A estruturação do novo sistema partidário
«Medidas a curto prazo
5. O Governo Provisório, tendo em atenção que as grandes reformas de fundo só poderão ser adotadas no âmbito da futura Assembleia Nacional Constituinte, obrigar-se-á a promover imediatamente:
(…)
b) A liberdade de reunião e de associação. Em aplicação deste princípio será permitida a formação de “associações políticas”, possíveis embriões de futuros partidos políticos, e garantida a liberdade sindical, de acordo com lei especial que regulará o seu exercício.»
Programa do Movimento das Forças Armadas
Pese embora algumas declarações iniciais mais equívocas sobre esta matéria por parte das novas autoridades militares, os partidos irromperam na vida política portuguesa logo depois do 25 de Abril em duas vagas sucessivas:
– Ainda em abril, os partidos já existentes, recém-saídos da clandestinidade, que, por se terem batido contra o regime anterior, beneficiavam, aos olhos da população, de uma legitimidade acrescida;
– A partir de maio, os partidos novos, representativos (fora o MES, fundado nesta altura, mas com antecedentes na luta contra a ditadura) tanto de correntes internas do regime deposto, que, no passado mais recente, em maior ou menor grau, dele se vinham distanciando criticamente (PPD e PPM, em maio, CDS, em julho), como de outras, de ultra direita, inconformadas com a nova situação política, cujo rumo pretendiam reverter ou alterar num sentido mais consentâneo com o ideário que perfilhavam e os interesses económicos a que estavam associadas (MFP/PP, PDC, PL, PTDP, etc.).
Saudosos do autoritarismo de Salazar e defensores acérrimos da integridade do império colonial, descontentes, num caso e noutro, com o que consideravam ter sido a falta de firmeza de Marcelo Caetano nestas matérias, estes últimos pautar-se-ão, nos primeiros meses, por uma linha de atuação: o apoio ao presidente da Junta de Salvação Nacional, general António de Spínola, e às suas teses federalistas de solução do problema colonial – a que antes se tinham oposto – um mal menor que, ainda assim, julgavam poder conter as pulsões de maior alcance político e social da revolução e evitar a descolonização (ou, no limite, conformá-la a interesses mais próximos dos seus). De duração efémera, viriam (à exceção do PDC) a desaparecer, sem grande história, a seguir à tentativa golpista de 28 de setembro, com a qual estavam comprometidos. Muitos dos seus protagonistas, a par de outros oriundos das extintas PIDE e LP, alimentariam nos anos subsequentes quer a rede bombista, quer as organizações de extrema-direita a ela associadas, nesse período (ELP e MDLP).
De todos os partidos, seja os já existentes, seja os surgidos depois do 25 de Abril, apenas seis viriam, nas primeiras eleições democráticas, a obter representação parlamentar e, por via disso, a integrar o novo sistema partidário: à esquerda, a UDP, o PCP, o MDP/CDE e o PS, à direita, o PPD e o CDS.
O MDP/CDE
Fora o PCP, o PS e outros pequenos partidos ou agrupamentos políticos, à sua esquerda, todos proibidos durante a ditadura e, por isso, obrigados a viver na clandestinidade, as CDE´s eram as únicas estruturas políticas oposicionistas cuja existência era, pelo menos em altura de eleições, minimamente tolerada pelo regime deposto. Criadas, distrito a distrito, em 1969 como braço legal da Oposição (ou de um seu setor, nos casos de Lisboa, Porto e Braga, onde esta se apresentou em listas separadas) para concorrer às eleições para a Assembleia Nacional desse ano, a sua atividade política estava, no entanto, limitada a estes períodos e aos distritos em que concorriam. Nelas convergiam pessoas com origens e percursos políticos muito diferentes: comunistas, cuja ligação a este partido era desconhecida das autoridades ou dele desligados organicamente, por razões de segurança; elementos vários do velho republicanismo ou a eles ligados por via familiar; socialistas da ASP (à exceção dos distritos anteriormente referidos, onde, em 1969, concorreram separadamente, no âmbito da CEUD), e quadros originários dos movimentos de contestação católica e das crises académicas dos anos 60, sem uma filiação definida. Além de uma casa comum da Oposição, que albergava quantos se opunham à ditadura, as CDE´s eram também, pela influência que, em termos organizativos e de ativismo, nelas exercia o PCP, uma espécie de organização frentista deste partido, que, à semelhança do que, no passado, tinha acontecido com outras (MUD juvenil, MND), permitia a alguns dos seus militantes atuar com alguma cobertura legal.

Não é por isso de estranhar que, nos dias iniciais, a seguir ao golpe militar triunfante, numa altura em que não era ainda claro o papel reservado aos partidos na nova ordem política emergente, tivessem sido as CDE´s, entretanto unificadas a nível nacional sob a nova designação de Movimento Democrático Português (MDP), a aparecer à luz do dia para mobilizar as populações para os novos desafios colocados ao país. Com os partidos já existentes – PCP e PS – ainda a dar timidamente os primeiros passos na legalidade e outros novos a constituir-se – caso do PPD, logo no início de maio – coube naturalmente ao MDP/CDE (sigla que adotou desde então e pela qual passou a ser conhecido) um papel de grande importância no novo curso democrático, quer como movimento unitário onde se integravam militantes e simpatizantes dos principais partidos – PCP e PS, a que se juntaria, logo no início, a adesão formal do novo PPD –, quer como instância política a quem, nos primeiros tempos, coube o papel de porta-voz dos anseios das populações junto das novas autoridades militares.
Muito ativa nos dias iniciais da revolução, responsável, a nível do Algarve, quer pelas primeiras manifestações no dia 27 de abril, quer por «uma reunião plenária de emergência» de âmbito distrital por essa altura realizada em Loulé, a CDE publicou, no dia «28/4/74 – 3.º dia da Libertação», um documento de apoio e regozijo com a nova situação política a que chamou de «Comunicado n.º 1 ao Povo Algarvio». Nele, a par de informações sobre as deliberações tomadas na reunião de Loulé, esta organização apelava à mobilização dos algarvios e à sua vigilância «em relação a atitudes provocatórias» de «movimentos reacionários» que pudessem ameaçar o novo curso político.(1) Em Faro, a primeira reunião pública da CDE de que há notícia na imprensa realizou-se no dia seguinte, 29 de abril. Inicialmente convocada para a sede do Círculo Cultural do Algarve, a reunião, a que «compareceram muitas pessoas», teve, por essa razão, à última hora, de ser transferida para um espaço mais amplo, um salão de jogos fronteiro àquela instituição, «de modo que todos pudessem assistir à sessão». Na reunião, que «decorreu com o melhor espírito cívico», os participantes discutiram a orgânica a adotar pelo MDP/CDE a nível concelhio e escolheram a composição da comissão coordenadora provisória a funcionar até ao próximo plenário do movimento: Dr. José de Jesus Neves Júnior, Dr. João Carlos Botelheiro, João de Brito Vargues (os três, membros da mesa que orientava os trabalhos), Morgado André, Campos Coroa, João Maximiano, Álvaro Pedro Café, Leandro Carromba de Sousa, Aníbal Louro Bexiga, João Ramires Fernandes, Manuel José Ramires Fernandes, José da Cruz Santos, José Manuel Raimundo, José Teixeira Faísca, Fernando Santos, Valério Bexiga Grou e Olegário Barão.(2) Cinco algarvios seriam posteriormente escolhidos para integrar a Comissão Central do MDP: Luís Filipe Madeira, Manuel Campos Lima, João Maximiano, José Veloso e João de Brito Vargues.

Com grande visibilidade em termos públicos, resultado em larga medida do seu papel na oposição à ditadura, o MDP/CDE manteve, nos primeiros tempos, uma intensa atividade política, a qual, sob a forma de comícios ou sessões de esclarecimento, envolveu um elevado número dos seus quadros dirigentes e ativistas. Realizados em espaços mais amplos, dirigidos a públicos mais vastos, sobretudo nas cidades e vilas, os comícios, algumas vezes organizados em conjunto com outras organizações, partidos ou não, tinham principalmente objetivos de mobilização da população em torno dos temas que, em cada momento, mais marcavam o calendário político. Já as sessões de esclarecimento, com um carácter mais informal, tinham lugar em espaços mais reduzidos e intimistas, para públicos locais, interessados no esclarecimento das questões que, no seu dia a dia, mais os apoquentavam. Sem ser exaustivo (é provável que nem todos os comícios e sessões tenham sido noticiados), o número elevadíssimo destas iniciativas que é possível inventariar pela imprensa é em si elucidativo da intensa atividade do MDP/CDE neste período bem como da diversidade dos protagonistas políticos que por ele deram a cara.
Ao contrário dos aderentes dos pequenos partidos de esquerda, esmagadoramente jovens, estudantes liceais, de escolas do ensino técnico e universitários ou trabalhadores, cujas vivências políticas remontavam, quando muito, aos anos finais da ditadura, os ativistas do MDP/CDE eram, em grande parte, homens e mulheres adultos com um início da vida política mais longínquo, algures entre o fim da 2.ª Guerra Mundial, quando não antes, e as eleições de 1969. Em termos socioprofissionais, entre eles encontramos comerciantes, industriais, membros de profissões liberais, funcionários públicos, trabalhadores dos serviços por conta de outrem e, mais raro, alguns intelectuais de prestígio nas localidades onde viviam. Tinham em geral uma instrução e uma formação política superiores ao comum dos seus concidadãos, em grande parte autodidata, obtidas em jornais, revistas e livros, alguns de autores proibidos no tempo da ditadura, e onde o pensamento laico-republicano e de matriz marxista era dominante. Alguns tinham sido operários na juventude, pertencido ao MUD Juvenil e organizações unitárias similares, militado no PCP e passado pelas prisões do Estado Novo. Liam jornais e outras publicações de esquerda e frequentavam habitualmente um café na localidade da sua residência, onde, depois do almoço ou do jantar, se encontravam com os amigos, muitas vezes correligionários, mas também pessoas de ideias diferentes, o que, não raro, depois do 25 de Abril, dava lugar a discussões acaloradas. Declaravam-se progressistas (por oposição aos reacionários) e simpatizavam com a União Soviética, que enalteciam pelo seu contributo para a derrota do nazi-fascismo e a paz no mundo. Eram, em suma, uma elite: um grupo que, em termos políticos, se distinguia do resto da população a que pertencia, ainda muito despolitizada, o que, em alguns meios mais conservadores, nos momentos mais quentes da revolução, levaria a que, com alguma facilidade, os seus membros fossem rotulados de comunistas.
Alguns, como, no final de 1974, Luís Filipe Madeira, viriam a ingressar no PS. Outros, como, mais tarde, o industrial de Olhão Manuel Rodrigues Pereira, no PCP, de que tinha sido já militante na clandestinidade. A grande maioria parece ter permanecido no MDP, por convicção ou pragmatismo, e, depois da transformação deste em partido, nos finais de 1974, integrado ou apoiado as suas listas às eleições para a Assembleia Constituinte, no ano seguinte. Com uma base social, no início, superior à soma das bases dos dois principais partidos que dele faziam parte, o MDP/CDE não conseguirá, no entanto, evitar que, ao concorrer a eleições, sob a forma de partido, apenas uma pequena parte desses potenciais eleitores acabe por votar em si. Com 4, 14% (à semelhança do PS, distribuídos de forma relativamente homogénea pelos vários círculos), o MDP/CDE não irá além da eleição de cinco deputados, um dos quais por Faro, o distrito onde obteve o score mais elevado do país (9,5%).
Depois de, em 1976, não ter concorrido às eleições legislativas (alegadamente para não dividir os votos da esquerda), foi a partir de finais deste ano candidato a vários atos eleitorais em coligações com o PCP (FEPU, nas autárquicas de 1976, e APU, entre 1979 e 1985), com a garantia antecipada de lugares eleitos. Em 1987 voltará a concorrer a umas eleições legislativas com listas próprias, mas sem eleger qualquer deputado. Nos finais dos anos 1990, deu lugar à Política XXI, pequena organização que, em 1999, sob a égide de Miguel Portas, será, juntamente com a UDP e o PSR, uma das fundadoras do Bloco de Esquerda.
Um prestigiado académico, com vasta obra publicada no campo da historiografia (caso da História da Imprensa Periódica Portuguesa), o líder nacional do MDP/CDE José Manuel Tengarrinha nasceu em Portimão, em 1932. Na juventude pertenceu ao MUD Juvenil, aderiu ao PCP, trabalhou como jornalista e formou-se em Ciências Histórico-Filosóficas. Preso e torturado, em 1961, no Aljube, foi, depois de liberto, impedido de exercer a profissão de jornalista, excluído da prática do ensino e, sem outros meios de subsistência, obrigado, nos anos seguintes, a viver de traduções e trabalhos publicitários. Em 1969, foi, em representação do PCP, um dos fundadores da CDE e candidato a deputado por Lisboa, nesse ano e em 1973. Preso nas vésperas deste ato eleitoral e, de novo, nos finais do mesmo ano, seria um dos numerosos presos políticos libertos do Forte de Caxias às primeiras horas do dia 27 de abril de 1974. Um dos principais rostos do MDP/CDE, nos primeiros meses da revolução, viria, na sequência da transformação deste em partido, a desvincular-se do PCP e a assumir por inteiro a liderança da nova formação partidária, pela qual seria eleito deputado à Assembleia Constituinte e, por várias legislaturas, à Assembleia da República.
Não obstante o MDP contar na altura com um número significativo de quadros muito ativos, apenas dois dos seus dirigentes vieram a ocupar posições de relevo na vida política da província: os advogados Drs. Luís Catarino e Manuel Ramires Fernandes. Nascido em Coimbra em 1926, advogado em Portimão desde 1961 e um dos participantes do III Congresso da Oposição Democrática de Aveiro, em 1973, Luís Catarino foi o deputado eleito pelo MDP/CDE à Assembleia Constituinte, em 1975, pelo círculo de Faro, cargo que voltaria a ocupar em 1979, nas eleições para a Assembleia da República. Mais novo, nascido em 1942 em Lisboa, advogado em Faro desde que, já casado, aqui se fixou depois do serviço militar, Manuel Ramires Fernandes foi governador civil de Faro por alguns meses, em 1975 (num período muito conturbado da vida política), deputado à Assembleia da República, em substituição por algum tempo de Luís Catarino, e, anos mais tarde, um dos fundadores da associação CIVIS. Viria a falecer, juntamente com a mulher, Margarida Fernandes, professora da Universidade do Algarve, vítimas de um trágico acidente de viação, em 2003.
O Partido Comunista Português (PCP)
Por altura do 25 de Abril já com mais de meio século de vida, o PCP era não só o partido português mais antigo, mas também o único que, em condições muito adversas, de grande repressão, tinha conseguido sobreviver durante o longo período da ditadura. Fundado a 6 de março de 1921, ainda durante a Primeira República, passara por momentos difíceis, que quase o tinham levado à extinção, e conhecera outros melhores, em que, apesar das dificuldades, tinha logrado entrosar-se na sociedade portuguesa, nomeadamente depois do fim da 2.ª Guerra Mundial, período da sua maior pujança, quando, mercê de uma forte organização clandestina e de uma grande implantação no mundo do trabalho, chegou a contar mais de cinco mil militantes. Principal partido da Resistência, tinha sido também aquele cujos quadros e militantes, de longe, mais anos tinham somado na clandestinidade e nas prisões do Estado Novo. Combinando habilmente a luta clandestina com as poucas possibilidades legais permitidas pelo regime, sobretudo por ocasião de eleições, fora ainda o impulsionador de alguns dos mais importantes movimentos oposicionistas surgidos durante e depois da II Guerra Mundial: o MUNAF, o MUD Juvenil, o MND e, já na fase descendente da ditadura, as CDE´s. Desde 1961, de forma contínua, liderado por Álvaro Cunhal, pouco antes, com mais nove companheiros, espetacularmente fugido do Forte de Peniche, onde estava preso havia 11 anos, o PCP contava, à altura do 25 de Abril, «entre dois e três mil militantes».(3) Exilado em Paris desde 1967, depois de alguns anos passados em Moscovo, Cunhal regressaria a Portugal cinco dias depois da revolução vitoriosa de 25 de Abril, a tempo de participar na manifestação do 1.º de Maio, onde, juntamente com Mário Soares, também regressado do exílio, seria largamente ovacionado pelos muitos milhares de pessoas que, nesse dia, acorreram ao recém batizado Estádio 1.º de Maio para festejar a liberdade reconquistada. No dia anterior, à sua chegada ao aeroporto de Lisboa, tinha sido igualmente recebido em triunfo pelos numerosos manifestantes que ali acorreram para o saudar.

Por agora a iniciar o seu regresso à legalidade, o PCP tinha pela frente um novo, mas não menos difícil desafio. Beneficiando, é certo, da aura de grande partido da resistência antifascista e do prestígio que daí lhe advinha, sobretudo em zonas do país onde já era influente, o PCP não podia, em contrapartida, ignorar os temores e desconfianças que a invocação do seu nome continuava a suscitar em parte ainda considerável da população portuguesa, particularmente em regiões onde a sua influência fora sempre muito reduzida e o peso da propaganda anticomunista do Estado Novo mais se fizera sentir, bem como o surgimento nos últimos anos, no panorama político nacional, de novos partidos e organizações oposicionistas clandestinas que, socorrendo-se de formas de luta aguerridas contra a ditadura e de um discurso, porventura, mais sedutor, com ele disputavam o apoio de novas camadas da população, mais jovens e urbanas.
À semelhança do que aconteceu com os outros partidos, as primeiras semanas foram, para os comunistas, em grande parte dedicadas à implantação da sua organização, ao alargamento do seu número de militantes e à adaptação da sua atividade, antes clandestina, às novas condições de legalidade. A par do regresso de Álvaro Cunhal, da legitimação que, aos olhos dos portugueses, tinha representado a sua presença no 1.º de Maio e da entrada de dois ministros comunistas no I Governo Provisório (um deles o próprio secretário-geral), a saída do primeiro número legal do Avante! a 17 de maio, algo completamente impensável algumas semanas antes, terá sido seguramente um dos acontecimentos da história recente do PCP que mais calou no universo dos seus militantes e simpatizantes e melhor simbolizou a sua entrada no novo ciclo da vida política.
No Algarve, Faro e Portimão foram as primeiras localidades (com mais 20 no resto do país, sobretudo nos distritos de Lisboa, Setúbal e do Alentejo) em relação às quais, logo no final de maio, o Avante! noticiou a instalação das duas primeiras sedes do PCP – ou centros de trabalho, de acordo com o jargão comunista.(4) Três semanas depois, com a notícia da abertura de mais um, em Olhão, o número de centros tinha subido para três, num total de 32 no país.(5) Na terceira semana de agosto, os centros em funcionamento estendiam-se já a nove dos dezasseis concelhos algarvios, num total de 99 no país: Aljezur, Faro, Lagoa, Lagos, Monchique, Olhão, Portimão, Silves e Via Real de Santo António.(6) No início de setembro, o Avante!, que, em reportagem pelo Algarve, visitara os centros de trabalho do PCP em Portimão, Faro e Olhão, dava conta do «arranjo das salas» e do «ambiente» que tinha observado «por todo o lado, desde as salas da biblioteca às de convívio», e enaltecia, além disso, o modo como as respetivas comissões concelhias procuravam «desdobrar-se e multiplicar os contactos com os camaradas das diversas freguesias e dos múltiplos setores profissionais», facto ao qual o jornal atribuía «a presença constante dos militantes e simpatizantes» naqueles centros.(7) Nos finais de outubro, o Avante! registava a entrada em funcionamento de mais dois centros, um em Albufeira, outro em S. Bartolomeu de Messines (o segundo no concelho de Silves), num total de 136 a nível nacional.(8) Inicialmente instalado no Largo do Mercado, o centro de trabalho do PCP na capital algarvia mudar-se-ia, algum tempo depois, para a Vivenda Clotilde, um aprazível palacete, hoje desaparecido, situado a meio da Avenida 5 de Outubro (no lado direito de quem sobe), onde se manteve até meados dos anos 1990.(9)
Sem contar com as participações nas iniciativas unitárias do MDP/CDE logo depois da revolução, o primeiro comício do PCP na província, que juntou «milhares de participantes», realizou-se no dia 15 de junho, em Faro, no S. Luís Parque (parque desportivo frente ao Mercado, hoje desaparecido), numa organização conjunta das comissões concelhias desta cidade e de Olhão. «O recinto encontrava-se decorado com bandeiras do partido e dísticos em que se lia: “Viva a Unidade das Forças Democráticas, “Um povo não é livre se oprime outros povos – fim à guerra colonial”, “PCP – o Partido da Classe Operária”, “A terra para quem a trabalha”, etc.» No fundo do palco, como era habitual nessa altura nos comícios do PCP, viam-se as efígies de Marx, Engels e Lenine, «bem como bandeiras de Portugal e do partido». De acordo com uma prática à altura muito em voga, na extensa mesa da presidência tinham assento não só os oradores e outros dirigentes nacionais e locais do PCP como também representantes da UEC (caso de Zita Seabra, que então tutelava esta organização), do MDP/CDE, do MJT e dos vários setores profissionais onde o partido já estava organizado ou almejava consegui-lo: corticeiros, eletromecânicos, serralheiros, operários da construção civil, pescadores, conserveiros, trabalhadores rurais, empregados de escritório, bancários, profissionais de seguros, etc.(10)
Objeto de grande destaque por parte do Avante! foi também o comício realizado, no final de julho, em Silves, cidade de grandes tradições operárias e revolucionárias, o grande centro corticeiro da província, que, em 1934, em plena ditadura, tinha sido um dos palcos da frustrada greve geral de 18 de janeiro e um dos mais atingidos pela repressão que se lhe seguiu:
«Muito antes de o comício começar, já na cidade havia grande alvoroço. Cedo começaram a chegar as delegações, cartazes que anunciavam nomes, dísticos vermelhos e brancos com saudações do nosso Partido e em especial ao camarada José Vitoriano de Silves.
Nas ruas da cidade vários cortejos convergiam para o local do comício, de camaradas de Lagoa, Parchal, Estômbar, Messines, Carvoeiro, Ferragudo, Albufeira, Monchique, Portimão e Lagos.
Num ambiente de festa, tendo à cabeça a Banda Filarmónica Silvense, faziam-se representar ainda as delegações dos setores socioprofissionais, os corticeiros de Silves, a vanguarda dos operários locais, os trabalhadores rurais, os motoristas, delegações do Movimento da Juventude Trabalhadora e da UEC, caixeiros, operários da construção civil e pequenos agricultores.»(11)

Ainda nesse verão, o PCP realizaria comícios em Lagos, Vila Real de Santo António, Odeceixe e S. Bartolomeu de Messines, localidades onde seguramente já dispunha de alguma influência ou estava apostado em obtê-la. Além de Helena Medina (mãe do atual político do PS Fernando Medina), de origens nortenhas, que, desde a clandestinidade, controlava a Direção da Organização Regional do Alentejo e Algarve (presente nos comícios de Faro, Silves, Vila Real de Santo António e Odeceixe), Carlos Brito (presente no de Faro), Margarida Tengarrinha (também no de Faro), José Vitoriano (nos de Silves e S. Bartolomeu de Messines) e Vítor Neto (nos de Odeceixe e S. Bartolomeu de Messines), todos algarvios ou com fortes ligações à província (caso de Brito, nascido em Moçambique mas que ainda criança viera viver para Alcoutim) foram os oradores a quem, nos diferentes comícios, couberam as intervenções mais importantes e que, como é natural, suscitaram maiores aplausos. Das várias intervenções, cujo conteúdo os jornais transcreveram, duas merecem uma atenção especial pelo que revelam sobre aqueles que, a par do fim da guerra e da independência das colónias, eram, na altura, os grandes objetivos programáticos do PCP:
– Primeiro – uma democratização do país que não fosse apenas política, mas também económica e social, como defendeu Carlos Brito em Faro:
«O 25 Abril trouxe-nos liberdades essenciais de enorme importância. Mas não temos ainda um regime democrático. A própria estrutura económica que continua a ser dominada pelos grandes grupos monopolistas dificultará a marcha para a democracia. Devemos ter presente que o Governo Provisório representa uma vastíssima coligação de forças sociais e políticas com pontos de vista muito diferenciados. Estas forças estão unidas em torno de uma plataforma que é o Programa do MFA. Não se pode estranhar que dentro da coligação possam surgir divergências e que cada força política e social nela representada tenha sobre tal ou tal aspeto do Programa do MFA a sua própria interpretação. Não é altura, porém, para sublinhar e dramatizar diferenças de opinião. O grande objetivo deve ser a unidade, unidade para concretizar as grandes tarefas imediatas – pôr fim à guerra colonial, cortar o passo à contrarrevolução, prosseguir a democratização da vida portuguesa até às eleições livres para a Assembleia Constituinte.»(12)
Segundo – o combate aos monopólios e à sabotagem da economia, como defendeu José Vitoriano em Silves:
«Habituados à proteção escandalosa dos governos fascistas que lhes permitiam realizar lucros fabulosos em pouco tempo à custa de uma exploração sem freio das massas trabalhadoras, grupos monopolistas e financeiros resistem a integrar-se na nova situação e levam a cabo o que pode chamar-se de sabotagem económica. (…)
Em certas regiões e atividades o desemprego é já um problema grave, como acontece aqui no Algarve com a construção civil. Ele é consequência em grande parte desta ação de sabotagem, mas é também em parte um ato de sabotagem pois se há empresas que paralisam ou reduzem a atividade por falta de créditos, há também muitos empresários que têm feito despedimentos porque estão eles próprios a contrariar o novo curso da vida política e económica do nosso país.»(13)
O primeiro objetivo, de caráter político mais imediato, assentava em dois pressupostos que, desde o início, nortearam a ação do PCP: por um lado, o apoio ao Programa do MFA e a defesa da aliança entre o povo e os militares (a aliança Povo-MFA); por outro, a sua participação nos Governos Provisórios e a unidade das forças democráticas que nele estavam representadas. Já no plano económico-social, o PCP tinha como vetores da sua intervenção o combate à sabotagem económica movida pelos grandes grupos monopolistas que, durante a ditadura, tinham dominado o país e a batalha da produção. Em nome destes, a atuação do PCP caracterizar-se-ia por uma postura de alguma contenção em relação a reivindicações laborais e de oposição a grande parte dos movimentos grevistas surgidos nos primeiros meses, que acusava de irrealistas e de prejudicar a economia. Tal acabaria, inevitavelmente, não só por indispor contra si os partidos à sua esquerda, que apoiavam ou promoviam essas greves, mas também a parte dos trabalhadores que, com ou sem razão, com elas se identificava.
O reforço da organização e da implantação do partido entre as classes trabalhadoras, nomeadamente o operariado, e o alargamento da sua influência nos sindicatos (através da Intersindical, onde dispunha de grande ascendência), a par de uma constante preocupação de sintonia com os militares do MFA (que entendia como indispensável para o sucesso do processo político em curso), foram as áreas a que o PCP procurou dar mais atenção nos primeiros meses da revolução. Vários artigos publicados em setembro de 1974, no Avante!, permitem-nos identificar não só alguns dos setores laborais e localidades da província que o PCP, na altura, parece ter privilegiado, em termos de implantação e organização, tanto sindical como partidária – as operárias conserveiras, em Olhão e Portimão; os pescadores, na Fuseta; os trabalhadores agrícolas, em Lagoa; os trabalhadores da indústria hoteleira, em Albufeira; e os operários da construção civil, em Portimão e Lagoa – como também algumas das dificuldades com que por vezes se deparava. Como exemplo destas últimas, o Avante! relatava:
«Na Fuseta, a organização dos pescadores é ainda rudimentar. A defesa dos trabalhadores, apesar de existir uma comissão diretiva da Casa dos Pescadores escolhida pelos homens da pesca, não consegue ainda contrariar os despedimentos contra os que se destacam e a solidariedade ainda não se cria. (…)
Na pequena localidade, o Avante! ouviu dezenas de pescadores em vários locais, estabelecendo diálogo. Entre os pescadores da Fuseta, o medo da reação domina ainda o diálogo. “Os comunistas são despedidos e a gente aqui logo que reclama os seus direitos, dizem que somos comunistas.” Logo que um trabalhador se destaca na defesa dos seus camaradas de campanha, como nos tempos anteriores antes de 25 de Abril, é taxado de comunista e os mestres mais reacionários procuram isolá-lo, criando-lhe dificuldades no trabalho.»(14)
Todos os antigos quadros do tempo da clandestinidade, José Vitoriano, Carlos Brito e Margarida Tengarrinha foram os três dirigentes do PCP com ligações ao Algarve que mais se destacaram na vida política nacional a seguir ao 25 de Abril.
Nascido em Silves, em 1917, operário corticeiro desde os 13 anos, o primeiro foi um dos quadros históricos do PCP com um maior historial na Oposição à ditadura: trinta e três anos de militância; vinte e três anos como funcionário, dos quais seis na clandestinidade; duas vezes preso (1948-51 e 1953-66), num total de dezassete anos; e sete anos como membro do Comité Central. Na juventude, nos anos 1940, ocupou cargos de direção nas estruturas clandestinas do partido a nível local e da província (Comité Local de Silves, Comité Regional do Barlavento e Comité Provincial) e foi presidente do Sindicato Nacional dos Operários Corticeiros de Silves, entre 1945 e 1948, um exemplo de sucesso da política do PCP de infiltração nos sindicatos do regime. Além de membro do Comité Central até 2000 e do exercício de vários cargos executivos no partido, foi deputado à Assembleia da República por Faro (1976-1979) e Setúbal (1983-1987), vindo a falecer aos 88 anos.
Mais novo, Carlos Brito, que, tendo nascido em Moçambique, em 1933, aos três anos, veio viver para Alcoutim com a família, conta também com um longo historial na Resistência à ditadura: de profissão empregado de escritório, foi membro do MUD Juvenil na juventude e, depois, do PCP, três vezes preso (em 1953, em 1957, da qual fugiu ainda nesse ano, e de 1959 a 1966, num total de oito anos), membro do Comité Central e funcionário clandestino com responsabilidades executivas no interior do país (Direção da Organização Regional do Norte, desde 1967, Comissão Executiva do partido, desde 1970, direção das Organizações Regionais de Lisboa, do Ribatejo e Oeste e da Organização Militar, desde 1972). Como responsável desta última, teve contactos prévios com o Movimento dos Capitães, tendo sabido com dois dias de antecedência da data do golpe de Estado. Em 1975-76, foi deputado à Assembleia Constituinte pelo distrito de Faro e vice-presidente do grupo parlamentar; entre 1976 e 1991, por várias legislaturas, deputado à Assembleia da República e presidente do grupo parlamentar; em 1980, candidato à presidência da República; e, entre 1992 e 1998, diretor do jornal Avante!. Em 1998, em divergência com a direção do partido, autossuspendeu-se de militante e foi um dos fundadores da associação Refundação Comunista, vindo desde então a desenvolver uma prolixa atividade no campo da escrita: poesia, ficção e memórias da sua vida de resistente (caso, entre outros, do livro Álvaro Cunhal Sete fôlegos do combatente).
Com um historial de luta contra a ditadura não muito diferente, Margarida Tengarrinha nasceu em 1928, em Portimão. Tal como o irmão, o futuro líder do MDP/CDE, José Manuel Tengarrinha, na juventude pertenceu ao MUD Juvenil, vindo, na sequência da sua expulsão, por motivos políticos, da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, da qual era aluna, a aderir ao PCP. Na clandestinidade desde 1955, juntamente com o companheiro, o pintor José Dias Coelho, teve como principais tarefas a redação do jornal A Voz das Camaradas e a falsificação de documentos para os seus camaradas clandestinos (tema do livro, de sua autoria, Memórias de uma falsificadora). Em 1961, abalada pela notícia do assassinato pela PIDE do conjugue (que José Afonso homenageou com o tema O Pintor Morreu) e sem poder, por razões de segurança, acompanhar o seu funeral, foi obrigada a exilar-se, primeiro, em Moscovo e, depois, em Bucareste, onde trabalhou nas emissões clandestinas para o território nacional da Rádio Portugal Livre. Roída pela saudade, regressou a Portugal em 1968, onde permaneceu clandestina até ao 25 de Abril, no cumprimento de várias tarefas, sem nunca ter sido presa. Nos anos a seguir, foi responsável pelas questões relacionadas com a reforma agrária, integrou o Comité Central e foi eleita deputada à Assembleia da República por Faro em duas legislaturas (1979-1980 e 1980-1983). A viver de novo no Algarve, onde veio a falecer em 2023, dedicou os últimos anos da sua longa vida à atividade artística, ao testemunho das suas memórias de lutadora antifascista e à defesa de diversas causas de cidadania (caso da igualdade de género e do combate à discriminação), razão esta pela qual lhe foi atribuída, em 2016, o Prémio Maria Veleda.
Outro algarvio foi também uma figura com relevo no PCP depois do 25 de Abril: Vítor Neto, filho do empresário Teófilo Fontainhas Neto, nascido em 1943, em S. Bartolomeu de Messines, que, na juventude, trocou a vida de conforto da sua classe de origem pela luta oposicionista, a prisão durante a crise académica de 1962 e o exílio em Itália, do qual só regressou com o 25 de Abril. Nos primeiros anos da democracia, foi membro ativo do PCP, cujo Comité Central chegou a integrar. Veio, anos mais tarde, a aderir ao PS, pelo qual foi secretário de Estado do Turismo, em dois Governos de António Guterres, e eleito deputado por Faro.
Sem indústrias significativas (fora a conserveira, nesta altura já em franco declínio), com um operariado relativamente diminuto e pouco concentrado, além de uma estrutura fundiária assente na pequena e média propriedade (adversa à reforma agrária, que o partido tinha como principal bandeira no Alentejo), o Algarve foi, não obstante os esforços organizativos e de implantação atrás referidos, a região do sul do país onde, em 1975, nas primeiras eleições, a influência do PCP se revelou mais fraca (12,30%), em claro contraste com o PS, que, além de vencedor com larga vantagem em todos os concelhos algarvios (45,40%), elegeu seis dos nove deputados deste círculo, e ombro a ombro com o PPD (13,90%) e com o MDP/CDE (9,5%), os dois partidos com quem equitativamente dividiu os lugares restantes em disputa: a título de exemplo, o PCP foi o 2.º partido mais votado em cinco concelhos, todos no Barlavento (Aljezur, Lagoa, Lagos, Portimão e Silves), o PPD em oito (Albufeira, Castro Marim, Faro, Loulé, Monchique, Olhão, S. Brás de Alportel e Tavira) e o MDP/CDE em três (Alcoutim, Vila do Bispo e Vila Real de Santo António).
A nível nacional, os fracos resultados alcançados pelos comunistas (12,46%), quando comparados com os do PS, o grande vencedor (37,87%), fragilizam o PCP, que, a partir daqui, não mais será poupado pelos seus adversários. Os meses seguintes, sobretudo a partir do início do verão, revelar-se-ão particularmente difíceis para o partido, seja como resultado do desenrolar do processo político nesse período, seja da onda de assaltos e ataques bombistas a partidos de esquerda que varreu as regiões mais a norte do país, ao longo do segundo semestre de 1975 e do ano de 1976.
O Partido Socialista (PS)
Fundado a 19 de abril de 1973, na República Federal Alemã, o Partido Socialista tinha como secretário-geral Mário Soares, um advogado, filho de um ministro da Primeira República, que, na sua juventude, no final da Segunda Guerra Mundial, tinha militado no PCP e no MUD Juvenil e conhecido pela primeira vez a prisão. Em 1964, tinha fundado a ASP, organização que, em 1969, depois do seu regresso do exílio, em S. Tomé, tinha estado na base da constituição da CEUD, e sob a égide da qual os socialistas concorreram às eleições desse ano, em listas separadas da CDE, em Lisboa, Porto e Braga. Obrigado a exilar-se, depois destas eleições, vivera em Paris, até 1974. No ano anterior, na sequência de um acordo com o PCP, os dois partidos tinham concorrido às eleições legislativas em listas conjuntas, no quadro da CDE. Regressado a Portugal no dia 28 de abril de 1974, seria largamente ovacionado à sua chegada, na estação de Santa Apolónia, e no dia 1.º de Maio. Um dos três ministros do PS no I Governo Provisório, teve a seu cargo a pasta dos Negócios Estrangeiros, uma pasta de grande visibilidade mediática e que lhe permitiria projetar e ampliar a sua influência em termos nacionais e internacionais.

Até aí um pequeno partido de quadros, de formação recente, sem entrosamento social relevante e com um historial bem menor no combate à ditadura, o PS tinha pela frente um desafio: afirmar-se como um partido autónomo e com um projeto político próprio, capaz de disputar com sucesso as eleições para a Assembleia Constituinte, a realizar dentro de um ano. Sem influência significativa no operariado nem passado sindical recente, o PS irá, nos primeiros meses depois do 25 de Abril, estruturar a sua intervenção na vida política em torno de duas grandes linhas de orientação, só na aparência contraditórias:
– Primeira – promover a sua implantação nas classes trabalhadoras e, deste modo, forjar uma base de apoio laboral e sindical, que, no início, não tinha;
– Segunda – afirmar-se como o partido da liberdade e do pluralismo, defensor da democracia e do socialismo contra a ditadura, polarizador, no plano político, do centro e da esquerda não comunista, e, por esta via, granjear a simpatia das classes médias, mais temerosas em relação ao rumo da vida política, mas cujo apoio se revelará fundamental para o sucesso da sua estratégia eleitoral.
A primeira linha de orientação pressupunha uma demarcação em relação ao PCP e a construção, simultaneamente, de um discurso programático-ideológico atrativo para as classes trabalhadoras, mais politizadas e onde a influência daquele partido, sobretudo nas regiões com grande concentração operária, era já grande. Encimado por uma fotografia de Karl Marx, à direita, sob o título Partido Socialista Partido Marxista defende a Liberdade, um folheto, distribuído por altura das primeiras eleições, e do qual a seguir se transcrevem algumas passagens, fala por si:
«(…) O PS bate-se pela destruição do capitalismo e pela edificação da sociedade sem classes. Só produzindo a riqueza, a poderemos distribuir melhor. Coletivização e socialização dos meios de produção pelo poder democrático dos trabalhadores.
Unidade dos trabalhadores – Sindicalismo de base – Defender a Liberdade – Construir o socialismo.
O PS defende uma linha de independência nacional.
Socialismo, sim
ditadura, não!»(15)
A primeira linha de orientação pressupunha ainda uma segunda condição: a exclusão da participação eleitoral futura do PS em listas conjuntas com o PCP, no quadro do MDP/CDE, como tinha acontecido em 1973 e, no caso do Algarve, em 1969. A hegemonia do MDP nas Comissões Administrativas das Câmaras Municipais, bem como a perspetiva de este poder vir a concorrer a futuras eleições, numa base unitária, uma e outra fortemente contestadas pelo PS, estariam, aliás, logo no início do verão de 1974, na origem dos primeiros atritos entre as duas organizações. Defendendo, por um lado, a antecipação das eleições municipais para outubro (à revelia do calendário estipulado pelo MFA), o órgão oficial do PS, Portugal Socialista, opunha-se, por outro, a que «as correntes antifascistas ou mesmo as formações de esquerda» pudessem disputar as eleições «sob a égide do MDP.» E concluía:
«Votar PCP não é votar PS do mesmo modo que votar PS não é votar PPD.»(16)
Curiosamente, o jornal ressalvava destas críticas os distritos de Aveiro e Faro onde o MDP tinha recentemente levado a cabo «iniciativas tendentes a promover o confronto das posições partidárias democráticas».
A segunda linha de orientação, mais visível a partir de finais de 1974, estará na base dos primeiros confrontos com o PCP, partido cuja influência no curso da revolução, nessa altura, mais receios começava a suscitar nas camadas médias da população.
No Algarve, o Partido Socialista inaugurou a sua atividade política no dia 7 de maio de 1974, com o anúncio da abertura da sua sede em Faro, bem como do início da realização de «sessões públicas de divulgação do seu programa» e «amplas reuniões de esclarecimento dos seus objetivos com as massas estudantis e trabalhadoras». A sede estava instalada no 1.º andar do edifício da antiga Legião Portuguesa, no Largo do Pé da Cruz. Na sua esmagadora maioria, membros de profissões liberais e das camadas médias da população, compunham a sua Comissão Instaladora: Álvaro Botinas (empregado comercial), António Matos Cartuxo (profissional de fotografia e TV), Eduardo Mansinho (advogado), Emílio Campos Coroa (médico), Francisco Inácio Reis (médico), Francisco Martins Pereira (proprietário), Gilberto Gonçalves Ferro (gerente comercial), Joaquim Lopes Belchior (engenheiro), José António Barros Madeira (médico), José Eduardo Sancho Nobre (estudante de Direito), Júlio Filipe Almeida Carrapato (advogado), Manuel Santos Serra (médico) e Salvador Lazzara Ilari (médico).(17)
No início de junho, o partido realizou aquela que pode ser considerada a sua primeira iniciativa pública na província: um plenário da Federação Distrital, no S. Luís Parque, em Faro. O plenário, a que compareceram «milhares de pessoas», contou, entre os oradores, com a presença de três dirigentes nacionais, Alberto Arons de Carvalho, Marcelo Curto e Mário Sotomaior Cardia, além de alguns quadros dirigentes da província: Elviro Rocha Gomes, António Matos Cartuxo e Madalena Férin. Na iniciativa, usou ainda da palavra o Dr. Luís Filipe Madeira, à altura ainda líder do MDP na província.(18)

Nos meses seguintes, a atividade do PS revelar-se-ia muito intensa, ultrapassando mesmo, porventura, a do próprio MDP em quantidade de sessões de esclarecimento realizadas. O partido não só foi pródigo na realização deste tipo de sessões, como se empenhou, de forma muito eficaz, na comunicação dessa atividade, seja na sua própria imprensa partidária, seja na regional. Além de ocuparem regularmente uma secção do seu órgão oficial, Portugal Socialista, sob o título O PS do Minho ao Algarve, as notícias podiam incluir tanto o relato de uma sessão em concreto como a quantificação das iniciativas do género realizadas num determinado período ou área geográfica, o número de pessoas atingidas, os assuntos tratados, os públicos-alvo, etc., etc. Ao contrário, porém, do MDP e do PCP, no PS, os comícios e a presença de dirigentes nacionais na província foram escassos.
A título de exemplo, em dezembro de 1974, no Portugal Socialista, podia ler-se:
«Com um total de quarenta e uma sessões de esclarecimento e cerca de cem horas de debate, terminou a primeira campanha de implantação do Partido Socialista na área Sotavento do Algarve, desde Loulé até Vila Real de Santo António.
Esta grande campanha levada a efeito durante os últimos quatro fins de semana respondeu a muitas e legítimas objeções postas pela assistência, perguntas essas tanto mais pertinentes, quanto provinham de um povo interessado em recuperar o tempo que lhes fizeram perder nestes 48 anos. Estas sessões estenderam-se às áreas de oito concelhos.
Após ter obtido este êxito, foi criado já pela direção distrital de Faro um programa de “estudos em comum” sobre temas específicos como cooperativismo, sindicatos, economia, etc., para cujo debate já se encontram inscritos dezoito oradores, a fim de levar a efeito uma pequena campanha restrita às localidades do concelho de Faro.
Em Cacela (Vila Real de Santo António) estiveram presentes a uma sessão mais de mil e duzentas pessoas, tendo havido uma colaboração impressionante. Foram levantados importantes problemas a nível nacional e local como o problema das águas, etc.
Na sede do nosso Partido, em Faro, Largo do Pé da Cruz, 22, continuam a realizar-se, todas as quintas-feiras, sessões de esclarecimento.»(19)
Uma outra notícia sobre este assunto, esta do Jornal do Algarve, estimava em 11000 o número de pessoas que tinham assistido ao conjunto das sessões, dando, além disso, conta de um trunfo recentemente conseguido pelo PS: a entrega, na secção de Loulé, da ficha de adesão a este partido do até há pouco tempo líder do MDP no Algarve e então governador civil do distrito Dr. Luís Filipe Madeira.(20) Parte integrante desta estratégia de comunicação foi também a publicação, a partir de dezembro, pela secção de Faro, de um boletim, Faro Socialista, «com boa apresentação gráfica e título a cores».(21)
Ambos advogados e opositores à ditadura, ainda que de gerações diferentes, Luís Filipe Madeira e Júlio Almeida Carrapato foram os dois dirigentes algarvios do PS que mais se destacaram nos primeiros anos da democracia. Mais velho, nascido em 1919, em Faro, filho de um republicano e opositor dos primeiros tempos do salazarismo, ele próprio com um largo historial na oposição à ditadura, nomeadamente durante a campanha do general Humberto Delgado, do qual fora mandatário, Almeida Carrapato viria, depois do 25 de Abril, a ocupar vários cargos políticos de relevo: presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Faro, em 1974-75, governador civil de Faro, entre 1975 e 1980, e deputado à Assembleia da República entre 1980 e 1983, dois anos antes do seu falecimento prematuro, aos 65 anos. Nascido em 1940, em Alte, no concelho de Loulé, cabeça de lista da CDE por Faro nas eleições de 1969 e primeiro governador civil deste distrito depois da revolução, Luís Filipe Madeira viria também, depois do seu ingresso no PS, a ocupar diversos cargos: deputado à Assembleia Constituinte, deputado à Assembleia da República durante várias legislaturas, entre 1976 e 1999, secretário de Estado do Turismo, durante o I Governo constitucional, e deputado ao Parlamento Europeu entre 1986 e 1989. Na juventude, por ocasião da crise académica de 1962, em Coimbra, em cuja Universidade estudava, tinha sido punido com a pena de «doze meses de exclusão da frequência de todas as escolas nacionais pela sua atitude contra a proibição do Dia do Estudante».(22)
Em Faro, o fotógrafo António Matos Cartuxo, em Loulé, o médico José António Barros Madeira (que depois viria a aderir ao PSD), em Portimão, o arquiteto e futuro presidente da Câmara Municipal Martin Gracias, e, em Vila Real de Santo António, o jovem economista (na altura professor) e futuro deputado à Assembleia Constituinte Dorilo Seruca Inácio foram alguns dos quadros dirigentes do PS mais em evidência neste período.
A nível distrital, o PS estava organizado em secções (a que habitualmente correspondia uma sede) e núcleos. Pelo que se pode concluir da consulta da imprensa, no início de 1975 (fevereiro), o partido tinha em funcionamento secções em Faro, Portimão, Silves, Albufeira, Loulé, Quarteira e Vila Real de Santo António e núcleos em Sagres, Aljezur, Barão de S. João, Olhão e Tavira, não sendo de excluir a existência de organismos similares noutras localidades, que os jornais, no entanto, não referem.
Dos principais temas que constituíam a agenda política do PS, o sindicalismo foi um dos que, entre os finais de 1974 e o início de 1975, mais foi tratado nas suas sessões, seja pelo interesse genuíno que o assunto tinha para si, seja como reflexo da controvérsia em que o mesmo esteve envolvido a propósito do debate que antecedeu a aprovação pelo Governo Provisório da lei que estabelecia a existência de uma central sindical única (mais conhecida por Lei da Unicidade Sindical) e do seu primeiro grande confronto com o PCP que esta, na altura, suscitou. «Um sindicalismo de base, que faça a cada momento os sindicatos defender os interesses dos trabalhadores e uma unidade sindical que resulte na participação dos trabalhadores e não imposta pelas cúpulas» foram, a este propósito, alguns dos pontos defendidos por um orador, numa sessão de esclarecimento deste partido, por essa altura, em Silves.(23) Agricultura, pesca, turismo e a situação da mulher foram outros tantos temas também tratados nestas sessões. Ao contrário do PCP, mais forte nas regiões de grande concentração operária, o PS tinha uma maior implantação entre os trabalhadores dos serviços e os operários das regiões com menor concentração destes, como era o caso do Algarve.
A seguir às eleições de 1975 e à sua vitória nas mesmas (no Algarve, como já se viu, com grande vantagem), o confronto com o PCP, que o PS acusava de querer copiar no país o modelo soviético, conheceria alguns dos seus momentos mais críticos. Destes, o episódio da substituição do governador civil e da ocupação do respetivo Governo Civil (que opôs os apoiantes do governador cessante Ramires Fernandes aos do recém-nomeado Almeida Carrapato) seria aquele que, nos tempos imediatos, mais marcas deixaria na vida política algarvia.
O PPD e o CDS
Primeiro dos quatro grandes partidos dos primeiros tempos da democracia portuguesa a surgir depois do 25 de Abril (o PCP e o PS, como se viu, eram anteriores), o Partido Popular Democrático (PPD) foi fundado a 6 de maio de 1974. Definindo-se a si próprio como um partido de centro-esquerda, de ideário social-democrata (pretendendo, desta forma, rivalizar como o PS, no mesmo espaço político), a nova formação partidária teve como fundadores três dos nomes que mais se tinham distinguido no passado recente como membros da chamada ala liberal na antiga Assembleia Nacional: os Drs. Francisco de Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão e Joaquim Magalhães Mota. Um outro destacado deputado desta corrente política, o Dr. João Pedro Miller Guerra, inicialmente dado como fundador, viria à última hora a desistir, vindo, tempos depois, a aderir ao PS. Envolvido desde a primeira hora na formação do novo partido, o jovem professor universitário da Faculdade de Direito de Lisboa, Dr. Marcelo Rebelo de Sousa, futuro autor do livro «A revolução e o nascimento do PPD» (e atual Presidente da República), não apareceria prudentemente entre os seus fundadores, por ser filho de um destacado governante do regime deposto – o antigo governador geral de Moçambique e último ministro do Ultramar, Baltazar Rebelo de Sousa.
Pese embora o passado crítico recente dos seus fundadores em relação à ditadura e, até, oposicionista (mais raro) de alguns dos seus primeiros dirigentes – caso do futuro secretário-geral Dr. Emídio Guerreiro – o PPD não conseguiria, nos primeiros tempos, livrar-se do anátema de partido fascista ou partido dos ricos, como na gíria da altura era apelidado pelos setores da população mais críticos do regime anterior. Além do posicionamento mais à direita do novo partido em relação aos outros que vinham da clandestinidade, um facto contribuía sobremaneira para esta situação: a presença entre os seus simpatizantes ou mesmo militantes de muitos indivíduos com ligações familiares ou de outro tipo à ditadura, bem como de outros, das classes médias ou alta, que, embora sem essas ligações, aos olhos de parte da população, nunca se tinham oposto ao regime deposto, com ele tinham convivido sem problemas ou por ele tinham sido beneficiados. Tal pode explicar, em larga medida, algumas posições políticas de conteúdo enfaticamente progressista, em termos económico-sociais, assumidas por este partido em documentos e declarações dos seus dirigentes, nos meses iniciais da revolução, e, ao mesmo tempo, contraditoriamente, as dificuldades que, apesar disso, a sua integração inicial no novo quadro partidário suscitou entre os setores da população mais agastados com a ditadura (e das quais algumas manifestações hostis de que foi alvo, neste período, são reveladoras).

Sintoma, porventura, destas dificuldades, as notícias nos jornais sobre iniciativas desta organização partidária na província, neste período, são, comparativamente com as publicadas sobre o MDP, PCP ou PS, em número bastante menor, seja na imprensa regional, seja mesmo no órgão oficial do partido, Povo Livre. De acordo com este órgão, no Algarve, o PPD abriu a sua primeira sede em Faro, na Rua Letes, nº 40, r/c, no dia 17 de agosto de 1974, data em que realizou também a primeira reunião de planeamento da atividade regional da respetiva comissão instaladora. A notícia dava ainda conta da existência, já em funcionamento, de duas comissões concelhias, em Albufeira e Vila Real de Santo António, bem como da criação de mais duas, «dentro em breve», em Lagoa e Portimão.(24) Antes, ainda em junho, a crer no que se pode ler num programa da altura, o partido terá estado representado num comício unitário do MDP/CDE, em Loulé, por um dos seus fundadores, o diretor do jornal Expresso Francisco Pinto Balsemão.(25) Um outro comício, este promovido pelo PPD, no salão do Glória Futebol Clube, de Vila Real de Santo António, em julho, mereceu, por sua vez, a atenção do Jornal do Algarve:
«Constituíam a mesa, que tinha por fundo a bandeira nacional, os Srs. Dr. Cunha Monteiro, médico naquela vila; Dr. Marcelo de Sousa, assistente universitário e subdiretor do jornal Expresso; Dr.ª Leonor Beleza, assistente universitária (…)
O Dr. Marcelo de Sousa começou por salientar que um partido não é constituído por meia dúzia de senhores que se fecham num gabinete, mas sim um setor aberto ao permanente diálogo com o público que deseja servir. O PPD era um dos três grandes partidos que se integravam no Governo Provisório e não pretende nem defende a criação de um socialismo autoritário, mas a de uma sociedade socialista em liberdade. Descreveu a forma como agia o extinto regime fascista, dependendo nitidamente do exterior, desde o turismo à emigração, e definiu as linhas mestras que o PPD se propõe seguir, abordando também o problema colonial.
A Dr.ª Leonor Beleza lembrou que no regime fascista não havia liberdade de reunião nem de associação e que a polícia de corpo e a do espírito se uniam para suprimir as liberdades; historiou as farsas das eleições presidenciais, os problemas gerados pela emigração e por último as propostas do Movimento de 25 de Abril. Aludiu à posição arbitrária do homem em relação à mulher, que não podia exercer cargos de responsabilidade, pedindo a promoção do trabalho feminino, com o estabelecimento de condições para a igualdade de trabalhos.»(26)
Na mesma linha de pensamento, numa sessão de esclarecimento, em Lagos, realizada alguns meses depois e relatada pelo Povo Livre, um outro dirigente do partido defendia:
«É preciso que nas empresas se modifiquem certas estruturas, tendo em conta que o capital não é o único nem o principal produtor de riqueza, mas sim o trabalho. Para isso, preconizamos a cogestão na empresa, a participação nos lucros, uma justiça no trabalho pronta e eficaz, o direito de greve como meio de defesa dos interesses legítimos dos trabalhadores e a orientação e promoção profissionais. (…)
A visão social-democrata da vida económica – prosseguiu – requer necessariamente modificações no setor fiscal, e, logo, há que criar um novo sistema de impostos que proteja o trabalho, incindindo sobre a fortuna pessoal preferentemente ao rendimento do trabalho, e que concorra para uma equitativa redistribuição dos rendimentos. (…)»(27)
Em outubro de 1975 – continuando ainda a reclamar-se do socialismo, mas mais contidos nos seus propósitos iniciais de justiça social – os documentos do partido e as declarações dos seus dirigentes refletem, em tom e conteúdo, as alterações ocorridas no país em termos de correlação de forças, a seguir à posse do VI Governo Provisório, de Pinheiro de Azevedo. Com destaque na primeira página e reportado ao longo de quatro páginas interiores do Povo Livre, o comício, realizado no domingo anterior, dia 20, no «vasto Largo do Carmo», na capital do distrito, dava o mote sobre o novo momento político vivido pelo partido na região algarvia – nas palavras do jornal, «uma viragem na história da implantação da social-democracia no Algarve».(28) Pela primeira vez nesta província, numa grande iniciativa, recém-regressado à liderança do partido, depois de um intervalo de alguns meses em que, por motivos de saúde, tinha sido substituído por Emídio Guerreiro, Sá Carneiro encerrou o comício com um discurso adverso à situação política até aí vivida no país e cujos alvos principais foram o PCP, «a extrema-esquerda» e alguns dos militares de Abril à altura mais contestados (caso do então comandante adjunto do COPCON general Otelo Saraiva de Carvalho, meses antes entrevistado nas páginas do Povo Livre). Um discurso contundente e de combate, de alguma forma percursor do que, quatro anos depois, num quadro geral de crise económico-social e de enfraquecimento do PS, desta vez contra a tutela militar do Conselho da Revolução, o Presidente da República, general Ramalho Eanes (que antes tinha apoiado), e o peso do Estado na economia (novo mantra ideológico do partido), levará o Partido Social Democrata (nome que adotou definitivamente a partir de 1976) pela primeira vez a um Governo constitucional, à frente de uma vasta coligação das direitas: a Aliança Democrática (AD), de Sá Carneiro (PSD), Freitas do Amaral (CDS) e Gonçalo Ribeiro Teles (PPM).

Militantes do PPD desde os seus primórdios, Cristóvão Norte (pai do atual político com o mesmo nome) e José Vitorino foram os dois mais destacados dirigentes algarvios deste partido nos primeiros anos da democracia. Nascido em 1938, em Almancil, no concelho de Loulé, licenciado em Direito, de profissão conservador do Registo Civil e Predial, Cristóvão Norte foi eleito deputado por este partido pelo Algarve, em 1975, para a Assembleia Constituinte, bem como, por várias legislaturas, para a Assembleia da República. Mais novo, nascido na Conceição, no concelho de Faro, em 1945, regente agrícola (na infância familiarmente ligado à agricultura) e, posteriormente, licenciado em Finanças, com vida profissional no ramo dos Seguros, o segundo viria, aos quarenta anos, até aí com uma carreira política e partidária bem-sucedida, a abandonar o partido de que tinha sido um proeminente dirigente. Encabeçou a lista do Algarve para a Assembleia da República, em 1976, pela qual foi eleito. Além de vários cargos de responsabilidade no partido (secretário-geral adjunto, logo em 1975, e posteriormente Presidente do Conselho Nacional), foi governador civil do distrito e secretário de Estado da Emigração e das Comunidades, no VIII Governo, de Pinto Balsemão.
A agricultura, o comércio (no Algarve, os dois com grande peso da pequena e média iniciativa privada, mais temerosa do curso da revolução) e o turismo (sob forte impacto da crise petrolífera de 1973) foram alguns dos setores económico-sociais a que o PPD deu mais atenção e onde, nos primeiros tempos, mais recrutou a sua base social de apoio.
Com pouco eco na imprensa algarvia da época, o CDS foi, a 19 de julho de 1974, o último dos quatro grandes partidos a surgir à luz do dia. Percecionado, ainda mais do que o PPD, como um partido com ligações à ditadura, por isso, desde o início, com grandes dificuldades de afirmação, o CDS, que, no Algarve, não elegeu ninguém para a Constituinte, só em 2009 e em 2011, conseguiria fazer-se eleger neste círculo, em listas próprias, em eleições legislativas, além de, por mais três vezes, em coligação com o PSD (1979, 1980 e 2015).
Notas:
(1) Comunicado n.º 1 ao Povo Algarvio, Comissão Distrital de Faro da CDE, 28/4/74 – Arquivo Particular do autor
(2) Diário de Notícias, 1/5/1974
(3) João Madeira (2013) – História do Partido Comunista Português Das origens ao 25 de Abril (1921-1974), Lisboa, Tinta da China – p. 601
(4) Avante, 31/5/1974
(5) Idem, 20/6/11974
(6) Idem, 23/8/1974
(7) Idem, 6/9/1974
(8) Idem, 21/10/1974
(9) Ramiro Santos (2024) – 50 anos de Abril no Algarve Uma revolução tranquila na escrita dos dias, Lisboa, Guerra e Paz – p. 20
(10) Jornal do Algarve, 22/6/1974
(11) Avante, 2/8/1974
(12) Idem, 20/6/1974
(13) Idem, 2/8/1974
(14) Idem, 6/9/1974
(15) Partido Socialista Partido Marxista defende a Liberdade, Partido Socialista, sem data – Arquivo Particular do autor
(16) Portugal Socialista, 13/7/1974
(17) Jornal do Algarve,15/5/1974
(18) Jornal do Algarve, 8/6/1974
(19) Portugal Socialista,12/12/1974
(20) Jornal do Algarve, 14/12, 1974
(21) Portugal Socialista, 27/12/1974
(22) IAN/TT PIDE/DGS Pº 3231 E/GT
(23) Portugal Socialista, 21/11/1974
(24) Povo Livre, 3/9/1974
(25) Comício de Esclarecimento Político em Loulé, Comissão do MDP de Loulé, 27/6/74 – Arquivo Municipal de Loulé
(26) Jornal do Algarve, 13/7/1974
(27) Povo Livre, 12/11/1974
(28) Idem, 23/10/1975
SIGLAS
APU – Aliança Povo Unido
ASP – Ação Socialista Portuguesa
CDE – Comissão Democrática Eleitoral
CDS – Centro Democrático Social
CEE – Comunidade Económica Europeia
CEUD – Comissão Eleitoral de Unidade Democrática
COPCON – Comando Operacional do Continente
ELP – Exército de Libertação de Portugal
FEPU – Frente Eleitoral Povo Unido
LP – Legião Portuguesa
MDLP – Movimento Democrático de Libertação de Portugal
MDP/CDE – Movimento Democrático Português/ Comissão Democrática Eleitoral
MES – Movimento de Esquerda Socialista
MFA – Movimento das Forças Armadas
MFP/PP – Movimento Federalista Português/Partido do Progresso
MJT – Movimento da Juventude Trabalhadora
MND – Movimento Nacional Democrático
MUD Juvenil – Movimento de Unidade Democrática Juvenil
MUNAF – Movimento de Unidade Nacional Antifascista
PCP – Partido Comunista Português
PDC – Partido da Democracia Cristã
PIDE – Polícia Internacional de Defesa do Estado
PL – Partido Liberal
PPD – Partido Popular Democrático
PPM – Partido Popular Monárquico
PSD – Partido Social Democrata
PS – Partido Socialista
PTDP – Partido Trabalhista Democrático Português
UDP – União Democrática Popular
UEC – União dos Estudantes Comunistas
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