Roteiros Provinciais, do escritor e historiador moçambicano João Paulo Borges Coelho, é um conjunto de quatro novelas, publicado pela Caminho.
Quatro narrativas – bastante breves, à exceção da penúltima – que partilham temáticas, aliás afins a alguns dos grandes romances do autor – vencedor do 2.º lugar do Prémio Oceanos no ano passado com o Museu da Revolução.
Considerações sobre o tempo, sobre a relação entre o acontecido, o lembrado e o ficcionado, sobre as raízes, sobre o propósito das histórias. Em todas elas se respira ainda o ar de uma guerra colonial, recentemente findada, e de um país a tatear caminho para se reconstruir – onde o outro continua ainda presente. Além da guerra colonial há ainda outras guerras e independências aqui evocadas, desde países vizinhos como o Malauí ou Zimbabué, a outros mais distantemente improváveis, como o Vietname.
O que une estas novelas é também aquilo que o compositor Igor Stravinsky disse a Robert Craft e que surge como epígrafe ao livro: “Pergunto-me se a memória é verdadeira, e sei que pode não ser. Todavia, sei que vivemos da memória e não da verdade.”
O avô de João Paulo Borges Coelho era de Murça, a avó descendente de famílias antigas do Ibo, norte de Moçambique. O autor cresceu na Beira, aluno e vizinho de Zeca Afonso. Ter vivido a maior parte da sua vida em Maputo não belisca o facto de se considerar beirense. Ponta Gea é um livro de memórias que narra justamente essa Beira revisitada pela memória – cidade onde também Lídia Jorge viveu, que ficou no meio de duas fações, durante uma guerra civil de 4 décadas.
A primeira novela busca linhas de continuidade que, ao longo da fronteira, cosem dois países e três épocas distintas. Mas esta história é também uma procura de uma rua, de uma moradia, que mostra como a memória é ela mesma uma máquina de viagens no tempo, capaz de atravessar o sonho e a distância e fundir tempos diferentes: “dormindo acordados, confundindo os tempos e as distâncias entre as coisas”. Foi também por aquela estrada que seguiram, na independência do Zimbabué, milhares de pessoas em busca “de trabalho e de vidas alternativas”.
Na segunda novela acentua-se em busca do passado, agora como se a reconstituição do narrador, pela escrita – de um narrador que muitas vezes se deixa ir ao sabor da pena, e depois tem necessidade de recuar e retomar o fio da narrativa com um recorrente “dizia” -, se baseasse sobretudo em documentos e em depoimentos que ele replica.
A terceira e a quarta novela entrecruzam-se, discretamente, pois partilham uma personagem, o senhor Russel Parker, que pretendia, em vésperas de revolução, documentar em filme a libertação do Zimbabué. Um californiano cinegrafista recém-chegado a Moçambique, que personifica o choque cultural e as consequências trágicas que podem advir devido a outro tipo de distância, o do desconhecimento das normas de uma comunidade. É também através de imagens que se fazem estas narrativas, pois, como já aconteceu noutras obras, o autor ilustra-as com diversas fotografias, mapas, cartazes.
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