Também existe no Algarve uma tendência importada para não se reconhecer o mérito dos conterrâneos em favor de quem vem de fora, subestimando ou ignorando talentos locais que, paradoxalmente, encontram eco noutras paragens. Uma espécie de xenofobia invertida. Vem isto a propósito de a Universidade do Algarve, essa catedral regional do conhecimento, ter passado ao lado, até à data, da existência de um autor algarvio que, ao longo de 38 anos, publicou a módica quantidade de 43 livros de poesia, e traduziu 25 obras de autores estrangeiros.
Existe no campus académico algarvio uma Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, com um curso de Línguas, Literaturas e Culturas, mas é em Universidades como as de Sevilha ou de Cádiz que o “nosso” poeta tem encontrado acolhimento, interesse, centro de conferências de casa cheia, análise e estudo. De Faro, nem um sopro de contacto. Qual é o autor contemporâneo português que tem semelhante espólio publicado, justificando sucessivas apostas editoriais em vários países, e público que compra e lê o seu produto cultural? Ao seu humilde recanto de S. Bartolomeu de Messines não chega a elite intelectual portuguesa, nem o “prime time” das televisões. Manuel Neto dos Santos é um alcantarilhense por nascimento, algarvio por herança, árabe na alma e poeta por vocação. Exemplo de genuinidade, de humanismo, de um ser sincero sem ponta de maldade, qualidades raras nos tempos que correm.

Estamos perante um autor cuja inspiração remonta aos tempos do al-andaluz, nos seus tímpanos sussurraram um dia Al-Mutamid, Ibn Ammar, Ash Shilbia, e outros poetas árabes. Encontra-se nos seus versos a influência de elementos tão sulinos, tão algarvios, como a luz do nosso sol, o sal do nosso mar, as rochas das encostas, as águas claras, as raízes dos sobreiros, até do fogo que os consome. De peito feito em corpo franzino, sai-lhe perfeita a “al-kimia”, simbiose em “almarvia”.
Os seus versos são uma busca incessante do amor, feitos de lábios, de beijos, de corpos nus, e neles se resume muito do seu património (costuma dizer “toda a minha riqueza; os meus escritos”). Perdido nas suas contradições (“eu escrevo sempre à beira de um abismo; o de mim mesmo, sem fundura alguma”). Daí a sua “alegria triste”, a sua “risonha mágoa”. Assim é Manuel Neto dos Santos, filósofo sem canudo, poeta onde a intimidade de um “eu” constante brota de um espectro mais largo, da terra que ama e com a qual se confunde, o Algarve, o Sul, um serrenho mediterrânico-atlântico-andalusi.
Vem isto a propósito da sua obra mais recente “Arbonaida ou Al-Kadar”, editada em Português, Espanhol e Árabe. Aliás, desde 2016 vem adoptando com frequência o bilinguismo, o trilinguismo, e até o quadrilinguismo. Quantos poetas em Portugal estão traduzidos em Espanhol, Francês, Inglês, Árabe, Romeno até? O que significa Arbonaida? “Pequena pátria”, dizia Blás Infante. O que significa Al-Kadar? “Vontade divina, desígnio, em suma: fado!”
O lançamento oficial, com cobertura de muitas televisões de países árabes, ocorreu em Agmate, na Bayt (casa) al-Mutamid a dois passos do túmulo onde repousa o rei-poeta, último soberano árabe de Sevilha, nascido em Beja… por isso mesmo, também ele “nosso”, ao Sul.
O Al-Gharb foi berço de outros poetas árabes, como Ibn Badrun, de Silves, Abu-I-Hasan Ibn Sali ash Shatamari, de Faro, ou Al-Cutair, de Loulé. “Compilação de mundividências, de sonhos, esperanças e desesperos” – eis como Manuel Neto dos Santos descreve a sua obra. É um livro de viagens, de memórias, de leituras, em resumo, livro de uma essência ao Sul, no espaço geo-cultural andalusí. Perpassa, em toda esta obra, uma invocação e uma evocação da memória de Al-Mutamid, já profundamente marcantes em “Atalaia”, “Sulino” e “Azahar”.

O livro é dedicado a Blás Infante (propagandista do nacionalismo andaluz, fuzilado pelas tropas franquistas em 1936), “exemplo intrépido, porta-bandeira da nossa imorredoira essência arábigo-andalusi” e ao amigo Abdellah Aghzaf, Doutor em literatura hispânica, professor e tradutor que, nestas três condições a que acrescem as de leitor, admirador e amigo, fez a tradução para a língua árabe. Estamos em presença de um autor poliglota português, seguidor dos itinerários poéticos de Al-Mutamid, caminheiro por terras de Marrocos (Marraquexe, Rabat, Salé, Essaouira, Ourika), um mestiço do interculturalismo, um construtor de pontes entre as margens do Al-Andaluz e do Norte de África por um lado da História que vai muito para lá de batalhas, conquistas e reconquistas territoriais.
É um viajante de abismos, que voa sobre os gatos de Rabat, o areal de Essaouira, o souk de Marraquexe, ou o vale de Ourika. É um poeta que, do seu cárcere de silêncios, fixa o olhar enfeitiçado pelas luas crescentes, pelos alcatruzes e algerozes, dedilhando distâncias, recitando paisagens de escombros, enredado na suprema harmonia de contrários que irradia da sua inspiração. Traz desfraldadas no corpo bandeiras do Sul, poesia com perfumes de al-andaluz, al-gharb daqui-mar e dali-mar. É nómada e berbere, um ourives do passado à procura de si mesmo, uma alma andalusi perdida de amores e saudades.
Num tempo em que se assiste à demolição acelerada da identidade cultural do Algarve, promover o talento de criadores como Manuel Neto dos Santos, celebrando a sua obra e a sua mensagem, valorizando o que é a nossa essência histórica, deveria ser um contributo fundamental para a construção de um senso de pertencimento e orgulho colectivo. Quem é que se preocupa com isto?
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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