Foi em Tavira, no verão do ano ido de 2021, numa noite morna em que conversávamos à beira do sossegado Rio Gilão, que eu e o António(1) tivemos a ideia de uma travessia exclusivamente ferroviária de um extremo do Algarve ao outro e, nesse percurso que sentíamos como mágico, encarnaríamos o papel de descobridores de factos culturais para tentar responder à insolúvel questão que titula estas crónicas “Afinal o que é isso da cultura?”.
No rescaldo da pandemia que assolara o País, o ar cheirava-nos a liberdade e todos os projetos pareciam realizáveis. Todavia, mais tarde, iríamos perceber que atravessar o Algarve utilizando apenas o comboio era uma maneira de viajar incómoda, comparada com a facilidade em utilizar o automóvel privado e, embora o Manuel da Fonseca, o Diego Mesa e o Saramago tenham andado, dois em carro próprio e o outro de camioneta nas suas patrióticas travessias pelos algarves(2), a combinação fora firmada e – mesmo com exemplos tão ilustres – já era tarde para algum de nós propor ao outro uma alternativa ao caminho de ferro.
É pois desde agosto do ano passado que andamos à volta com estes percursos e com as concomitantes crónicas. Começámos exatamente por Vila Real de Santo António, que delimita o Sotavento, enfrenta o Guadiana e fita Espanha na outra margem. Partimos para esse início da peregrinação como se esta cidade fosse um mero cais de embarque, o que pareceria injusto se não tivéssemos a firme intenção de a ela voltar com mais vagar, e é hoje esse dia.
O nosso plano na conquista de cada uma das localidades com estações da linha do Algarve passa naturalmente por fotografar esses sítios, não de um modo extensivo mas de uma forma intensiva, ou eu não estivesse acompanhado por alguém que fotografa não com a máquina mas com o coração. O António tenta sempre captar o espírito do lugar, sendo-lhe um pouco indiferente o local onde opera, seja ele um deserto ou a avenida comercial de uma grande cidade.
Esta cidade, convém que se diga porque a história também é cultura, foi a expressão de um vasto pensamento e de uma vontade de resgatar Portugal do marasmo desencadeado pelo esgotamento do ouro do Brasil. Como refere Gonçalves (2009)(3): “Vila Real de Santo António é, pelo que se sabe, a primeira fundação urbana criada para desempenhar uma função económica específica, ou seja, terá sido o primeiro caso pensado e concretizado daquilo que, nos dias de hoje, se designaria como cidade-fábrica.”
Esse foi o pensamento económico-social que presidiu à construção e que permitiu erguer do nada, e com pouquíssimos meios uma das cidades portuguesas mais simbólicas do espírito de uma época, o Iluminismo. A longa e elegante frontaria da Baixa Mar (assim designam os vila-realenses a Av. da República) esconde um esmerado saber fazer, quer no que respeita aos aspectos construtivos, quer no que concerne às funcionalidades: “[…] As doze unidades correspondentes às Sociedades pesqueiras, são autênticos complexos industriais de manufactura, armazenamento e comercialização de sardinha […]”, Figueiras (1999)(4).
Contudo, terminado o ciclo do atum (é enternecedor que numa rotunda movimentada se tenha erguido uma estátua de homenagem ao dito bicho), os vila-realenses viram-se confrontados com um vazio que só viria a ser colmatado mais tarde com um tímido crescimento no turismo, mas o caso é que a cidade não tem verdadeiramente um ponto focal que possa ser apreciado de per si. Não tem palácios. Não tem catedrais. Não tem as belezas naturais dos litorais de águas cristalinas e rochas cénicas. Não tem arribas imponentes. Terá então algum coisa a oferecer aos turistas?
Claro que sim, pois a própria cidade é um monumento com dois séculos e meio de história e que ainda está vivo. É necessário promover o respeito por esse património e nesse “respeito” cabe não só a preservação do edificado mas também o património imaterial, a memória da fábrica-cidade e dos seus saberes. Como disse Horta Correia: “É que não há casas pombalinas a preservar em Vila Real de Santo António. Vila Real de Santo António é uma única e grande casa e é enquanto tal que ou se salva ou se condena.”(5)
Para além desse aspecto crucial, e a modos de exemplo, quem passeia pela Baixa Mar inevitavelmente tropeça em duas estátuas que representam dois aspectos bem relevantes da vida da terra. Uma evoca uma vila-realense, Luthgarda Guimarães de Caires e a outra lembra Sebastião José de Carvalho e Melo, marquês de Pombal, que por acaso nunca pôs aqui os pés.
Luthgarda foi uma mulher bem à frente do seu tempo. Nasceu em 1873 mas ainda jovem foi para Lisboa onde casou com João de Caires. Mercê de episódios muito dolorosos na sua vida pessoal, irá dedicar-se a diversas causas sociais de grande relevo. A partir de 1905 luta contra as injustiças do seu tempo, publicando artigos de âmbito social em diversos jornais onde, nomeadamente, defende o direito das mulheres à igualdade. Em 1922, publica Violetas, um livro de poemas dedicado ao irmão.(6)
O Marquês de Pombal foi o mandante da construção da Vila em 1773 e a primeira pedra foi por sua ordem lançada em 17 de março de 1774. As memórias do fundador estão por todo o lado e todos os vila-realenses sabem que devem a esse homem visionário e cruel a existência desta pérola do Sotavento algarvio.
Outros poderiam ser lembrados e outras figuras poderíamos ainda nomear, todas elas contribuindo para a cultura, para a “Alma” da cidade: Vicente Campinas… António Aleixo… mas, para além de todos esses, devemos lembrar e celebrar o engenho e bravura do povo do Sul que arrancava das águas o seu sustento e a sua glória.
Tudo mudou. O peixe rareou, as fábricas encerraram, os locais emigraram e a cidade afundou-se numa depressão que só o turismo de massas viria reanimar. Sobrevive-se com o fluxo diário de espanhóis que vêm em busca de atoalhados e de peixe grelhado e com pouco mais. A autarquia luta bravamente para manter a chama acesa, a academia apoia com avisados conselhos e estudos urbanísticos, entre outros, mas falta ainda muito para Vila Real de Santo António se poder levantar com o antigo esplendor. Não devemos porém perder a esperança porque bem sabemos que no Mundo a única coisa imutável é precisamente a mudança.
(1) António Homem Cardoso, fotógrafo.
(2) Vide as crónicas anteriores sobretudo a de novembro passado.
(3) GONÇALVES, Adelino, “Vila Real de Santo António, Planeamento de pormenor e salvaguarda em desenvolvimento” in Monumentos 30: Vila Real de Santo António, A “Cidade Ideal”, Dezembro 2009.
(4) FIGUEIRAS, Rui, “Vila Pombalina – Vila Real de Santo António”, Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, 1999.
(5) CORREIA, José Eduardo Horta, O lugar de Vila Real de Santo António na história do urbanismo português, Editorial do Departamento de Arquitectura, Universidade de Coimbra. Consultado a 2 de setembro de 2021 em http://hdl.handle.net/10316.2/37888
(6) CAIRES, Lutgarda Guimarães de, Violetas, Bibliotrónica Portuguesa, Lisboa, 2020