Não tenho dúvidas. Analisando num mapa o percurso do caminho de ferro de Vila Real de Santo António a Lagos, desenham-se claramente duas etapas que têm o seu início ou término em Faro. Até agora, eu e o Mestre Homem Cardoso andámos a explorar apenas uma delas, a que parte de Vila Real de Santo António e deambula preguiçosamente pelo litoral até finalmente repousar na cénica estação de Faro. Em mais de metade desse percurso o carril segue o desenho do cordão dunar que amansa o mar com as suas curvas indolentes.
Nesse lento trajeto em que a costa marítima nunca fica muito longe das diversas estações e apeadeiros, e às vezes pertíssimo, surpreendemos por vezes um diálogo encantador entre o monstro de aço que nos transporta e as águas mansas da ria, como uma remake do famosíssimo filme, A Bela e o Monstro.
Temos feito razoavelmente bem o nosso trabalho. Eu tenho escrito umas coisas (ficar-me-ia mal qualificá-las…) e o António tem produzido dezenas de boas fotografias das quais, infelizmente, no espaço de uma crónica não cabem mais que duas ou três. Todavia, num apanhado do que fizemos até agora apercebemo-nos de que é injusto tentar descrever o Reino dos Algarves a partir dos locais comodamente servidos pela via férrea. Esse Algarve, regra geral, está contaminado pelo presente envenenado chamado turismo que ninguém se atreve a dispensar. Se calhar até poderíamos dizer que o verdadeiro Algarve, tão amado ao longo dos séculos por raças, credos e civilizações diferentes, terá que ser procurado mais longe do litoral, talvez no barrocal onde as ondas da serra talvez ainda escondam segredos milenares ou, ainda mais além, nas suas serras misteriosas.
Em resumo, nesta primeira etapa visitámos à vol d’oiseau praticamente todas as estações de comboio, fazendo uma mancheia de comentários, todavia demasiado ancorados nas nossas subjetividades. Mas atenção!, mesmo o Algarve de que temos vindo a falar não é aquilo, é outra coisa qualquer, pois, como todos sabemos, é mais improvável descrever toda a vida com palavras do que esvaziar o oceano com um dedal.
Para terminar a primeira metade da viagem, e muito contra os nossos hábitos, vamos falar de duas igrejas matriz, ou melhor, das respectivas fachadas, construídas na mesma época e que pela sua singeleza e antiguidade merecem ser referidas, mesmo que resumidamente.
A primeira é a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Luz (de Tavira a partir de 2001) e datada de meados do século XVI. Apresenta um elegante portal maneirista com acrescentos barrocos posteriores. A Igreja tem três pontos fortes: o primeiro tem a ver com a sua implantação num terreno desafogado, ajardinado, e que o é o ex-libris da vila. O segundo refere-se às dimensões das três naves cujas abóbadas correm à mesma altura, seguindo o modelo da igreja-salão o que a torna um exemplar único deste modelo arquitetónico no Algarve e só por isso merece uma visita. Finalmente, a harmoniosa e discreta porta manuelina, virada a Sul, e que surpreende pela sua discreta elegância os viajantes que por ali passam.
Outro exemplar curioso é o da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, (de Tavira), cuja construção se iniciou também no século XVI em terrenos pertencentes à poderosa Ordem de Santiago, cujo escudo ainda encima a porta gótica, num desenho barroco assaz elegante de onde espreitam as vieiras, símbolos universais do apóstolo Tiago.
A freguesia de Conceição, embora servida por um excelente apeadeiro da ferrovia algarvia, funciona como um arrabalde de Cabanas, uma espécie de grande dormitório, dado que toda a atividade turística é atraída pela beira-mar, pela doçura e encanto da Ria Formosa e das suas ilhas que nesta zona atinge um dos seus máximos, valorizada por um recente passeio pedonal, bastante criticado aliás, pelos comerciantes da zona, que perderam a visão direta da Ria, indiscutível fator de valorização dos seus estabelecimentos.
O escriba confessa que passou aqui, ano após ano, as mais adoráveis férias da sua vida, pelo que as recorda agora com saudade.
Passemos agora à Vila da Fuzeta que tem o raro privilégio de dispor de duas! estações de comboio bem situadas e também de dispor de um parque de campismo na parte mais nobre da povoação o que, penso eu, deve atrair muita gente com vontade de banhos à mão de semear.
Segundo Raúl Proença (1927), “O que Fuzeta é, sobretudo, é um centro piscatório. Estende-se a aldeia pelo declive suave da encosta, até á orla da praia […] A igreja matriz fica-lhe no ponto mais elevado. Na segunda feira in albis ocorre aqui uma vistosa festividade: a procissão da Senhora do Livramento, conduzida na antevéspera da sua capela da Luz de Tavira para a Fuzeta.”1
A procissão todavia não acabou nos dias de hoje, mas foi substituída por uma curiosa troca de Santas Senhoras entre Fuzeta e Livramento numa animada festa em que os pescadores carregam nos seus barcos os divinos tesouros. Mantém-se assim uma tradição ligada ao mar e à pesca e onde as embarcações tomam nomes femininos – Nélia; Cristina – ou de deuses – Neptuno – ou são o arauto de verdades singelas do difícil ofício de existir – Faz-te à Vida; Vamos Vivendo.
Oh! quão longe estão esses tempos das pescarias!… O que se pesca mais na Fuzeta é quartos, partes de casa ou mesmo casas, para alojar a população flutuante que, como uma vaga estival, submerge o litoral. A construção civil, em resposta a essa onda cíclica, é avassaladora, inestética e incongruente.
Reina na Fuzeta a desarmonia só matizada pelo esplendor da ria e pelo estreito canal junto à marginal, pejado de embarcações que fazem imaginar campanhas a mares longínquos e piscosos.
Esses barcos – helàs – são agora mais utilizados não para pescar mas para transportar veraneantes sequiosos da areia branca das ilhas, da mornidão das águas e da mordida dourada que o Sol inflige aos corpos desnudados.
Todavia, o espírito do lugar desta vila de antigas tradições, mas afogada pela maré imobiliária, ainda se pode ver representado no brasão da Vila, em que um barco oferece ao vento a sua vela quadrangular bem caçada. Bela e distante memória que, porém, não supre as necessidades atuais das gentes algarvias.
Falta falar da estátua do pescador, trajado com os seus resguardos de alto-mar, e que, especado na praça urbana, oferece aos passantes apressados a imagem brônzea de um belo peixe carnudo e fresco. Pobre pescador! Que pensará ele, assim absorto, da sua estática missão? Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades…
(1) Guia de Portugal, Biblioteca Nacional de Lisboa, 1927