Que acontece quando chamamos ao mundo que nos rodeia meio ambiente? Que tipo de relação estabelecemos com esse meio? Esta expressão reduz a natureza a um mero pano de fundo da nossa existência humana, que assim nos aparece muito mais preponderante e importante. Quando reduzimos a natureza a mera fisicalidade, a mera matéria ― physis ― quando a despojamos de alma e de todo o sagrado de que estava imbuída até ao surgimento dos filósofos pré-socráticos ― primeiros cientistas do ocidente ― passamos a poder tratá-la como se apenas fosse um objecto. Daqui derivam todas as consequências nefastas do uso e abuso que dela fazemos.
O filósofo americano Jacob Needleman na sua obra The Heart of Philosophy afirma: “Vivemos numa época de repressão metafísica que deve ser levantada. ”Como fazê-lo? A filósofa australiana Freya Mathews, na sua obra For Love of Matter: A Contemporary Panpsychism aponta um dardo para o coração desta repressão. Para insuflar vida de volta ao cadáver que a metafísica moderna, ao reprimir, fez da natureza, exigir-se-á nada menos que uma “metafísica da reanimação”, de tendência panpsiquista, por forma a permitir que o deslumbramento do encontro entre nós e a natureza ocorra novamente.
Três perguntas se apresentam imediatamente ao leitor curioso:
1) O que se entende por uma metafísica panpsiquista?
2) Que razões existem para a considerar?
3) Considerando-a, terá ela o poder de efetuar uma mudança de escopo e escala necessárias para impedir uma catástrofe ecológica?
Sobre a primeira questão Mathews defende que a mente e a matéria formam uma unidade, e que a subjetividade é fundamental; trata-se de uma característica irredutível da realidade. A filósofa afirma que a aceitação da subjetividade como um elemento inseparável da materialidade é a chave para reanimar o universo.
No segundo capítulo ― Um argumento do realismo ― ela descreve a subjetividade como uma espécie de “presença-a-si” ou “auto-presença” da matéria, e convida-nos a considerar, por analogia, a forma como o corpo adormecido “ocupa o espaço tanto por dentro como de fora.” Mathews afirma que a subjectividade “não é necessariamente idêntica a pensamentos, sentimentos ou sensações, mas pode ser vista como subjacente a estes.”
No Capítulo 3 ― O Caminho do Um e dos Muitos ―, a filósofa desenvolve a visão de uma subjetividade que explica do seguinte modo: “a partir do momento em que um organismo está faminto de contacto com seu mundo, ele buscará perseverar em existência… O desejo pode ser interpretado como o desejo de imergir no mundo, de participar plenamente na realidade. O apetite, como expressão de desejo, leva-nos não apenas ao prazer, mas à conexão.”
Do meu ponto de vista, voltar a sentir a conexão com a natureza é aquilo de que mais necessitamos neste momento. Apenas religando a satisfação do desejo humano com a saúde da Terra se provocará uma mudança de atitude neste mundo que intoxicámos de tecnologia e consumo.
Como afirma Glen Cosby, investigador americano que publicou uma resenha da obra que hoje nos debruçamos: “Do esforço cego da vontade de Schopenhauer, para as maquinações cruéis da vontade de poder de Nietzsche, à infantilidade da libido de Freud, o desejo tem sido frequentemente representado, na linguagem moderna da filosofia, como egocêntrico, ao ponto do solipsismo. Não é de admirar então que o capitalismo de consumo se concentre no que é auto-absorvido em nós, e não no que é dirigido aos outros, e também não é de admirar que tal adulação tenha trazido história humana para a beira do biocídio. (…) Se houver alguma esperança para aquilo que Kant considera um acto belo, quer dizer, um acto no qual o nosso desejo espontâneo e a nossa mais alta vocação moral coincidem, então o objeto do desejo deve ser algo mais do que apenas estar ido ao mundo de um modo consumista.”
Mathews postula algo mais: um lidar que não é nem representação nem explicação, é agora necessário para a nossa abordagem à realidade, e tal relacionamento deve ser integrado em todas as nossas práticas sociais e pessoais. “Do ponto de vista panpsiquista, o objetivo não é teorizar o mundo, mas relacionar-se com ele, e regozijar-se nesse relacionamento.”
A filósofa australiana quer redescobrir Eros como o leitmotiv da existência, e entendê-lo como desejo para um encontro significativo com o mundo. Esta proposta é longamente discutida no Capítulo 4 ― A prioridade do encontro sobre o conhecimento ―, e leva-nos muito longe tentando responder à terceira pergunta feita acima. Para Mathews, “o seguidor do caminho de Eros realiza-se no encontro, mas esta procura do outro não tem como objectivo a satisfação própria; procura-se o outro e é por isso que o contacto com esse outro é gratificante.” Eros, como o desejo de concurso intersubjetivo com o mundo, pressupõe o panpsiquismo. O encontro com outros seres implica querer encontrá-los como eles são, não como nós desejaríamos que fossem, implica vontade de preservar o seu modo de ser ― a ética ambiental parece assim ser intrínseca a uma metafísica panpsiquista.
Sobre a segunda questão, colocada acima, podemos verificar que há um argumento psicológico para o panpsiquismo: um mundo composto por matéria morta é incapaz de responder aos nossos desejos mais profundos de conectividade e relacionamento. Mas como podemos ter certeza de que aceitar uma metafísica panpsiquista não é a mera realização de um desejo, uma tentativa de ocultar a horrível e alienante verdade sobre a realidade? Não é fácil responder com brevidade (e já me sobram muito poucos caracteres). Freya Mathews propõe dois tipos de argumento:
1. Argumento epistemológico: se a mente e a matéria são substâncias fundamentalmente diferentes, como podemos ter certeza de que as lentes mentais através das quais temos acesso à materialidade não estão distorcidas, ou que a própria realidade não passa de uma mera projeção nossa? A resposta, que a filósofa apelida de “argumento da revelação”, consiste em que podemos ter certeza de que existe um mundo lá fora que não foi construído por nós, ou que é fruto da nossa projeção, porque nos tornamos conscientes de outros pontos de vista que não os nossos, pontos de vista que invadem as nossas próprias tendências para o egocentrismo e solipsismo;
2. Argumento metafísico, subdivide-se em duas partes:
2.1 O fracasso das propostas materialistas para resolver o problema de como características aparentemente irredutíveis da consciência, poderiam ter surgido de estados materiais que não apenas carecem deles, mas são definidos contraditoriamente a eles. Ex: o facto de que os estados mentais são frequentemente sobre ou se referem a coisas além do que eles próprios são; e os qualia ― estados sentidos em primeira pessoa, como sentir dor ou saborear um chocolate;
2.2 para ser capaz de conceber um mundo com o qual eu me possa relacionar, devo recordar que eu também, juntamente com minha consciência subjectiva, faço parte desta realidade; não sou um espectador desapegado e, portanto, a consistência exige que eu suponha que a realidade, tal como eu, tenha uma vida interior própria e não seja considerada inanimada;
O que mudaria se todos os humanos estivessem convencidos, como Mathews propõe, de que o mundo é uma entidade animada?
Bem, em primeiro lugar, consideraríamos a matéria como amiga, não como inimiga. Ar, água, sol, comida são nossos suportes de vida. Consumiríamos o que precisamos e não mais do que precisamos. A maior parte do nosso consumo hoje em dia ocorre porque perdemos o encanto da nossa infância e trocamo-lo por satisfações e diversões temporárias. Porém, a pessoa encantada com a natureza não precisa de bens e serviços para se entreter, ela já está lá, por isso vai consumir menos e produzir muito menos lixo. O encantamento desabilita atitudes egocêntricas, é contagiante e ajuda a gerar consenso para melhorar as condições de vida de todos. A consciência do mundo como um organismo animado também impede danos deliberados de outros. O outro lado desse aspecto é que precisamos de muito menos recursos e meios para não sermos prejudicados por outros. O encantamento com a matéria que nos rodeia permite reconhecer que estamos todos na mesma jornada, conclusão a que podemos chegar por vários caminhos, incluindo o deste discurso filosófico.
No mês passado reflectimos sobre o sequestro e armazenamento de carbono que é realizado pela nossa Ria Formosa ― o chamado carbono azul ― que tanto contribui para diminuir a devastação provocada pelo aumento de carbono na atmosfera, tão responsável pelas alterações climáticas que padecemos.
A Ria Formosa já faz tanto, que podemos nós fazer? Podemos reconectar com a natureza, voltar a encantar-nos com ela. Algo se tem feito no sentido de consciencialização dos problemas, mas falta o sentir! Apenas esse arrebatamento amoroso poderá ter a força e a rapidez necessárias para actuar nos sentido de salvação deste belo planeta que não possuímos, ao qual ― estejamos agradecidos ― pertencemos.
Café Filosófico 20 Julho 2023 | 18:30 | AP Maria Nova Lounge Hotel, Tavira | 5€
Inclui água aromatizada / cálice de vinho | inscrições: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia