Era uma vez um tempo longínquo em que quando precisava de transferir dinheiro me dirigia ao banco, aguardava pacientemente numa fila e, quando finalmente chegava a minha vez, um funcionário ou funcionária de carne e osso atendia-me. Era então necessário explicar minuciosamente o que se pretendia e, com mais ou menos boa vontade, o procedimento lá seguia o seu curso. Agora transferimos dinheiro e pagamos todo o tipo de contas não apenas na comodidade das nossas casas e sem depender de outrem, mas também de qualquer lugar do munto, basta-nos para isso ter um computador ou um smartphone e ligação à internet. O IRS é praticamente automático pois as facturas ficam registadas no Portal das Finanças, agendamos as consultas do Centro de Saúde com um click no teclado e, do mesmo modo, podemos pagar as nossas contribuições na Segurança Social Directa, ou comprar um bilhete de avião.
Porém, nem tudo são rosas… O que é que acontece quando o sistema falha a meio de uma transacção? Que sentimos quando estamos sem saber se o dinheiro chegou ao seu destino, se já saiu da nossa conta ou, pior ainda, verificamos que saiu, mas não chegou a nenhum lado e está algures no meio, um meio intangível e ilocalizável? Dependendo da quantia e do tempo que dura esta indeterminação o desespero pode grassar.
Às vezes, andamos à procura de um documento importante, mas ele encontra-se nesse algo a que chamam “nuvem”, mas que nem sempre está acessível. E se a tal da “nuvem” se dissipa ou evapora com o sol forte de um outro sistema qualquer?
Às vezes o computador e o smartphone aparecem-me como utensílios perigosos que desconfio habitados por algum génio maligno que tudo faz para prejudicar as minhas iniciativas
No preciso momento em que escrevo este artigo, encontro-me num país do continente africano. Trouxe comigo o computador portátil e uma pen drive com um duplicado de ficheiros já para o caso de algo falhar. Enfim, tentei tomar todas as precauções, mas de pouco serviu. Preciso de entregar este artigo à redacção do jornal daqui a dois dias e preciso também de enviar a confirmação de realização dos Cafés Filosóficos aos meus grupos de gmail, o português com mais de duzentos contactos e o inglês com quase cem. Ora, quando quero compor o email, por alguma razão o gmail já não vai buscar os contactos automaticamente e é impossível colocá-los um a um. Já perdi a conta das horas que gastei a perguntar na internet como se resolve este problema e também já perdi a conta dos vídeos de ajuda do youtube que visualizei e tentei aplicar sem obter resultados. Enfim, não poderei comunicar com estes grupos e isso pode prejudicar o encontro presencial do Café Filosófico de Janeiro.
Esta possibilidade de, a cada momento, algo poder correr mal e não se ser capaz de identificar o que se passa, nem dispor das capacidades adequadas para resolver o problema coloca-me num estado de alerta constante. Por outro lado, para questões mais complexas, o ter de recorrer a outrem mais dotado que eu para intermediar entre mim e a máquina é uma humilhação.
Esta humilhação não é pequena, antes se espraia por diversos ângulos e sentires. Quando o problema parece de pouca monta a quem nos auxilia surge logo o sorriso, entre o perplexo e o sarcástico: “O quê? Então não sabes fazer isto? Mas se é tão simples!” Estes desabafos de impaciência podem também vir acompanhados de alguns rótulos tais como “analfabetismo digital” ou “analfabetismo funcional” ou outro analfabetismo qualquer, em variações de condescendência e reprovação. Dificilmente quem nos ajuda acredita que realmente não somos capazes, pensa que se trata de preguiça, falta de vontade de aprender ou simplesmente desleixo.
Às vezes eu desejaria que o computador fosse apenas e só uma máquina de escrever sofisticada. Mas a transição para o digital parece imparável. Nela o governo português investiu 22% do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), ultrapassando o limiar de 20% exigido pela União Europeia, concentrando-se nas seguintes áreas: “capacitação e inclusão digital das pessoas através da educação, formação em competências digitais e promoção da literacia digital, transformação digital do sector empresarial e digitalização do Estado.”
Confesso que me encontro entre esses cuja transição para um mundo cada vez mais digital se vive de forma penosa. A sua indispensabilidade no quotidiano coloca-me, a todo o momento, diante da minha inépcia e desadequação. A única certeza de que disponho é a de saber que a qualquer momento irá surgir um obstáculo intransponível e que pode não haver alguém – mais inteligente, melhor adaptado ou digitalmente alfabetizado – que tenha a paciência e ou o tempo para me salvar do apuro.
Por outro lado, com o digital cada vez mais presente nas nossas vidas passaremos, quer queiramos ou não, mais tempo em frente dos ecrãs. O artigo “Como o uso excessivo das telas afecta o cérebro” publicado pela National Geographic a 24 de Fevereiro de 2023 refere os seguintes malefícios:
– Alteração do ritmo circadiano: em vez de seguir o ritmo natural noite/dia ou escuridão/luz o nosso cérebro pode ficar completamente confundido com a exposição aos ecrãs luminosos dos telefones, computadores ou televisão. Isto pode causar distúrbios do sono e até contribuir para outro tipo de patologias como a obesidade ou a depressão.
– Dessensibilização do sistema de recompensa: os jogos electrónicos e as redes sociais podem fazer com que as crianças fiquem viciadas na dopamina (neurotransmissor que gera uma sensação de bem-estar). Contudo, quando estes circuitos de recompensa são utilizados em excesso tornam-se menos responsivos e é necessária uma carga de estímulo cada vez maior para desencadear prazer.
– Impacto no desenvolvimento cognitivo: verificou-se o aumento de distúrbios cognitivos, emocionais e comportamentais em adolescentes e jovens adultos. A atenção e a concentração, diminuem e aumentou o risco da doença de Alzheimer.
Às vezes o computador e o smartphone aparecem-me como utensílios perigosos que desconfio habitados por algum génio maligno que tudo faz para prejudicar as minhas iniciativas. Talvez eu sofra de tecnofobia. Além do desagradável que é viver assim, há um outro ângulo desta questão que me preocupa: o estado de alerta constante, este sobressalto que activa o cérebro reptiliano.
De a cordo com a Teoria do Cérebro Trino do neurocientista Paul MacLean este órgão encontra-se dividido em três unidades funcionais: o cérebro reptiliano, comum aos répteis, que está equipado para a sobrevivência, sendo o responsável pelas sensações primárias como a fome, a sede, ou o medo; o cérebro emocional que partilhamos com a maioria dos mamíferos; e o cérebro racional, aquele que melhor nos diferencia, por sermos capazes de pensar abstractamente e de inventar.
Ora a minha desadequação face ao digital faz com que eu viva em permanente estado de alerta, com medo e em sobressalto. Estou constantemente a activar o meu cérebro reptiliano. Além da ansiedade que isto provoca, estarei em riscos de me converter em lagarto?
Café Filosófico: o digital e o lagarto
22 de Fevereiro 2025 | Casa Álvaro de Campos | Tavira
16:30 Português | 6:30 pm English
Inscrições / To book: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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