
Doutorada em Filosofia Contemporânea, investigadora da Universidade Nova de Lisboa
CRIME AMBIENTAL
Queremos matar quase 5000 bebés de várias espécies (por m2), incluindo cavalos marinhos?
Queremos incendiar todos os anos 200 hectares de floresta, e lançar todo esse dióxido de carbono para a atmosfera?
Queremos destruir a Ria Formosa?
Não se trata de sensacionalismo, é o que está prestes a acontecer, e passo a explicar porquê: foi recentemente à aprovação da Assembleia Municipal de Faro a proposta para abertura do procedimento concursal, para execução de aterros provisórios para construção do novo Porto de Recreio de Faro.

Obviamente, ao aterro sucederá uma zona de dragagem.

Com a dragagem necessária para a construção do Porto de Recreio de Faro, nesta localização, destroem-se cerca de 7 hectares de um habitat de ervas marinhas. Devido à remoção do sedimento que a obra implica, esta intervenção significa a emissão de 613 toneladas de CO2 para a atmosfera ― o equivalente a um incêndio de 200 hectares de floresta! Mas o desastre não termina aqui. A destruição destes quase 7 hectares de ervas marinhas tem como consequência que se deixem de remover 37 toneladas de CO2 da atmosfera, portanto, teremos, a partir de então, o equivalente a um incêndio de 2 hectares de floresta verde por ano, todos os anos! Irá também perder-se a remoção anual de 1,7 toneladas de azoto (este valor é cerca de 2% do azoto total que a ETAR de Montenegro remove por ano).

De acordo com a informação fornecida pelo Centro de Estudos de Ciências do Mar (CCMAR) da Universidade do Algarve as pradarias de ervas marinhas prestam serviços ecossistémicos fundamentais para o bem-estar das populações, a saber:
• são indispensáveis para a conservação da biodiversidade, proporcionando abrigo e berçário a muitas espécies, incluindo espécies comerciais de peixes, moluscos e crustáceos, bem como espécies icónicas como o cavalo-marinho. Na zona de dragagens necessárias a esta obra co-existem cerca de 4400 organismos por m2 de ervas marinhas. Centenas de milhões de pequenos crustáceos, gasterópodes, bivalves, serão sacrificados e jamais se reproduzirão. A função de berçário e maternidade de espécies que as ervas marinhas fornecem desaparecerá daquela área.
• são verdadeiros “rins” que filtram a água, removendo com elevada eficiência os nutrientes nela dissolvidos, provenientes dos efluentes urbanos e da agricultura, prevenindo fenómenos de eutrofização (excesso de nutrientes que induzem o crescimento excessivo de algas, que resulta no esgotamento do oxigénio quando as algas são decompostas pelas bactérias), bem como removendo a matéria em suspensão da coluna de água e diminuindo a turbidez;
• mitigam o aumento de CO2 na atmosfera/mar e a acidificação dos oceanos, porque removem o CO2 da água por fotossíntese (diminuindo a acidez) e armazenam carbono orgânico no sedimento. Esta capacidade de retirar carbono da atmosfera e de o armazenar é um dos principais serviços dos ecossistemas de carbono azul, os mangais, sapais e ervas marinhas. Como já tive ocasião de referir no artigo Ria Formosa: o pulmão azul publicado em Junho passado, estes ecossistemas têm a capacidade de sequestrar entre 8 a 30 vezes mais carbono da atmosfera do que uma floresta verde, o chamado carbono azul. Na situação de emergência climática em que nos encontramos, este sequestro de carbono azul não pode, de forma alguma, ser negligenciado!
Nos últimos 130 anos, perderam-se 2000 ha de sapais e ervas marinhas na Ria Formosa devido a intervenções humanas. Não podemos permitir mais este crime!
ALTERNATIVA SUSTENTÁVEL: Cais Comercial
Quem se dirige à zona do Cais Comercial de Faro, naquele que foi durante décadas um dos mais importantes portos da região, encontra agora um espaço quase abandonado. Desde 1997 que a sua actividade sofreu uma redução acentuada, devida em grande parte à concorrência da rodovia e do porto de Huelva.

Proponho agora, caro leitor, um exercício de visualização desta península de excepção, no centro da Ria Formosa.

Imagine-se a vir de bicicleta numa ciclovia que liga Faro ao Cais Comercial, agora transformado em Porto de Recreio. A apreciar toda esta beleza natural, há quem venha a pé, desde o Bom João, pelos caminhos de palafita através do sapal, e se encante com a avifauna aí existente. Há também quem tenha preferido apanhar o transporte eléctrico de superfície, que liga o centro histórico de Faro a este magnífico lugar.
Ao chegar, decide visitar o Aquário, situado do lado direito (a cor de rosa na imagem). O Aquário tem como modelo o Oceanário de Lisboa, mas numa versão mais contida, exibindo a flora e a fauna da Ria Formosa ― e, em edifício contíguo, numa continuidade morfológica que materializa a parceria a estabelecer entre entidades, o espaço dos laboratórios do Centro de Ciências do Mar (CCMAR) da Universidade do Algarve.
Do lado norte, sobre o espelho de água, surge uma estação náutica com 410 postos de amarração e, no canal principal da ria, a sul, um pequeno porto de abrigo, definido por um quebra-mar flutuante, oferece 65 espaços de amarração para as embarcações das actividades marítimo-turísticas sem qualquer necessidade de interferir com o fluir natural da ria. Aqui está também o cais de receção de embarcações visitantes, de acesso ao edifício do Centro Náutico que serve de posto de amarração para embarcações de maior calado que não conseguem acostar na bacia a norte. Aliás, uma linha de 200m disponíveis garante a possibilidade de acostagem de navios de maior porte sem necessidade de dragagens. Em breve o navio-escola Sagres aqui virá para deleite de todos nós, residentes e visitantes. Os seus filhos não se cansam de perguntar quando chega esse grande barco, ansiosos por o visitarem!
Continua o seu passeio de bicicleta e, junto à alameda central (a roxo na imagem), encontra os edifícios que acomodam as empresas emergentes nas áreas das ciências do mar e economia azul ― esta área inovadora em que Portugal se encontra na linha da frente! Sente-se satisfeito e orgulhoso do seu país que assim cria condições para o desenvolvimento sustentável e aposta nas gerações futuras.
Os edifícios a sul (em azul na imagem) acolhem as empresas e serviços relacionados com a náutica de recreio e da marina. Com a ria a circundar todo o perímetro, todos eles gozam de vistas magníficas, em primeira linha. No piso térreo o comércio e a restauração animam o espaço da rua, desenvolvendo-se os restantes serviços nos pisos superiores. As esplanadas, em estruturas de palafita de madeira sobre o plano inclinado, transformam-se em autênticos santuários de contemplação aquática.
Confinante com a estação náutica, na bacia norte, com geometria em U, um centro wellness e spa. Resolve ir lá perguntar qual é o preço das aulas de ioga, pois o médico recomendou-lhe que as frequentasse. Ir para a sauna ou para o banho turco a seguir parece-lhe verdadeiramente tentador!
Continua o seu passeio de bicicleta e, a nascente deste bloco, encontra um equipamento de residências para seniores, cujo posicionamento sobre a bacia norte da estação náutica lhes permite beneficiar de um ambiente propiciador de saúde e relaxamento. Esta possibilidade de avançar na idade com qualidade de vida confere esperança! Já a poente do bloco em U surge uma unidade hoteleira de nível médio, para apoio aos nautas em viagem ou residentes, aos visitantes de encontros e trabalhos da investigação científica que se desenvolvem nos laboratórios do CCMAR, ou para os entusiastas do ecoturismo e do turismo de natureza. Este equipamento tira igual partido da tomada de vistas sobre a bacia norte da estação náutica e da proximidade ao centro de wellness e spa.
No extremo sudeste (extremo direito da imagem) surge um outro equipamento hoteleiro, de nível mais elevado, dotado de um Centro de Congressos, que o hotel viabiliza e explora, articulando com o Aquário e com os espaços laboratoriais do CCMAR. Este hotel goza de uma posição privilegiada a nascente, com vistas desimpedidas a 180º sobre o canal principal de ria e sobre o sapal na entrada da bacia norte da estação náutica. A sua localização permite oferecer aos hóspedes um espaço de jardim e solário com piscina de água salgada, introduzindo uma outra categoria de resposta para procuras mais exigentes entre os nautas, cientistas ou turistas da natureza. Um cartaz anuncia o Congresso Internacional de Carbono Azul que irá ter lugar aqui mesmo, já para a semana, reunindo os maiores especialistas de todo o mundo.
***
Estarei inspirada, caro leitor? Não, nada disto é ideia minha. Acabo de partilhar consigo, de forma resumida, o “Cenário 3” proposto no documento “Plano De Ordenamento do Espaço Afeto ao Porto Comercial De Faro e ao Cais Comercial ― Avaliação Ambiental Estratégica” elaborado pela Universidade do Algarve para a Administração dos Portos de Sines e do Algarve em 2018.
Por vezes as questões ambientais, económicas e de bem-estar imediato das populações entram em conflito. Porém, neste caso específico, existe uma alternativa não apenas viável, mas com consequência muito positivas para o ambiente e desenvolvimento estratégico da região.
Como é possível que as autoridades políticas abram concurso para uma localização com efeitos tenebrosos para todos nós, incorrendo num crime ambiental? É nosso dever, também para com as gerações futuras, impedir este desastre. A alternativa sustentável está estudada, basta executá-la. De que estamos à espera? Acordai!
Cafés Filosóficos de Dezembro:
Convidado: Rui Santos, Investigador Sénior do CCMAR
14 de Dezembro | Português | 18.30 | Clube de Tavira
15 December | English | 6.30 pm | Clube de Tavira
19 Dezembro | Português | 21.00 | Clube Farense, Faro
Inscrições: [email protected]
Contribuição: 5€
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
Leia também: Que acontece quando dizemos “isto é belo”? | Por Maria João Neves