarmos com o mundo natural ou com os objectos artísticos é muito diferente do modo científico. Assim, na Crítica da Faculdade do Juízo publicada em 1790 Kant dividiu o juízo de gosto em 4 momentos que o caracterizam:
1. Segundo a Qualidade: é estético;
2. Segundo a Quantidade: é objecto de um comprazimento universal;
3. Segundo a Relação dos Fins: repousa sobre fundamentos a priori: a simples forma da conformidade a fins de um objecto ou do seu modo de representação;
4. Segundo a modalidade do comprazimento do objecto: pressuposição de um sentido comum que permite o assentimento universal
1. Qualidade
Como vimos em Abril, no contexto da Crítica da Razão Pura, a Estética designa a “ciência de todos os princípios a priori da sensibilidade” na medida em que as duas formas puras da intuição – espaço e tempo – constituem uma condição para conhecimentos a priori dos objectos. Agora, na terceira crítica, Kant vem clarificar que a sensibilidade não é apenas uma forma de conhecimento confuso e, portanto, inferior pelo grau, mas é uma forma de conhecimento diferente da do entendimento por natureza e por função. O adjectivo estético designa aquilo que é intuitivo e que, por conseguinte, se relaciona directamente com a sensibilidade: exemplos, imagens, comparações, representações concretas. O intuitivo distingue-se do discursivo que consiste na exposição lógica mediante conceitos do entendimento. Neste sentido pode-se falar de perfeição estética quando ela ocorre segundo as leis da sensibilidade e de perfeição lógica quando ela ocorre segundo as leis do entendimento.
2. Quantidade
Kant considera também como sensibilidade e como estética aquilo que nas nossas representações é meramente subjectivo, isto é, aquilo que numa dada representação se refere ao sujeito e não entra, de modo algum, na determinação do objecto com vista ao conhecimento deste. Em rigor, estético designa o sentimento que acompanha o juízo de gosto. Porém, Kant especifica que o estético do juízo de gosto não é o privado da mera sensação de agrado, mas é um juízo – embora não lógico – que tem pretensão de universalidade.
Como é que um juízo que se baseia num sentimento que, por conseguinte, é subjectivo, pode pretender ser universal? Esta questão, caro leitor atento, está relacionada com o terceiro e quarto momento do juízo de gosto que veremos já a seguir.
3. Relação com os fins
Segundo Kant, a beleza não é uma qualidade dos objectos, mas um favor que o sujeito lhes atribui quando, na sua simples reflexão, os contempla desinteressadamente, isto é, quando não estamos a olhar para um objecto tendo em conta a sua utilidade ou a tentar investigá-lo. O juízo estético consiste na intuição ou contemplação da mera forma, na apreciação da teleoformidade da forma.
Aristóteles coloca na sua obra Poética a pergunta que inaugura o caminho das desde então chamadas Belas Artes: como posso sentir prazer na contemplação de um quadro que representa cadáveres repugnantes? Igualmente, podíamos perguntar-nos, por exemplo, como podemos sentir prazer na contemplação de um quadro cujas labaredas de fogo queimam um navio cheio de gente? Como é isto possível, caro leitor? Tal como no caso daquela adivinha “de que cor é o cavalo branco de napoleão?”, aqui também a resposta está contida na pergunta. É justamente por se tratar de uma representação que podemos sentir prazer. Se estivéssemos rodeados de cadáveres repugnantes, captando a sua realidade através de todos os nossos órgãos dos sentidos, ou se estivéssemos em pleno incêndio, correndo o risco de ser queimados, não haveria espaço para a contemplação artística. Esta só acontece se o sujeito que contempla está a salvo ― é uma condição sine qua non do juízo estético. O sentimento de prazer ou de desprazer que se experimenta na contemplação do objecto artístico atende, sobretudo, à forma da representação e não ao conteúdo do representado. É esta forma da representação que nos aparece tão maravilhosamente concebida, em palavras kantianas, como uma inexcedível conformidade ao fim que representa, embora esse mesmo fim seja inexistente: dir-se-ia que a forma da conformidade a fins é sem fim.
Kant esclarece que é graças a essa sua pureza ou condição meramente formal que o juízo de gosto se torna universalmente comunicável e pode ter a pretensão de uma validade universal, sem deixar de ser meramente subjectivo e não fundamentado num conceito.
4. Sentido Comum
O juízo de gosto postula o assentimento de qualquer um. Kant quer com isto dizer que quem declara algo belo considera que qualquer um deve aprovar o objecto em apreço e igualmente declará-lo belo. Somente sob a pressuposição de que exista um sentido comum – efeito decorrente do jogo livre das nossas faculdades de conhecimento – o juízo de gosto pode ser proferido. Esta afirmação, como o leitor atento já terá reparado, está nos antípodas do commumente aceite: “gostos não se discutem”. Segundo Kant os gostos discutem-se sim e muitíssimo! Precisamente, o juízo de gosto assenta sobre o nosso sentimento que é colocado como fundamento não como privado mas como um sentimento comunitário.
Se a base do juízo fosse um sentimento totalmente privado, do género “gosto de chocolate”, este teria que ver com a particularidade das papilas gustativas de um sujeito determinado e, por isso mesmo, seria indiscutível. Porém, quando estamos diante de uma obra de arte que consideramos bela, esse sentimento de beleza invade-nos não como privado mas como comunitário; quando sou arrebatada pela beleza de um objecto artístico ou pelo sublime da natureza sinto (bem nas entranhas) que qualquer outro ser humano no meu lugar ― i.e. qualquer outro que conseguisse nesse preciso momento ter o mesmo acesso que eu àquele objecto ― não poderia deixar de concordar comigo. É este sentido comum que serve de fundamento à pretensão de universalidade apresentada no segundo momento.
O leitor contestará que não há acordo em termos de gostos, que a vida nos mostra precisamente o conflito e a discordância no que a juízos estéticos refere. Sim, isso é certo. No entanto isso não invalida que no momento em que é proferido, o juízo de gosto venha imbuído desse sentimento de que não sou apenas eu, mas toda a humanidade comigo, que sentiria arrebatada pela beleza ou pelo sublime do objecto em causa.
Café Filosófico: Que acontece quando dizemos “isto é belo”? | 16 de Novembro | 18.30 | AP Maria Nova Lounge Hotel, Tavira
5€ inclui água aromatizada/cálice de vinho | Inscrições: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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