Ninguém duvida da profundidade de pensamento da poesia de Fernando Pessoa. Porém, o que talvez não seja do conhecimento geral, é que Pessoa ortónimo escreveu deliberadamente textos filosóficos e criou um heterónimo, António Mora, que muito se dedicou à filosofia. De acordo com a biografia de Pessoa, elaborada por Richard Zenith, António Mora surge num conto em 1909 “era um louco obcecado com a Grécia que usava toga e vivia num manicómio” em Cascais. O empenho neste texto esmorece mas, anos mais tarde, ressurge como Dr. António Mora, teórico do neopaganismo que tem, juntamente com Ricardo Reis, a função de trazer os melhores aspectos da civilização grega para o mundo moderno.
No mês passado com o artigo “Afinal como é o mundo?” abordámos o problema ontológico a partir das dificuldades em conciliar a física clássica com a física quântica. Agora veremos como o abordam Pessoa e Mora e que consequências daí extrair.
Pessoa filósofo coloca a pergunta ontológica primordial: “o que é a realidade?” Em segundo lugar questiona-se sobre se o mundo que vemos pode ser considerado realidade. Caso o não seja, que será então? Daqui decorre o problema metafísico que Pessoa enuncia deste modo: “1. O mundo tem um começo no tempo e um limite no espaço? 2. A existência do mundo real é necessária ou contingente?”
Através de António Mora esta investigação adquire uma forma mais sistemática. Num texto intitulado Introdução ao estudo da metafísica estabelecem-se doze princípios basilares. Não sendo possível, devido ao limite de espaço, abordar todos eles, concentrar-me-ei nos que me parecem relevantes para a questão ontológica. O primeiro responde-lhe de forma directa e sucinta: “1. Há só duas realidades: a Consciência e a Matéria.”
O segundo princípio aborda imediatamente o centro nevrálgico do qual deriva, para mim, um dos maiores problemas da nossa época: o materialismo científico. O Dr. Mora escreve: “2. A Consciência é para nós incognoscível; só podemos saber que ela é consciência. Mas não é só isto. Não pode ser conhecida, não há que haver conhecimento dela. Aquilo a que se chama ‘conhecimento’ é uma coisa que só se pode ter do mundo exterior. Conhecer uma coisa é apreendê‑la sob quantos aspectos ela comporta sob os nossos sentidos. Não pode portanto haver conhecimento da Consciência; porque, mesmo que conhecimento signifique propriamente consciência, não há consciência da consciência, por muito que pareça que a há. A consciência é.”
De acordo com o ponto de vista do materialismo científico, o mundo físico é a única realidade existente. Geram-no forças naturais, impessoais e totalmente desprovidas de valores morais intrínsecos. Não só a vida em geral mas mesmo a vida humana, com os seus sentimentos e desejos, carece de valor ou significado para além daquele que a ela própria se atribui. Esta doutrina considera ainda que todas as experiências e acções são determinadas unicamente pelo corpo ou por forças impessoais do meio físico. Conclui que a consciência não desempenha qualquer papel pois não havendo a possibilidade de obter dados objectivos a seu respeito a sua existência não pode ser corroborada. Mora não chega a este resultado aberrante, como vimos acima, afirma que a consciência é incognoscível mas é. Não põe em causa a sua existência.
Quanto às diferenças de percepção esclarece-nos o ponto 3: “O mundo-exterior é real como nos é dado. As diferenças que há entre a minha visão do mundo e a dos outros é uma diferença de sistemas nervosos. Os sistemas nervosos são partes dessa realidade exterior. (…) A ciência estuda — não as leis fundamentais do mundo-exterior, ou Realidade, porque não há leis fundamentais do mundo-exterior: ela é a sua própria lei — mas as normas segundo as quais os fenómenos se manifestam, isto, não com o fim de saber, mas com o fim de utilizar para nosso conforto e proveito os ‘conhecimentos’ adquiridos.” Aqui existe uma afinidade com a posição kantiana de acordo com a qual nunca jamais poderemos conhecer o que a realidade é em si ― aquilo que Kant denominou númeno ― podemos apenas conhecer aquilo que percepcionamos: o fenómeno. Mora reduz também a ambição científica a uma questão de utilidade em vez de conhecimento.
Saltamos o ponto quatro no qual se aborda o antropomorfismo que caracteriza o modo humano de lidar com a natureza, e vamos directamente ao ponto seguinte no qual se aborda a crescente complexidade do real: “5. Quanto mais a evolução se complica mais complexo e nítido vai sendo o nosso senso da Realidade. Ela é cada vez mais real, mais material. Se a ‘espiritualidade’ importa um apagamento do senso das coisas, nada há tão espiritual como uma amiba, e um pargo ou uma pescada têm vantagens espirituais sobre o homem. O espiritualismo, o idealismo são estados regressivos da mentalidade humana; como que saudades de épocas pré-humanas do cérebro em que o Exterior era menos complexo. A tendência espiritualista ou idealista é uma incapacidade de arcar de frente com a complexidade da Natureza. Querer simplificar a Natureza é querer ter dela um sentido de peixe ou de invertebrado mesmo.” Mora reage fortemente às tentativas de simplificação do real com vista ao apaziguamento. Percebe-se que é com sarcasmo, embora de forma velada, que crítica o pensamento religioso e o idealismo. Contudo, não se detém a apontar especificamente de que forma é que essa simplificação se dá. O ponto seguinte contribui apenas um pouco para este esclarecimento: “6. Querer encontrar às coisas um íntimo sentido, uma ‘explicação’ qualquer é, no fundo, querer simplifica-las, querer pô-las num nível em que caiam sob um sentido só — o que aconteceu em épocas idas a bichos nossos antepassados pouco abundantes de sentidos.” O ponto 11. parece retomar em força esta tese de que o esforço em prol da unidade, implica uma simplificação que, por sua vez, implica um retrocesso: “A maioria das manifestações, a que é uso chamar superiores, do nosso espírito, são realmente regressos doentios a estados de consciência anteriores à humanidade. Já se mostrou que o sono dos faquires é uma regressão ao sono hibernal de certos animais. — O domínio do corpo, que os ditos ‘iniciados’ índios e outros pregam, mais não é do que um desvio da inibição.”
No ponto 7. estabelece-se o propósito utilitário de toda a ciência, filosofia e arte: “A função própria da inteligência é servir a vida. O emprego da inteligência, em filosofar, só pode ter, pois, legitimamente, um qualquer sentido utilitário. (Querer descobrir a verdade pode ter um fim utilitário no conceito religioso de querer saber qual deve ser a nossa conduta, para obter o paraíso, por ex.). A Ciência deve servir a vida. A arte tem por fim repousar o espírito. É o sono das civilizações. A filosofia entra na categoria da arte. — A filosofia foi primeiro uma ‘ciência’: tinha por fim descobrir a verdade para o fim utilitário de nos governarmos na vida; porque, se se julga que há uma vida futura, com castigos e recompensas, não é por certo pouco importante saber-se o que se deve fazer para evitar uns e merecer outros. Hoje a filosofia deve passar a ser uma arte — a arte de construir sistemas do Universo, sem outro fim que o de entreter e distrair, publicando belos sistemas.” Esta secção posiciona-se de forma displicente com respeito à filosofia, retirando-lhe o seu propósito intrínseco ― o desejo de conhecer, a inquietude intelectual que move o amante da sabedoria ― desqualificando-a para uma tarefa de entretenimento. Tal como esclarece mais adiante: “Todos os sistemas filosóficos devem ser estudados como obras de arte. Nenhuma arte é feita com o fim de entreter, mas é para isso que ela serve. O artista toma o seu papel mais a sério.”
Sobre a função da arte versa o ponto 10: “A Beleza não existe. É um modo de repouso do espírito. O espírito, à medida que aumenta a sua actividade, busca novos modos de repouso. A arte é o mais elevado deles.” Depreende-se que Mora postula que a beleza não é uma propriedade das coisas, daí a sua inexistência, é uma qualidade que o sujeito atribui ao objecto contemplado sendo constitutivamente subjectiva. Também aqui se verifica o acordo com Kant, na sua terceira crítica, que versa sobre a faculdade de julgar, actuando de forma autártica a respeito da natureza e da arte. Ainda sobre as afinidades entre a metafísica e a arte, Mora escreve num fragmento: “A metafísica é uma arte porque tem as características da obra de arte: a subjectividade (isto é, o ser a expressão de um temperamento), a incerteza da base em que assenta, e a directa inutilidade prática.”
Cumpre precisar que inutilidade não é necessariamente um mal. Mora, num texto intitulado A metafísica na sua essência, também o reconhece: “Só uma longa experiência humana, acumulada e transmitida, pôde criar um tipo de homem primeiro inactivo, por quaisquer circunstâncias que atenuassem o estado de guerra inevitavelmente primitivo (primordial) entre os humanos, e depois, por apuramento especializado desses inactivos, o tipo já propriamente especulativo.”
Na Antiguidade Clássica, berço da nossa civilização, foi amplamente reconhecido que a filosofia ― esse amor pelo saber em si mesmo, independente da sua utilidade imediata ― nasce do ócio. Quem a ela se dedica pode fazê-lo livremente, porque tem a sua sobrevivência assegurada. Facto em virtude do qual a filosofia recebeu o epíteto de ciência dos deuses. O ócio era então muito bem visto. Contrariamente à nossa época que só valoriza a utilidade e o negócio, que como o próprio nome indica, consiste na negação do ócio (neg-ócio).
Café Filosófico | 20 Outubro | 18.30 | AP Maria Nova Lounge Hotel, Tavira
Inscrições: [email protected]
* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico
* Doutorada em Filosofia Contemporânea;
Investigadora da Universidade Nova de Lisboa