Podemos ser ou não crentes, mas vivendo num país de tradição cristã, existem textos que fazem parte da paisagem intelectual em que nascemos e fomos criados. Podemos nunca os ter lido, mas como desde sempre a eles são feitas referências, é possível que o que neles consta não nos estranhe. São textos que fazem parte do tecido cultural de que estamos feitos. No caso português, o livro do Génesis, do antigo testamento, é um bom exemplo. Provavelmente nunca parámos a pensar no que aí consta. O que hoje proponho é que tomemos este texto com um olhar fresco, como se nunca antes tivéssemos dele tido notícia.
É no livro do Génesis, na chamada obra dos seis dias, que Deus cria o mundo através da palavra. “Deus disse: ‘Haja luz’ e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz ‘dia’ e às trevas ‘noite’. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia.” Durante os dias seguintes Deus continua a sua obra criadora, sempre descrita sob a fórmula Deus disse, e o que quer que seja que fosse pronunciado passava a existir. A palavra de Deus é criadora, pronunciá-la é criar a existência do que foi dito.
A excepção ocorre no sexto dia, com a criação do Homem. “Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que ele domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra.” Como se pode verificar, Deus não disse haja Homem. Pelo contrário, deus disse façamos o Homem. No segundo capítulo do livro do Génesis este fazer é explicado: “Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem tornou-se um ser vivente.” Ao criar o Homem, Deus pela primeira vez usa um material ― o barro ― e modela-o. Utiliza as suas mãos e o seu olhar para fazer o Homem à sua imagem e semelhança. Depois, insuflando-lhe o alento divino, confere-lhe simultaneamente vida, espírito e linguagem.
A criação do Homem não foi produzida pela palavra, facto em virtude do qual o Homem é elevado acima da Natureza. Justamente, Deus cria os animais e depois condu-los ao Homem para que este os nomeie. Desta forma, toda a linguagem humana é um reflexo da palavra divina: o mundo é criado pela palavra de Deus e é conhecido em seu nome de acordo com a palavra humana. O nome é, então, a essência íntima da própria linguagem; nele nada é comunicado, não há conteúdo. Quando nomeia, o Homem reconhece a existência de cada coisa para si mesmo e para o criador.
Num texto intitulado A tarefa do tradutor, o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) desenvolve a sua filosofia da linguagem precisamente a partir do livro do Génesis. Diz-nos Benjamin que as coisas são mudas e, portanto, imperfeitas, tendo-lhe sido negado o princípio linguístico formal: a palavra. No entanto, todas as coisas participam da linguagem porque todo o evento ou coisa, animada ou inanimada, comunica o seu conteúdo espiritual. Assim, a palavra, que é criadora em Deus, torna-se receptiva no Homem. Pois “o nome que o Homem dá à coisa depende do modo como a coisa se comunica com ele”. O nome em Deus é conhecimento, Deus é pura realidade, transparente para si mesmo, não precisa da palavra. Quando Deus fala, a coisa acontece. Por seu lado, o Homem nomeia à medida que vai conhecendo. A palavra humana formula-se no tempo.
Essa unidade de verdade do espírito criador e da coisa criada, que se realiza no nome, é aquilo que Walter Benjamin denomina experiência autêntica, onde não há separação entre o sujeito e o objecto. Esta é a característica da linguagem de Adão no paraíso: um estado de contemplação, através do qual a essência espiritual das coisas se comunica ao Homem, que imediatamente as nomeia, conferindo-lhes som e símbolo, completando deste modo a criação de Deus.
Porém, o Homem ofendeu a pureza do nome, comeu o fruto proibido e com ele conheceu o conhecimento do bem e do mal, originando o julgamento e o conhecimento extrínseco da palavra que, então, passa a comunicar algo fora de si. Daqui até à Torre de Babel vai apenas um passo. Diz Walter Benjamin: “Depois da queda que, ao tornar a linguagem mediatizada, havia plantado os fundamentos da sua pluralidade, faltava apenas um passo para chegar à confusão das línguas. Uma vez que os homens ofenderam a pureza do nome, bastava que se cumprisse a separação daquela contemplação das coisas, através da qual a linguagem destas passa ao homem, para que a base comum do espírito linguístico, já quebrado, fosse tirada dos homens.”
Na linguagem adâmica a palavra reconhecia a totalidade da entidade pronunciada; com a confusão das línguas, cada uma delas atinge apenas um aspecto de cada coisa. É daí que vem o ditado quanto mais línguas falas, por mais homens vales. Pois a linguagem ocupa esse espaço entre o Homem e o mundo e constitui-se ela própria em via de acesso, em forma de estruturar o mundo. Não é como vulgarmente se possa pensar que as coisas estão aí e que a linguagem vem depois, como que para rotulá-las. Daqui resultaria, por um lado, o carácter convencional da linguagem e, por outro, a neutralidade da substituição de um idioma por outro. Em vez disso, cada língua fornece uma visão específica do mundo, é um modo de a ele estar ido, um ângulo através do qual o experienciamos.
Em que consiste, então, a forma de uma língua? Não pode existir uma matéria que não esteja configurada numa forma. A forma de uma linguagem consiste na actividade espiritual de criar um som articulado que expresse um pensamento. A matéria seria então o som em geral, as impressões sensoriais, e toda a actividade espiritual antes da palavra, antes do conceito.
Toda a língua é originalmente fala, canção. Não há línguas sem som, embora existam línguas sem escrita. Poder-se-ia considerar o som em geral como matéria prima de todas as línguas. As impressões sensoriais são não apenas aquelas produzidas pela palavra quando ela é pronunciada, mas também a série ininterrupta de sensações que acompanha o ser humano. Sentir é algo permanente; porém, assim como acontece com as funções vitais como a respiração, por exemplo, não temos consciência do que estamos a sentir, a menos que algo desse sentimento rompa o horizonte de indiferença em que normalmente nos encontramos. Quando isso acontece, é frequente libertar-se um som, uma exclamação ou uma respiração, que ainda não são uma palavra, mas são significativas dentro do contexto em que surgem. É o que acontece quando exclamamos um “Ah!” de susto ou um “Oh!” de admiração.
O filósofo e linguista prussiano Wilhelm von Humboldt (1767-1835), num texto intitulado Sobre o estudo comparado das línguas em relação com as diferentes épocas da sua evolução, dir-nos-á que a palavra pronunciada ao transformar o objecto em representação mental, através do seu som específico, da entoação, e do seu contexto, “faz ressoar, embora muitas vezes de maneira imperceptível, uma sensação que corresponde simultaneamente à natureza da palavra e à natureza do objecto”. É também neste sentido que aponta Walter Benjamin, num outro texto intitulado A origem do drama barroco alemão: “o precipício aberto entre a imagem escrita, dotada de significado, e o embriagador som articulado, separação que racha o sólido significado verbal, força o olhar a embrenhar-se nas profundidades da linguagem.”
O momento anterior à palavra, a actividade espiritual que a precede, é para María Zambrano o lugar em que em cada realidade aninha, como seu núcleo secreto e profundo. Dele, a palavra falada ou escrita é apenas um reflexo transitório e fugidio. O ser humano almeja chegar a esse centro de sentido, mergulhar nas profundezas trémulas de cada ser, descobrir a sua palavra, porque “no fundo da alma espera-se que tudo o que é criado ou que tudo o que é natural tenha uma palavra para dar, o seu logos recôndito ou zelosamente guardado” (Clareiras do Bosque).
Este momento anterior a todos os significados, e fonte de possibilidade para todos eles, recusa qualquer instrumentalização. É a palavra semen ou logos espermatikos, continua Zambrano, “geradora de musicalidade e abismos de silêncio, palavra que não é conceito porque é ela que nos faz conceber, fonte de conceber que está além do que se chama pensar.”
Sintetizando, os filósofos aqui apresentados coincidem no reconhecimento de três níveis de linguagem:
1.º – A linguagem divina; a realidade é criada assim que a palavra é pronunciada.
2.º – A linguagem de Adão; nomeia os seres que a ele comunicam o seu conteúdo espiritual; o nome reconhece plenamente a existência de cada ser ou coisa.
3.º – A linguagem utilitária; acontece a jusante da queda do paraíso; é uma linguagem que julga o que é bem e o que é mal, é dicotómica, perdeu o dom da equanimidade.
Poder-se-ia dizer que todo o esforço de poetas e pensadores vai no sentido de recuperar o dom da linguagem, a graça recebida pelo Homem pelo sopro divino que é vida, fôlego e fala ao mesmo tempo, mas fala que não está destinada ao sacrifício da comunicação.
Café Filosófico | 17 de Novembro | 18.30 | AP Maria Nova Lounge Hotel, Tavira
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A autora não escreve segundo o acordo ortográfico
* Doutorada em Filosofia Contemporânea;
Investigadora da Universidade Nova de Lisboa