A legislação urbanística originou a queda de dois governos consecutivos
O planeamento do território e a gestão urbanística não regulam apenas a essência da vida do ser humano, mas também a estrutura funcional da própria sociedade nos mais diversos domínios.
Esta evidente realidade não decorre apenas da qualidade de vida, quando, de formas diferenciadas, se reflete no local da residência.
A habitação, no seu contexto transversal e na sua envolvência, representa um dos polos essenciais da vida individual, familiar e não significa, apenas, a residência fiscal.
O local onde vivemos integra o conceito de família e transmite a sensação de segurança, de conforto, a satisfação das necessidades básicas, o ambiente de vizinhança, as amizades que restam do percurso escolar, os afetos, as raízes do futuro e das memórias que farão parte da nossa existência.
O solo representará sempre o sustentáculo da vida
Porém, noutra perspetiva, em cada momento onde o ser humano se encontre, seja qual for o local, as características do ambiente físico que o envolve condicionarão o seu estado de espírito.
A influência do enquadramento ambiental, urbanístico ou paisagístico, na sensação de bem-estar, tranquilidade, harmonia ou ansiedade, são indiscutíveis.
Experimentar a sensação inexplicável, de bem-estar, ou desconforto, provocada pelo ambiente urbano ou rural que nos rodeia, acontece-nos com frequência.
Mas, para quem assume responsabilidade na regulação e decisão sobre a utilização, artificialização, ou transformação do território, a importância e influência no âmbito do “valor acrescentado” transforma-se num arriscado e permanente desafio à integridade, nem sempre por motivações de desonestidade.
Quem decide sobre a gestão do território enfrenta desafios passíveis de pôr em causa a defesa do interesse público
Vejamos. Quem decide sobre o local de instalação de um empreendimento que envolve um investimento de três mil milhões de dólares, como o da Autoeuropa, ou do megacentro de dados da Start Campus, cujo financiamento ascende a 3,5 mil milhões de euros, e concretiza essa decisão, exerce poder a um nível extraordinário num processo de gestão do território, através da prática de meros atos administrativos.
Através de deliberações camarárias ou despachos de entidades oficiais foram e são concretizados, no território, megaprojetos com impacto financeiro ou socioeconómico de elevado nível nacional ou até internacional, independentemente da salvaguarda de fundamentais servidões administrativas, redutoras da necessidade ou iniciativa do cidadão comum.
Estas “ocorrências”, concretizando processos macroeconómicos, multiplicam-se por milhares de situações que se desenvolvem, sistematicamente, pelo país fora através de investimentos em menor escala.
A legislação urbanística mais recente originou a queda de dois governos consecutivos
Quanto aos inúmeros e mediáticos escândalos urbanísticos que envolvem autarcas, empresários, técnicos e outros profissionais ligados direta ou indiretamente ao ramo da construção civil, surgem sistematicamente na imprensa, envolvendo, nos últimos anos, centenas de visados.
Em regra, tais escândalos surgem através de denúncias, na medida em que não existe qualquer entidade fiscalizadora específica dedicada exclusivamente ao planeamento e à gestão do território.
A extinta IGAT – Inspeção Geral da Administração do Território incidia a sua atividade fiscalizadora sobre as autarquias, abrangendo a utilização do território, exercendo, no entanto, a sua atividade de forma pedagógica sobre a gestão urbanística, particularidade essencial para quem tem tal responsabilidade.
Presentemente, a Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) inspeciona as operações urbanísticas através de imagens obtidas por satélite, visando, apenas, a localização das construções em função das servidões administrativas relacionadas com o ambiente, reservas agrícola e ecológica, áreas protegidas, domínio hídrico, etc.
O relatório da IGAMAOT detetou, em janeiro deste ano, 96% de ilegalidades nos processos inspecionados
E então? Esta entidade refere no seu relatório publicado em janeiro deste ano(*) que 96% das operações urbanísticas inspecionadas apresentam ilegalidades de vária ordem.
Convém ter em atenção que estes dados públicos são confirmados pela própria IGAMAOT, no seu site, e a percentagem de ilegalidades surgiu sem que tenha sido colocada em prática a “erradamente designada lei dos solos”, que vem remeter à responsabilidade exclusiva dos municípios o poder de transformar solos rústicos em urbanos.
Com a publicação do Decreto Lei n.º 117/2024, a designada “lei dos solos”, recentemente alterada por apreciação parlamentar que regula a elaboração dos instrumentos de gestão do território – os planos municipais e intermunicipais -, apresentará novos riscos e desafios.
Como noutras áreas de intervenção, no complexo universo da organização e gestão da sociedade, o planeamento e a gestão do território exercem influência determinante e acrescida, representando um desafio à integridade de quem dispõe de responsabilidade nesse domínio.
A sociedade merece seriedade e confiança. Estes valores, a par da imparcialidade e da justiça, representam os pilares essenciais do seu funcionamento.
(*) https://www.igamaot.gov.pt/pt/espaco-publico/destaques/inspecoes-na-area-do-ordenamento-do-territorio – Última atualização: 2025-01-10
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