Também existe no Algarve uma tendência importada para não se reconhecer o mérito dos conterrâneos em favor de quem vem de fora, subestimando ou ignorando talentos locais que, paradoxalmente, encontram eco noutras paragens. Uma espécie de xenofobia invertida. Vem isto a propósito de a Universidade do Algarve, essa catedral regional do conhecimento, ter passado ao lado, até à data, da existência de um autor algarvio que, ao longo de 38 anos, publicou a módica quantidade de 43 livros de poesia, e traduziu 25 obras de autores estrangeiros.
Existe no campus académico algarvio uma Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, com um curso de Línguas, Literaturas e Culturas, mas é em Universidades como as de Sevilha ou de Cádiz que o “nosso” poeta tem encontrado acolhimento, interesse, centro de conferências de casa cheia, análise e estudo. De Faro, nem um sopro de contacto. Qual é o autor contemporâneo português que tem semelhante espólio publicado, justificando sucessivas apostas editoriais em vários países, e público que compra e lê o seu produto cultural? Ao seu humilde recanto de S. Bartolomeu de Messines não chega a elite intelectual portuguesa, nem o “prime time” das televisões. Manuel Neto dos Santos é um alcantarilhense por nascimento, algarvio por herança, árabe na alma e poeta por vocação. Exemplo de genuinidade, de humanismo, de um ser sincero sem ponta de maldade, qualidades raras nos tempos que correm.
![](https://postal.pt/wp-content/uploads/2025/02/Manuel-Neto-dos-Santos-Jose-Mendes-Bota-.jpeg)
Estamos perante um autor cuja inspiração remonta aos tempos do al-andaluz, nos seus tímpanos sussurraram um dia Al-Mutamid, Ibn Ammar, Ash Shilbia, e outros poetas árabes. Encontra-se nos seus versos a influência de elementos tão sulinos, tão algarvios, como a luz do nosso sol, o sal do nosso mar, as rochas das encostas, as águas claras, as raízes dos sobreiros, até do fogo que os consome. De peito feito em corpo franzino, sai-lhe perfeita a “al-kimia”, simbiose em “almarvia”.
Os seus versos são uma busca incessante do amor, feitos de lábios, de beijos, de corpos nus, e neles se resume muito do seu património (costuma dizer “toda a minha riqueza; os meus escritos”). Perdido nas suas contradições (“eu escrevo sempre à beira de um abismo; o de mim mesmo, sem fundura alguma”). Daí a sua “alegria triste”, a sua “risonha mágoa”. Assim é Manuel Neto dos Santos, filósofo sem canudo, poeta onde a intimidade de um “eu” constante brota de um espectro mais largo, da terra que ama e com a qual se confunde, o Algarve, o Sul, um serrenho mediterrânico-atlântico-andalusi.
Vem isto a propósito da sua obra mais recente “Arbonaida ou Al-Kadar”, editada em Português, Espanhol e Árabe. Aliás, desde 2016 vem adoptando com frequência o bilinguismo, o trilinguismo, e até o quadrilinguismo. Quantos poetas em Portugal estão traduzidos em Espanhol, Francês, Inglês, Árabe, Romeno até? O que significa Arbonaida? “Pequena pátria”, dizia Blás Infante. O que significa Al-Kadar? “Vontade divina, desígnio, em suma: fado!”
O lançamento oficial, com cobertura de muitas televisões de países árabes, ocorreu em Agmate, na Bayt (casa) al-Mutamid a dois passos do túmulo onde repousa o rei-poeta, último soberano árabe de Sevilha, nascido em Beja… por isso mesmo, também ele “nosso”, ao Sul.
O Al-Gharb foi berço de outros poetas árabes, como Ibn Badrun, de Silves, Abu-I-Hasan Ibn Sali ash Shatamari, de Faro, ou Al-Cutair, de Loulé. “Compilação de mundividências, de sonhos, esperanças e desesperos” – eis como Manuel Neto dos Santos descreve a sua obra. É um livro de viagens, de memórias, de leituras, em resumo, livro de uma essência ao Sul, no espaço geo-cultural andalusí. Perpassa, em toda esta obra, uma invocação e uma evocação da memória de Al-Mutamid, já profundamente marcantes em “Atalaia”, “Sulino” e “Azahar”.
![](https://postal.pt/wp-content/uploads/2025/02/Nuno-Campos-Inacio-Manuel-Neto-dos-Santos-e-Jose-Mendes-Bota.jpeg)
O livro é dedicado a Blás Infante (propagandista do nacionalismo andaluz, fuzilado pelas tropas franquistas em 1936), “exemplo intrépido, porta-bandeira da nossa imorredoira essência arábigo-andalusi” e ao amigo Abdellah Aghzaf, Doutor em literatura hispânica, professor e tradutor que, nestas três condições a que acrescem as de leitor, admirador e amigo, fez a tradução para a língua árabe. Estamos em presença de um autor poliglota português, seguidor dos itinerários poéticos de Al-Mutamid, caminheiro por terras de Marrocos (Marraquexe, Rabat, Salé, Essaouira, Ourika), um mestiço do interculturalismo, um construtor de pontes entre as margens do Al-Andaluz e do Norte de África por um lado da História que vai muito para lá de batalhas, conquistas e reconquistas territoriais.
É um viajante de abismos, que voa sobre os gatos de Rabat, o areal de Essaouira, o souk de Marraquexe, ou o vale de Ourika. É um poeta que, do seu cárcere de silêncios, fixa o olhar enfeitiçado pelas luas crescentes, pelos alcatruzes e algerozes, dedilhando distâncias, recitando paisagens de escombros, enredado na suprema harmonia de contrários que irradia da sua inspiração. Traz desfraldadas no corpo bandeiras do Sul, poesia com perfumes de al-andaluz, al-gharb daqui-mar e dali-mar. É nómada e berbere, um ourives do passado à procura de si mesmo, uma alma andalusi perdida de amores e saudades.
Num tempo em que se assiste à demolição acelerada da identidade cultural do Algarve, promover o talento de criadores como Manuel Neto dos Santos, celebrando a sua obra e a sua mensagem, valorizando o que é a nossa essência histórica, deveria ser um contributo fundamental para a construção de um senso de pertencimento e orgulho colectivo. Quem é que se preocupa com isto?
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
Leia também: Manuel Neto dos Santos apresenta pontes de poesia com “Arbonaida ou Al-Kadar” em Loulé
E ainda: Velhos vícios, novos vícios: dependências e adições