Lições é o mais recente romance do autor britânico Ian McEwan. Como tem vindo a ser habitual, foi lançado em Portugal em simultâneo com a edição original inglesa, no passado dia 27 de setembro. A tradução é de Maria do Carmo Figueira. Todas as suas obras são publicadas em Portugal pela Gradiva.
Talvez a primeira coisa a dizer sobre o livro seja a sua extensão, uma vez que este romance se estende por mais de 600 páginas, atingindo uma dimensão pouco usual nos romances do autor, geralmente bastante breves, centrados em momentos precisos da vida das personagens. O tamanho de Lições pode indiciar desde logo que se trata de um romance ambicioso, apresentado como uma “meditação poderosa sobre o curso da história através do espelho da vida de um homem”.
A sinopse do romance descreve-o como “a história íntima épica da vida de um homem através de gerações e convulsões históricas: da Crise de Suez à Crise dos Mísseis de Cuba, da queda do Muro de Berlim à actual pandemia”. Roland Baines, o protagonista, “cavalga a maré da história, mas mais frequentemente luta contra ela.”
Narrado na terceira pessoa, a partir da perspetiva de Roland, este livro agarra-nos logo nas primeiras linhas (que podemos inclusive ouvir lidas pelo próprio autor num vídeo de apresentação do romance no canal de Youtube da Gradiva).
“Memória de insónia”
“Era uma memória de insónia, não um sonho. Era outra vez a lição de piano — o chão com mosaicos alaranjados, uma janela alta, um piano vertical novo numa sala vazia, perto da enfermaria. Tinha onze anos e estava a tentar tocar o que outros talvez conhecessem como o primeiro prelúdio do Livro Um de O Cravo Bem Temperado de Bach, versão simplificada, mas ele não sabia nada disso. Não sabia se era famoso ou desconhecido. Não tinha quando nem onde. Não conseguia conceber que alguém se tivesse dado ao trabalho de escrever aquilo. A música, ali, era simples, uma coisa de escola, ou obscura, como um pinhal no Inverno, exclusivamente sua, o seu labirinto privado de profunda tristeza. Nunca o deixaria partir.” (p. 11)
Este parágrafo inicial, ritmado e burilado como um prelúdio musical, dá o tom ao primeiro capítulo do livro, em que uma memória se torna tão nítida e presente que se torna difícil distinguir, ao longo das primeiras páginas, se a prosa remonta às vivências de Roland, aos 11 anos, ou se estamos simplesmente a ouvir os pensamentos de um Roland com 37 anos que se deixa evadir até às suas próprias memórias:
“Nos últimos tempos, tinha de fazer um esforço de concentração para se manter durante muito tempo no presente. O passado era muitas vezes uma passagem de memórias para fantasias inquietantes. Ele atribuía-o a cansaço, ressaca, confusão.” (p. 28)
Ao longo do capítulo inicial são tão constantes quanto subtis estes avanços e recuos entre o menino e o adulto. O Roland que aos 11 anos sente um misto de fascínio com desejo, ao mesmo que tempo que encontra em Miss Miriam Cornell, a professora de piano, um substituto para a mãe. Miss Cornell dar-lhe-á lições de piano da mesma forma que, anos depois, toma a cargo a educação sexual de um jovem Roland, moldando-o indiferenciadamente para as lides domésticas, para ser um pianista exímio e um esmerado amante. Por outro lado, o Roland adulto atravessa uma espécie de crise de “meia-idade” quando se vê abandonado pela mulher Alissa. Uma fuga tão súbita e inexplicável que não só deixa Roland Baines a cuidar do filho Lawrence, com 7 meses, como o lança sob a mira de uma investigação policial. Até que os postais que a mulher vai enviando na sua passagem pela Europa o ilibam do seu súbito desaparecimento (e de uma suspeita de assassinato), tornando claro que Alissa simplesmente não estava pronta para a “mtrndd” (p. 106), como se a própria abreviatura desnecessária de “maternidade” fosse antes uma palavra truncada que ela se vê incapaz de explicitar por escrito. Como consequência, Roland vê-se então inquebrantavelmente acorrentado a assumir as funções da mãe em exclusivo.
O constante rememorar perpassa a narrativa, embora as analepses sejam definidas mais claramente nos capítulos seguintes. Numa narrativa que se desfia como um novelo, repartida entre vários momentos históricos e pela retrospetiva de várias personagens, explicita-se gradualmente como Roland, o mesmo que em tempos estudou num colégio interno, povoado com os “sotaques cockney” dos colegas (p. 85), está agora falido e sem rumo profissional. A reinvocação constante de memórias acentua a natureza desconstruída de um romance de formação escrito às avessas, em que o Roland adulto se confronta com o jovem que, aos 14 anos, apesar do sentido de promessa e da educação recebida, deixou perder a vida. Um jovem que prometia ser um pianista brilhante, como se augurava num jornal, torna-se depois um “medíocre satisfeito”, vagueando por vários empregos, sem terminar a sua formação, entre instrutor de ténis, jornalista freelance, e aspirante a poeta (a mulher também almejava escrever um romance).
“Era bastante comum Roland e os rapazes da sua idade, ao tornarem-se adultos em Inglaterra, pensarem nos perigos que nunca tiveram de enfrentar. Com leite gratuito em garrafas de quinze mililitros, o Estado garantira o cálcio para os ossos do jovem Roland. Tinha‑lhe ensinado um pouco de latim e física de graça e até alemão. (…) A sua geração também teve mais sorte do que a seguinte. Aninhada confortavelmente no colo da história, numa pequena prega de tempo, a comer o creme todo. Roland tivera a sorte histórica e todas as oportunidades. Mas ali estava ele, falido, numa época em que o Estado bondoso se tinha tornado uma víbora. Falido e dependente do que restava da sua fartura — o soro do leite.” (p. 149)
Chernobyl
Como se todos estes reveses não bastassem a uma vida soçobrada, Roland atravessa ainda um momento de crise, como subitamente nos é dado a entender, de forma ligeira: “abriu o jornal para ler outra vez a manchete. Era uma espécie de ficção científica, sem graça e apocalíptica. Claro. A nuvem sempre soubera para onde ia. Para chegar ali vinda da Ucrânia soviética teria atravessado outros países (…) Um desastre numa central nuclear, uma explosão e um incêndio num local distante chamado Chernobyl.” (p. 49)
Depois de cerca de duas dezenas de páginas entre recordações e descobertas, a ação situa-nos assim, finalmente, num dia frio na Primavera de 1986. Esta nuvem que ameaça particularmente as crianças leva-o a procurar iodo, pois “protegia a vulnerável tiróide das radiações” (p. 50). Mas a sua passagem por várias farmácias é em vão pois está esgotado. A nuvem radioactiva que chega à Grã‑Bretanha obrigá-lo-á a calafetar janelas, a separar a roupa por causa das poeiras, a desinfectar-se cuidadosamente no banho. Uma série de medidas que nos remetem para um outro período da história bem mais recente, onde se combatia um inimigo igualmente invisível que se transportava pelo ar, em que a negligência de certos governos e a sensação de imunidade parecem ter permanecido impunes:
“A manchete não era tão alarmante como o título que estava por baixo em letras mais pequenas: «Autoridades de saúde insistem que não existe qualquer risco para a população». Exactamente. A barragem vai aguentar. A doença não vai espalhar‑se. O presidente não está gravemente doente. Das democracias às ditaduras, a calma acima de tudo.” (p. 49)
A metáfora da nebulosa, como ameaça externa, atravessa igualmente a narrativa, com novos cambiantes, como quando se descreve a nuvem “que pairava sobre as relações familiares. Essa nuvem era uma característica aceite da vida.” (p. 68)
Ou ainda a nuvem como símbolo de ilusão, como poeira nos olhos: “Por toda a Europa havia uma nuvem de auto‑ilusão. Um canal de televisão da Alemanha Ocidental convenceu‑se de que o miasma radioactivo não contaminaria o Ocidente, mas apenas o Império Soviético, como que por vingança.” (p. 98) É também através desta nuvem que se estabelecem subtis relações entre o Leste e uma ilha que se quer acreditar isolada do mundo.
A guerra como constante histórica
Lançadas as principais pistas da intriga no primeiro capítulo, no capítulo seguinte acompanhamos exclusivamente a infância de Roland, em recuos sucessivos, desde que vivia na Líbia, em Trípoli, até à sua entrada num colégio interno britânico aos 11 anos.
“Ele e os pais tinham chegado a Londres, vindos do Norte de África, no final do Verão de 1959. Dizia‑se que estava a haver uma onda de calor — uns meros trinta graus centígrados — «abrasador», uma palavra nova para Roland.” (p. 53)
O capítulo dois abre assim com um tom predominantemente narrativo, disposto a arrumar a vida do jovem Roland, ao mesmo tempo que desfia a história dos pais (Robert Baines, o pai, é capitão de um contingente do exército inglês na Líbia) e, depois, no capítulo terceiro, a história de Jane Farmer, a mãe da sua mulher Alissa, que percorre a Alemanha no rescaldo da Segunda Guerra.
A guerra como constante histórica perpassa estas várias vidas, ficando clara a ideia de que por muito distantes e remotos que sejam os acontecimentos o destino é moldado por eles: “Roland reflectia de vez em quando sobre os acontecimentos e acasos, pessoais e globais, minúsculos e monumentais que tinham formado e determinado a sua existência. O seu caso não era especial — todos os destinos são criados de forma semelhante. Não há nenhum acontecimento público que tenha tanto impacto sobre a vida das pessoas como a guerra.” (p. 217)
O autor entrelaça assim nesta magistral narrativa as vidas privadas das várias personagens com os principais acontecimentos da história contemporânea das últimas décadas, desde a Primeira Guerra, até à recente pandemia, passando por Dunquerque, pelo final da Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, uma Alemanha divida pelo Muro de Berlim, a ameaça de uma Terceira Guerra, a Guerra das Malvinas, etc.
Um romance que nos fala das lições de um jovem como quem exorta a Humanidade a recordar as lições que a História nos tem dado e continua a dar, ainda que nem sempre procuremos atentar nos seus ensinamentos.
Ian McEwan nasceu a 21 de junho de 1948, em Aldershot, Inglaterra. Vive atualmente em Londres. É autor de mais de uma dezena de romances, como os mais recentes Numa Casca de Noz, Máquinas como Eu, e A Barata. Muitos dos seus livros foram adaptados para o grande ecrã: O Jardim de Cimento; A Criança no Tempo (vencedor do Whitbread Award 1987, adaptado a telefilme); O Inocente; Estranha Sedução; O Fardo do Amor; Amesterdão (vencedor do Booker Prize em 1998); Expiação (prémios US National Book Critics Circle 2002 e WH Smith 2002 para o melhor livro de ficção); Na Praia de Chesil (nomeado para Galaxy Book of the Year 2008 nos British Book Awards onde o autor foi também nomeado para Reader’s Digest Author of the Year); A Balada de Adam Henry (com interpretação de Emma Thompson).