A fauna e a flora, juntamente com os recursos hídricos, foram ingredientes durante milhares de anos para o desenvolvimento de comunidades humanas. Na pré-história o homem caçava para sobreviver. Com a invenção da agricultura na pré-história recente, no período neolítico, as comunidades humanas tornaram-se sedentárias, fixando-se em povoados e começaram a produzir e a cuidar dos seus próprios alimentos. A caça, que representava o alimento incerto, passou a ter um papel secundário, mas sempre complementar na alimentação humana, tornando-se uma ferramenta de gestão do território, necessária na proteção das plantações, das populações e dos animais domésticos.
A vila medieval de Alcoutim tornou-se sede de concelho em 1304, pelo foral passado por D. Dinis, e foi até 1836 o maior concelho do Algarve, ano em que perdeu a freguesia de Cachopo para Tavira. Mantendo-se atualmente como um dos maiores em território com cerca de 577 kms2, representando 12% da área total do Algarve. O seu território caracteriza-se por terrenos xistosos pobres do ponto de vista agrícola, acidentado e marcado pelas várias ribeiras que o atravessam e pelo vale do Guadiana que lhe serve de fronteira com Espanha. Tem características que atraíram populações e levaram à fundação de mais de uma centena de pequenas aldeias, aliciadas pelos seus recursos naturais como a fauna, a flora e os minerais do subsolo. Ao longo dos séculos a sua população dedicou-se maioritariamente à agricultura e à pastorícia, tendo na caça, na pesca, na apicultura, na recoleção de cogumelos e plantas silvestres um bom complemento à sua dieta alimentar. A caça, sobretudo à perdiz, ao coelho e à lebre teve épocas de grande importância, sobretudo para aqueles que passaram fome e por necessidade tinham de recorrer à caça para sobreviver. Episódios destes podem, ainda, ser escutados da boca dos residentes mais idosos, que recordam tempos difíceis, mas onde a caça era abundante e utilizavam técnicas hoje em desuso ou proibidas. Eram as armadilhas, os cães treinados diariamente no campo, o caçar com um pau ou o caçar em grupo à perdiz escalfada.
A caça foi sempre um recurso importante em Alcoutim
A caça foi sempre referida como um recurso importante em Alcoutim. Em tempos foi praticada por caçadores semiprofissionais que caçavam todos os dias durante largos meses do ano e que vendiam caça para ganharem o sustento da família. Os almocreves antigos e as carreiras de há algumas décadas encarregaram-se de levar a caça para ser vendida e consumida nos grandes centros urbanos do litoral e até para Lisboa chegou a ser enviada. Conta-se que vinham caçadores de outros concelhos instalar-se no concelho de Alcoutim durante as temporadas de caça com o propósito de caçar todos os dias e com isso realizarem negócio. Nos finais do séc. XIX também o Rei D. Carlos foi atraído pela fama desta terra em abundância cinegética, sobretudo para realizar jornadas de caça às lebres nas chadas do Pereiro.
Hoje, os tempos são outros, Alcoutim luta contra o despovoamento e a desertificação, aproveitando todos os recursos para melhorar a qualidade de vida dos seus habitantes. A atividade cinegética tem uma importância vital nos territórios rurais. É inegável a importância da caça na gestão do ecossistema agrícola, sobretudo na componente biótica que diz respeito aos organismos vivos, onde o homem tem um papel ativo na organização e gestão dos recursos. A economia da caça, em Alcoutim, reflete-se nos empregos diretos e indiretos, como por exemplo a fonte de receitas de dormidas e comidas e o aumento do número de visitantes que atrai ao concelho. Destaca-se também o reflexo na gastronomia tradicional, os pratos de caça como por exemplo a açorda de perdiz, a canja de perdiz, o javali estufado, a lebre com feijão branco, o ensopado de lebre ou o coelho frito, que associados a outros produtos da terra, podem ser degustados nos restaurantes do território.
Nas últimas três décadas houve uma grande evolução na forma de gerir os recursos cinegéticos, passando o território de Alcoutim a estar 85% em regime cinegético ordenado, onde existem 15 reservas turísticas que abrangem 23.798 hectares e 38 zonas de caça associativas com uma área de 23.727 hectares e duas reservas de caça municipais com uma área de cerca de 1.700 hectares. As zonas de caça turísticas de Alcoutim representam 35% das existentes em toda a região algarvia e as associativas 14%. Estes números refletem bem a importância do setor neste concelho, conhecido por ser um paraíso cinegético e onde a caça à perdiz é rainha, mas também ao coelho, à lebre, ao javali e ao veado.
Na sociedade atual existe um preconceito contra a caça e os caçadores, com base em ideias difundidas por quem desconhece a verdadeira essência e a realidade do mundo rural. Mas é importante que se perceba que a atividade cinegética faz parte da identidade do mundo rural, que sempre existiu e sempre as comunidades rurais souberam gerir o ecossistema de forma sustentável. É necessário voz ativa na defesa do mundo rural, é necessário debater de forma honesta e esclarecida para que não sejam tomadas decisões, por quem tem poder e legitimidade para tal, com base no desconhecimento e no preconceito. Defender a caça é defender a valorização do ecossistema agrícola e a biodiversidade, é defender o mundo rural na sua essência e interligação com a natureza, é combater o despovoamento, o abandono e a desertificação, é entender a natureza e compreender a essência humana.
A caça é praticada com paixão, mas também com comprometimento com a natureza
O caçador é acima de tudo um apaixonado pelo campo, pelos animais e pelas atividades do mundo rural. A caça é gestão cinegética, é gestão do ecossistema, é preservação dos habitats e valorização das formas tradicionais de habitar o mundo rural. A caça é uma forma de turismo, quer no ato em si como nas caminhadas e contemplação dos animais em estado selvagem, quer na convivialidade e sociabilização que proporciona. Uma boa gestão cinegética faz sementeiras e constrói charcas para armazenamento de água para que não falte comida e água aos animais. É fundamental fazer uma gestão correta dos matos, abrir caminhos que entre outras utilidades permitem a prevenção e o combate aos incêndios. A gestão cinegética é uma preocupação permanente com o equilíbrio entre exploração agrícola, exploração cinegética e manutenção da biodiversidade. No fundo, é a preocupação e o assumir de responsabilidade entre o equilíbrio da exploração da natureza pelo ser humano e os demais seres vivos que partilham o território.
A caça é praticada com paixão, mas também com comprometimento com a natureza e tem de ser respeitada como ferramenta de gestão do mundo rural e da biodiversidade. No território de Alcoutim esta gestão tem permitido atrair populações de veados vindos de Espanha, que aqui encontram condições para se desenvolverem, recuperando esta espécie no território depois de estar completamente extinta. Outras espécies têm aumentado neste território, como a águia de bonelli, a abetarda, a barriga negra, a raposa, o javali, os saca rabos, etc. Com maior mediatismo e exemplo máximo deste trabalho de recuperação de espécies selvagens e da estreita colaboração entre ICNF e caçadores temos o lince ibérico. A reintrodução dos primeiros linces no território do Baixo Guadiana aconteceu em 2015, em Mértola, concelho limítrofe de Alcoutim situado a norte. O lince ibérico estava na lista de espécies em risco de extinção e graças ao excelente trabalho realizado pelo ICNF, em colaboração com associações de caçadores e outras entidades, o lince tem proliferado no território, encontrando em Alcoutim um habitat perfeito para se desenvolver. Este habitat é fruto da gestão cinegética que providencia alimento para todas as espécies selvagens.
Alcoutim precisa deste recurso natural que assume grande importância na manutenção das suas populações!