Desde 1950 que o dia 1 de Junho é considerado o Dia Internacional da Criança. A iniciativa partiu das Nações Unidas para alertar para os problemas de fome e escassez de cuidados médicos que muitas crianças enfrentavam no pós-guerra. Quase quarenta anos mais tarde, a 20 de Novembro de 1989 as Nações Unidas adoptaram, por unanimidade, a Convenção sobre os Direitos da Criança.
Importa salientar que este documento não é apenas uma declaração de princípios gerais; quando ratificada, a Convenção representa um vínculo jurídico para os estados que a ela aderem, os quais devem adequar as normas de Direito interno às da Convenção, para a promoção e protecção eficaz dos direitos e liberdades nela consagrados.
A Convenção sobre os Direitos da Criança contém 54 artigos, que podem ser divididos em quatro categorias:
- Os direitos relativos à sobrevivência, estabelecem a garantia de acesso a serviços básicos e cuidados médicos adequados.
- Os direitos relativos ao desenvolvimento, sublinham a importância vital da igualdade de oportunidades, e postulam o direito à educação. Orientam-se pelo princípio da não discriminação que almeja que todas as crianças em quaisquer circunstâncias, em qualquer parte do mundo, em qualquer momento, desenvolvam todo o seu potencial. (Que bom seria! Parece um sonho!)
- Os direitos relativos à protecção, consciencializando-se da vulnerabilidade da criança estipulam o seu interesse superior, isto é, a criança deve ser a consideração prioritária em todas as acções e decisões que lhe digam respeito. Não pode ser subjugada, ameaçada, explorada, etc.
- Os direitos de participação, estabelecem que a criança tem o direito de ser ouvida e de dar a sua opinião em todos os assuntos que lhe digam respeito; dá-se voz à criança.
Este tratado internacional foi ratificado pela quase totalidade dos estados do mundo. Porém, os Estados Unidos da América ainda não o fizeram. Portugal ratificou a Convenção dos Direitos da Criança em 21 de Setembro de 1990.
Estima-se que são cerca de 30 as actuais guerras que grassam pelo mundo. Nos telejornais portugueses aparecem sobretudo aquelas que nos são “mais próximas”: a invasão da Ucrânia pela Rússia em Fevereiro de 2022 em que mais de 5,9 milhões de pessoas (88% de mulheres e crianças) fugiram para os países vizinhos, tornando-se o maior deslocamento de populações na Europa desde a Segunda Guerra Mundial; e a guerra Israel-Hamas que iniciou a 7 de Outubro de 2023 e que em apenas 4 meses matou mais crianças do que todos os conflitos armados do mundo nos últimos 4 anos.
As terríveis imagens de crianças a sofrer que todos os dias nos entram pela casa adentro, não deixam nenhum de nós indiferente. Sabemos que as experiências vividas na infância, quando o cérebro está em formação, podem imprimir marcas perenes e afectar o desenvolvimento psíquico, cognitivo e emocional. Creio ter lido num estudo que é frequente as crianças em situação de violência extrema, como é o caso de uma guerra, expressarem que desejam morrer e ir para o Paraíso, um lugar onde imaginam que podem ficar quentinhas, comer, beber e… Brincar!
Pensando em tudo isto recordei-me de um filme, que vi há mais de duas décadas, intitulado A Princesa Mononoque (agora disponível na Netflix). Trata-se de um filme de animação japonês - Anim - escrito e dirigido por Hayao Miyazaqui, estreado no Japão em 1997, que começou a ser visto no resto do mundo a partir de 1999. A acção decorre no final do período Muromachi sensivelmente entre 1336 e 1573. O herói, quase uma criança, é o príncipe Ashitaka, herdeiro da coroa do clã Emishi, cujo rei está moribundo. Para salvar a sua aldeia Ashitaca luta com o deus Javali e é por este amaldiçoado. Um mal enredasse-lhe no braço e ameaça espalhar-se pelo corpo todo. Quando isso acontecer Ashitaca morrerá.
O deus-javali chegou àquela aldeia já fora de si, enfurecido pelo mau trato que uma outra comunidade humana lhe infringira antes. Porém, a raiva e a dor cegam-no. A partir de então, todo e qualquer ser humano é considerado inimigo e tratado como tal. É assim que, sem motivo aparente, ataca a aldeia de Ashitaca. Com o príncipe herdeiro amaldiçoado e em perigo de vida a aldeia enlutece. Os anciãos da tribo reúnem para saber o que há a fazer e concluem que Ashitaca tem de abandonar a aldeia e viajar pelo mundo, para partes distantes, para ver “com olhos não toldados pelo ódio”.
Ao longo do filme, em situações de grande tensão, quando Ashitaca começa a perder a calma, aquela força maléfica que se lhe enreda no braço manifesta-se e parece crescer.
Depois de percorrer uma larga distância Ashitaca chega a uma bela floresta que uma comunidade mineira está a destruir para explorar os seus recursos. A floresta, com todos os seus deuses, animais e plantas, retalia. Lady Eboshi é a mulher que comanda a comunidade mineira. Já tem um braço inutilizado devido aos combates travados, mas consegue apontar e disparar a sua arma apenas com um membro. Muito temida, lady Eboshi está longe de ser uma pessoa sem coração. As mulheres marginalizadas ou maltratadas encontram protecção junto a ela, que lhes dá formação e trabalho colocando-as no caminho da independência e dignidade. Também os doentes leprosos, e todos aqueles mais débeis encontram refúgio junto dela. Por seu lado, o “exército florestal”, é encabeçado por San - a princesa Mononoque - uma criança que vem montada ao lombo de uma enorme loba branca, que a trata como filha. Trata-se de uma loba-deusa. Os animais-deuses são em aspecto iguais aos animais não-deuses só que muito maiores. (Talvez como metáfora da perda do encantamento correspondente ao progresso do mundo técnico-científico, os animais-deuses vêm morrendo ao longo deste filme). Apanhado no meio deste conflito, Ashitaca quer salvar ambos, comunidade humana e floresta, num equilíbrio impossível. Ashitaca não toma partido, não julga, apenas vê com os olhos não turvados pelo ódio: o ponto de vista dos humanos que destroem a floresta para a sua sobrevivência, o ponto de vista da floresta que desagrava por se ver atacada.
Quando as imagens dos bombardeios me entram pela casa a dentro, quando os cenários de destruição avassaladora me cortam a respiração, quando vejo as crianças arrojadas no pó à mercê da fome, da sede, das doenças e de todo o tipo de hediondezas que imaginar se possa, pergunto-me como estará o olhar destas crianças. Como podemos consentir que o olhar infantil que se caracteriza por ser um olhar fresco, para o qual tudo é novo, um olhar para o qual tudo é espanto, curiosidade, maravilhamento, se esmague desta maneira? Se estas crianças sobreviverem, em que espécie de adultos se tornarão? Se estas crianças sobreviverem, com que olhos verão o mundo?
Cafés Filosóficos:
18 Junho | 18.30 | em Português (5€) | Clube de Tavira
19 Junho | 18.30 | in English (10 €) | Quinta de Perogil 55
Inscrição / Registration: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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