Acabamos de entrar num verão dito “normal”: sem confinamento, com livre acesso às praias, sem máscaras na cara… Este regresso à normalidade pode fazer-nos esquecer o passado recente. Há precisamente um ano atrás, no artigo que escrevi para este jornal, intitulado Possuir ou Pertencer falei da “invasão” das cidades pelos animais selvagens. Dos pavões da Índia aos cervos do Japão, das cabras britânicas aos javalis portugueses, por todo o mundo se registaram estas ocorrências. Os habitantes das cidades “invadidas” dividiam-se entre alarmados e deliciados. Contudo, existiu uma experiência que a todos agradou: escutar o canto dos pássaros à alvorada (em vez das buzinas e dos motores dos automóveis). Inexplicavelmente, apressámo-nos a recuperar a “normalidade” barulhenta esquecendo o prazer que a tranquilidade auditiva nos trouxe.
A poluição sonora é uma ameaça invisível que paira sobre todos nós. Um estudo publicado na revista científica Biology Letters em 2019 mostra como o ruído antropogenético ― ruído causado pela actividade humana ― está a afectar os animais. Os cientistas descobriram que a poluição sonora que causamos está a fazer-se sentir em muitas espécies de anfíbios, artrópodes, aves, peixes, mamíferos, moluscos e répteis. Os animais marinhos que dependem dos sons e das vibrações para caçar, vêem-se prejudicados devido ao ruído do tráfego marítimo, das plataformas de exploração de petróleo, dos sonares militares, etc. Animais terrestres como as rãs, por exemplo, que usam os sentidos auditivo e vocal para o acasalamento, não conseguem expressar-se e ouvir-se devidamente, e ficam sem par. As tartarugas marinhas, que usam a audição como meio de navegação e de localização dos seus predadores, têm registado perdas auditivas, enganam-se nas rotas e tornam-se presas muito vulneráveis. Até as aves do Jardim Zoológico de Lisboa se vêem obrigadas a alterar a sua frequência de canto devido à poluição sonora, testemunhou Alice Veiros, educadora ambiental nesta instituição.
Por causa do barulho, as tartarugas estão a ensurdecer, os pássaros estão a modificar o seu canto, as rãs não conseguem acasalar… O que estará a acontecer connosco?
É fim de semana e preparamo-nos para desfrutar do tempo livre. Vamos ao cabeleireiro e somos expostos ao ruído excruciante dos secadores de cabelo. Decidimos comprar roupa nova e a “música de animar compras” está altíssima e bombardeia-nos os ouvidos. Chegamos a casa e queremos descansar um pouco, mas o vizinho de um lado tem a música em altos berros, e o vizinho do outro lado resolveu tratar do jardim: levamos com o heavy motor do cortador de relva, da serra eléctrica e do soprador.
Enfim, animemo-nos que vamos jantar com amigos que não vemos há imenso tempo! Sentamo-nos à mesa e a conversa flui animadamente. Porém, essa fluidez dura pouco. O restaurante contratou uma banda para nos animar enquanto comemos. Devido ao volume amplificado em que cantam e tocam, já não se consegue falar nem ouvir quem quer que seja. Abrimos a boca para comer, ou para fazer coro com a banda, que vomita os êxitos pop em covers de gosto duvidoso.
Parece ficção, bem sei, mas há um ou dois séculos atrás existiam espaços públicos em que era possível conversar. Que teria sido de Fernando Pessoa, de Mário de Sá Carneiro, de Santa Rita Pintor, sem o Café Nicola, a Brasileira, ou o Martinho da Arcada? Que teria sido de Paul Signac, de Erik Satie, de Claude Debussy, ou de Paul Verlaine sem o cabaret Le Chat Noir de Paris?
Amanhã será um dia melhor, vamos à praia! Não é que todos os habitantes da cidade e arredores tiveram a mesma ideia? As sombrinhas, de tão juntas, obrigam-nos a partilhar visual e auditivamente as vidas uns dos outros. Inteiramo-nos das mazelas da avó da sombrinha de trás, do relato de futebol da sombrinha do lado, e quando o bebé da sombrinha da frente desata a berrar achamos que o melhor é ir caminhar à beira mar. A amiga que não vemos há muito tempo também vem. Enquanto caminhamos ― fala, fala, fala, fala ― conta tudo o que ficou por dizer ontem, à mesa de jantar. Chego a casa e dou por mim a constatar que estive na praia e não ouvi o mar.
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Relendo o que escrevi apercebo-me que posso dividir estes horrores sonoros em 2 categorias: os ruídos evitáveis e os não evitáveis. Nesta última secção encontram-se os motores de combustão, por exemplo, que não se transformarão em silenciosos motores eléctricos ou a hidrogénio por um passe de mágica. Na categoria evitáveis estão todas as actividades de animação e entretenimento ― bastaria não as fazer acontecer! ― mais as nossas conversas de chacha, com maior ou menor volume, totalmente prescindíveis. Indo um pouco mais fundo, ou talvez criando uma categoria mais subtil teríamos o a evitar e nela incluiríamos todos os nossos pensamentos tóxicos e a contínua ruminação mental patente na maioria de nós.
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Na origem, a filosofia surgiu na forma da oralidade. Sócrates interpelava as pessoas que encontrava ao passear pelo mercado; nunca escreveu. Platão, que tanto escreveu, falou-nos persistentemente das limitações da escrita (veja-se a Carta Sétima, por exemplo). A sua vasta obra permanece intimamente ligada à conduta oral, na forma de diálogo. Apenas a dialógica possibilita ao discípulo descobrir a verdade por si mesmo na interacção entre perguntas e respostas, e permite também ao mestre adaptar o seu ensino às necessidades do educando.
Com o tempo, a sensibilidade sonora foi sendo erradicada da filosofia ocidental e o filosofar oral foi depreciado. A Academia considerou que o som da voz e a essência do som como movimento deviam ser sacrificados em favor da sustentação do pensamento através da escrita. Porém, o som é muito mais para o discurso do que um meio de transporte passivo. Através do som articulado da fala, podemos ouvir-nos uns aos outros pensar. Ouvir, como observou Hegel, é um sentido corporal, interior e transitório, radicalmente diferente da clareza, estabilidade e fria inércia do mundo visual. Ouvir, lembra Burrows, é ser tocado e envolvido, e a voz é o limiar entre o eu e o outro.
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No Café Filosófico os participantes encontram-se presencialmente, ou on-line, ou em formato misto. A reflexão surge tendo por base estes artigos que publico mensalmente aqui, no Cultura.Sul. Reunimo-nos para pensar juntos. O acto de pensar é, normalmente, privado. O pensador tem por hábito retirar-se da actividade social. No Café Filosófico, os participantes resistem conscientemente a esse impulso, procurando evitar a habitual insularidade do pensar. Reflectir em conjunto exige coordenação e sensibilidade ao tempo do outro: esperar que a opacidade de uma ideia se dissipe, qual neblina, para que possamos passear juntos pela mesma paisagem filosófica.
O que fazemos é ouvir-nos uns aos outros. Ouvir é participação, enfatizando a semelhança com a fonte e não a diferença em relação a ela. E falar são também as pausas, a respiração entre as palavras, os silêncios. Sendo por definição um espaço de encontro informal, o Café Filosófico acontece em locais públicos, abertos a qualquer um que queira participar. Há 7 anos que ando a fugir do ruído e das “animações” destes sítios, buscando um lugar vazio e silencioso, mas fértil de possibilidades, como a clareira de um bosque. Juntos queremos resgatar o som do pensamento.
Próximo Café Filosófico: 24 de Junho às 18:30, no Hotel AP Maria Nova Lounge
Inscrições e informações: [email protected]
* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico