Notas soltas de uma capital europeia em período festivo. Durante o dia, ruas percorridas por carros de alta gama, gente de todo o mundo que passeia nas grandes avenidas comerciais, restaurantes e cafetarias completamente cheios, filas para museus nacionais e espetáculos musicais, preparativos para a noite que há-de vir na praça em que o icónico relógio dará as doze badaladas em contagem decrescente.
Contrastes da cidade já iluminada. No mercadinho de guloseimas orientais, um Duende de Natal suspende o acordeão sob o colo sem pernas numa cadeira de rodas e toca, graceja e sorri à passagem de milhares de transeuntes que se desviam e não param com a pressa de não perder a última compra ou o Metro que lhes vai passar debaixo dos pés e não se atrasa. Indiferentes.
Faz-se tarde e um frio intenso. Um jovem otimista coloca uma tenda de campismo, das pequenas, à porta de uma das lojas mais famosas da praça mais famosa da cidade. Ali está à espera de quem se lembre de deixar a moeda num vaso com um euro impresso bem grande. Ninguém quer saber. Tem aspeto de quem não precisa.
Mesmo ao lado, começa a aparecer malta aperaltada para a noite que, entretanto, vai chegando. Smoking e vestidos compridos que a festa é nos rooftops dos arranha-céus. Gente elegante em frente aos hotéis de cinco estrelas. E algumas “bombas” de elevada cilindrada com permissão para estacionar no átrio dos hotéis mais charmosos.
Para quem não conseguiu ou não quis marcar a ceia de Fim de Ano, restam-lhe muito poucas opções nesta cidade agora recolhida a casas, restaurantes, hotéis e outros eventos mundanos. Há uma marisqueira na avenida central que aceita reservas de última hora. Menu de Ano Novo, parrilhada de marisco! Passam as vieiras, os mexilhões, os lingueirões, as gambas e a lagosta em travessas que dá gosto ver. Ao balcão, entretanto, um homem negro majestoso com uma camisa branca enrolada à cabeça desperta todas as atenções, com aquele copo da KFC com pedaços desfeitos de comida, que mais parece recolhida entre desperdícios. Pede que lhe aqueçam no micro-ondas. Uma empregada latino-americana tem esse gesto de generosidade e ainda lhe oferece uma garrafa de água. Sai a comer com a mão. Corações fortes, desiguais.
O insólito acontece! Um homem descamisado entra pelo restaurante adentro com um ar descompensado percorre meia sala num segundo e retrocede rapidamente e desce as escadas à procura de qualquer coisa. Bate uma porta lá em baixo, deduz-se que da casa de banho. Dois minutos depois um carro da polícia tapa a porta do restaurante, três homens fardados, mais dois à paisana com rádios na mão. Algum burburinho na sala. As pessoas que esperam por lugar saem dali. Um jovem casal assusta-se. Dois minutos depois, o homem ainda sem camisa sai algemado. Sem que nada tivesse acontecido, a não ser o facto de alguém estranho ter estado cinco minutos num restaurante ao meio da noite do ano que termina. Indiferentes, agora, todos continuam o repasto.
Centenas de milhares de pessoas acorrem à praça onde o Fim de Ano se concentra. Contam-se os segundos finais, solta-se o fogo de artifício, abre-se a cava, comem-se as uvas e, sem mais, regressa-se à vida de sempre. Indiferentes e desiguais.
Feliz Ano Novo cheio de coisas boas.
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