24 de Fevereiro de 2022 – uma coluna de fumo em forma de punho ergue-se nos céus: a Rússia bombardeia a Ucrânia. Na minha mente, tal como outrora para defender Espanha das invasões napoleónicas, o gigantesco Colosso ergue-se agora para enfrentar a invasão russa.
Na tela original de Goya, observamos na base do quadro animais e gentes que fogem em todas as direcções; correm espavoridos em pleno caos e destruição.
Apenas um animal permanece quieto e olha o espectador: um burro branco, cuja sela já perdeu o cavaleiro.
Alguns especialistas afirmam que este asno parado pode simbolizar a incompreensão do fenómeno da guerra. Eu atrevo-me aqui a propor algumas outras interpretações desta espécie de “alegoria do jumento”.
1. O burro somos nós por não termos evitado esta guerra
1.1 Num artigo de opinião intitulado “Derrota mútua assegurada”, publicado a 26 de Fevereiro no DN, apenas 2 dias depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, o filósofo português Viriato Soromenho Marques escreve o seguinte: “Entre a chegada de Gorbachev ao poder em Moscovo (1985) e a dissolução da URSS (1991) assistimos a um acontecimento sem paralelo na história mundial: um império colocou à frente da sua própria sobrevivência, o interesse da humanidade, evitando uma guerra nuclear generalizada que conduziria a uma ‘destruição mútua assegurada’ (…) Apesar das promessas de que a reunificação da Alemanha não implicaria o alargamento para leste da NATO, a verdade é que esta se efectuou.”
Como é de conhecimento público, em Março de 1999, a República Checa, a Hungria e a Polónia, ex-membros do Pacto de Varsóvia, aderiram à NATO. A Bulgária, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Roménia, a Eslováquia e Eslovénia fizeram-no em Março de 2004, e, em Abril de 2009 a Croácia e a Albânia também aderiram à NATO. A vontade expressa de adesão à NATO, por parte da Ucrânia, terá certamente intensificado o medo e a hostilidade por parte da potência russa. Viriato Soromenho Marques interpreta, deste modo, a guerra na Geórgia em 2007, e a anexação da Crimeia em 2014: “a Rússia traçou uma linha vermelha à expansão de uma aliança militar, que considerava fazer perigar a sua segurança nacional. O desastrado activismo bélico da NATO e dos EUA nos últimos 20 anos, num proselitismo democrático coberto de sangue e ruínas, no Afeganistão, Iraque ou Líbia, ajudou a consolidar as reservas de Moscovo.”
1.2 Quando a Rússia se posicionou para atacar a Ucrânia a Europa continuou a acreditar que se tratava de “exercícios militares”. Uma e outra vez, ignorámos ― que nem asnos! ― os indícios que apontavam para a real possibilidade de uma guerra. Acordámos da pior forma possível: a realidade transformou-se em pesadelo! Apesar da solidariedade em larga escala demostrada, o povo ucraniano encontra-se desprotegido frente ao gigante russo sem que nenhum Colosso se erga. O gigante NATO está agrilhoado. Não pode intervir sob pena de fazer deflagrar uma terceira guerra mundial.
1.3 Apelamos para a paz, mas de que paz estamos a falar? A paz pode resultar da submissão ao poder; e a guerra pode terminar com a rendição incondicional. O filósofo francês Jean Jacques Rousseau opôs-se terminantemente a esse tipo de paz apelidando-a de “paz de Ulisses” referindo-se ao episódio em que Ulisses e os seus companheiros de viagem, aprisionados na caverna do Ciclope, aguardam a sua vez de serem devorados (A Lasting Peace Through the Federation of Europe and The State of War, London: Constable and Co., 1917). Podemos afirmar que o domínio absoluto e a submissão absoluta produzem uma espécie de paz, mas trata-se de paz conjugada com injustiça. Daqui decorre que apenas podemos considerar como verdadeira Paz aquela que se nutre da justiça. A ideia de justiça está no centro da tradição a que se chamou “guerra justa”, que afirma que temos o direito de lutar contra a injustiça.
A definição dialéctica de paz como ausência de guerra pode abarcar a ideia da paz armada, como a que vivemos durante a chamada “Guerra Fria” ― Um modus vivendi em que oponentes armados se abstêm de atacar uns aos outros por medo. Esse tipo de paz é apenas uma trégua ou impasse. Em tais condições os oponentes não foram reconciliados e as intenções hostis não foram eliminadas. Vive-se numa espécie de empate possibilitado pela força de dissuasão mútua. E foi este empate frágil que a Europa e os EUA desequilibraram sem medir as consequências. Subestimar o “inimigo” nunca é boa ideia.
2. O burro é Putin por não perceber que só pode perder
Interajo aqui com os pontos de vista dos historiadores Yuval Noah Harari (Israel) e Timothy Snyder (EUA) apresentados numa conversa online intitulada The War of Ukraine & the Future of the World que teve lugar no canal YouTube a 8 de Março de 2022.
2.1 Yuval Harari diz-nos que Putin cometeu um erro crasso ao não reconhecer a Ucrânia como uma nação com forte identidade própria. Considera que Putin construiu uma fantasia na sua cabeça julgando que os ucranianos são russos que querem ser absorvidos pela pátria mãe, e estão impedidos de o fazer por causa de um “gang nazi”. Esta fantasia fê-lo invadir a Ucrânia pensando que Zelensky fugiria, o exército se renderia, e a população lhes atiraria flores. Ora, todo o contrário ocorreu: Zelensky, apesar das ofertas de extradição pelos EUA, escolheu ficar no seu posto em Kiev; o exército ucraniano, mesmo com poucos meios, luta ferozmente ― “they are big, but we are brave” ― dizia um dos militares aos oradores e a população em vez de flores atira cocktails molotov.
2.2 Timothy Snyder diz-nos que Putin é vítima da sua própria tirania: todos os seus conselheiros temem-no, ao ponto de não se atreverem a discordar, preferindo ocultar qualquer verdade que indisponha o seu líder. Sem ninguém que o contrariasse, o presidente russo ficou completamente convencido das suas mentiras, perdeu o contacto com a realidade. O grande problema de um ditador é que quando comete um erro não consegue admiti-lo e procede numa escalada de violência cega.
No enquadramento geopolítico de hoje, que um país julgue, só porque é grande e poderoso, que pode obliterar outro país, é inaceitável! Voltamos para a selva! Putin está a trazer o mundo todo para uma era de guerra que julgávamos ter já sido ultrapassada.
Porém, num certo sentido, Putin já perdeu a guerra: se a Ucrânia era remota e desconhecida para alguns, agora a sua existência é incontornável. Os ucranianos dão a sua vida pelos ideais europeus de liberdade e democracia e aparecem, aos olhos de todos nós, como heróis. Quem pode esquecer as imagens de uma população, de mãos vazias, a enfrentar os tanques de guerra invasores?!
2.3 Outro erro incontornável para o qual aponta Timothy Snyder é a perversão da terminologia proveniente do holocausto que é parte constituinte da história e cultura de todos nós. Putin diz que quer “desnazificar a Ucrânia” e inicia uma guerra contra um país democrático, cujo presidente é judeu, e comete atrocidades que começam a ser comparadas ao genocídio em cidades martirizadas como é o caso de Mariupol.
A Rússia não está apenas a invadir uma nação inocente e a tentar erradicá-la ― algo que não se via desde os tempos das guerras imperiais ― está a desfazer as estruturas morais e linguísticas decorrentes da 2ª Guerra Mundial. A palavra genocídio e a palavra nazi são muito importantes para a estrutura moral dos países europeus. Com o seu discurso falso e pervertido Putin não está apenas a ir contra um país, mas está a tentar destruir o marco civilizacional que nos constitui. Por isso mesmo, todos sentimos nas entranhas que há algo de radicalmente errado e horrível nesta invasão.
3. Consequências de tanta burrice
3.1 A Europa vivia uma longa época de paz. O nosso orçamento global para a defesa era de cerca de 3%. Antigamente, reis e imperadores, gastavam 40, 50, mesmo 70% do seu orçamento com o exército. A desmilitarização permitiu que os recursos se orientassem para áreas tão fundamentais como a Educação e a Saúde. No dia seguinte à invasão da Ucrânia pela Rússia, a Alemanha duplicou o seu orçamento para a defesa. Os outros estados europeus estão também a ajustar os seus orçamentos incrementando a percentagem bélica, em detrimento de outras áreas.
3.2 Temos visto nos telejornais os ucranianos a chorar, não apenas pelos horrores da guerra, mas pela perplexidade que lhes causa a invasão russa. Era uma nação que consideravam como um parente próximo, agora sentem-se apunhalados pelas costas. Não sabemos qual será o desfecho desta guerra, mas, o que sim é certo, é que Putin está a plantar sementes de ódio e desconfiança que perdurarão durante gerações. Este será o seu legado. Um Colosso muito maior está a ser criado!
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* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico