ÁGUA COMO OURO
Tudo o que vive no planeta está associado à água, os ecossistemas em geral e os seres humanos em particular, cuja saúde e desenvolvimento dela dependem. Foi essa consciência que levou a ONU, em 2010, a reconhecer o direito à água limpa e segura como um direito humano fundamental, acrescentado à Declaração Universal de 1948. E este direito inalienável tanto se aplica aos 2,1 biliões de pessoas que no mundo subdesenvolvido não têm acesso a água potável, como aos passageiros que, encurralados nas gares de embarque ou dentro das aeronaves, se vêem sujeitos à exploração desenfreada dos concessionários daquelas infraestruturas públicas que não têm remorso de vender uma simples garrafinha com 33 centilitros de água que se compra num supermercado por 15 cêntimos, a preços que variam dos 3, 4 e mesmo 5 euros por unidade. Se isto não é especulação, usura, abuso, o que é? Qual foi a mais-valia? Qual foi o valor acrescentado? Ganância pura! Claro que a alternativa a comprar, seria o passageiro levar consigo próprio a água que prevê consumir, tal como pode levar uma sandes de presunto ou uma peça de fruta.
O que esperam os eurodeputados, o que espera a Comissão Europeia, para harmonizar as regras em todos os aeroportos da União Europeia? Pensem nos cidadãos
Infelizmente, tal não é possível desde 2006, em nome de outro valor inalienável: a segurança das pessoas. A Scotland Yard descobriu os planos de uma organização terrorista que tencionava fazer explodir um avião durante uma viagem entre o Reino Unido e os Estados Unidos da América, causando explosões com líquidos químicos transportados na bagagem de mão. O aeroporto de Heathrow foi fechado, 24 implicados foram presos, e desde essa data ficámos todos reféns da proibição de levar mais de 100 ml de qualquer líquido, seja perfume, gel, creme, óleo, loção, pasta de dentes, cerveja, refrigerante ou…, água! O que quer que seja, tem que ir bem-acondicionado em saco transparente de 20cmx20cm, que possa ser aberto e fechado de novo. O passageiro, qualquer passageiro, um de nós, passou a ser olhado com desconfiança, terrorista potencial, que pretende transpor o controle dos seguranças, regra geral com cara de poucos amigos. Qualquer garrafinha de água que, por tentativa ou por esquecimento, ouse tentar passar o raio-x ou o pórtico detector de metais, ALTO! E pára o baile, lixo com ela. Um desperdício.
O mal de uns, acaba por ser o bem de outros, neste caso dos estabelecimentos de restauração, das máquinas de vending e das lojas eufemisticamente designadas de Duty Free. Entrado num espaço onde os concorrentes estão alinhados no propósito comum de esmifrar o passageiro até ao máximo possível, o viajante com sede deixa de ter alternativa real e é explorado de uma maneira moralmente inaceitável, porque a água é um bem essencial, não é um luxo. Os preços cobrados pela água nos aeroportos de Portugal, e por esse mundo fora, são uma ofensa aos direitos do consumidor. Uma autêntica extorsão, um aproveitamento oportunista de gerar lucros excessivos à custa de uma necessidade básica dos utentes. Poderia existir uma saída. Levar uma garrafa vazia para reencher dentro da área de embarque. Mas ainda são poucos os aeroportos que oferecem fontes de água e bebedouros de água potável para esse reenchimento (Ponta Delgada é uma honrosa excepção, do nosso conhecimento). E a alternativa de o fazer na torneira dos WC’s não parece muito atractiva.
O movimento de passageiros massificou-se, na mesma proporção do turismo de massas. O preço das viagens, através das companhias “low cost” democratizaram o acesso às viagens aéreas por parte de uma parte substancial da população, de capacidade financeira moderada ou reduzida. São biliões de pessoas. É muita gente.
As greves, as esperas prolongadas e os embarques atrasados são frequentes, o que obriga a maiores necessidades de hidratação, que não se compadecem com o preço escandaloso da água nos aeroportos. São poucos os privilegiados com acesso aos lounges das companhias aéreas. No Reino Unido, dos 30 aeroportos, apenas 12 têm fontes de água potável. Outros países existem onde foi estabelecido em um euro o preço a cobrar pela garrafa de água. Em Lisboa é possível encontrar uma máquina destas.
Há dias, vivi uma situação ainda mais caricata, a bordo de um avião da Ryanair. Durante o voo, tive sede. Tentei comprar uma garrafa de água (3,00 €). Recusado. Já não recebem dinheiro em espécie, e só aceitam cartões de crédito ou débito de determinados bancos. Desavisado destas regras novas, aguentei três horas a sede de Sonora. Perante estas discrepâncias, e as diferentes soluções entre fontes de água gratuita ou venda a preço limitado, pergunta-se: o que esperam os eurodeputados, o que espera a Comissão Europeia, para harmonizar as regras em todos os aeroportos da União Europeia? Pensem nos cidadãos.
Num sentido bíblico, a água pode ser um símbolo de destruição, de limpeza, de bênção ou de necessidade espiritual. Mas um copo de água não se nega a ninguém! Nem que fosse com um cocharro.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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