Comecemos pela subsidiodependência.
Existe uma ideia geral de que receber subsídios é igual a receber esmolas. Quando na realidade é reaver dinheiro de um estado que, teoricamente, somos todos nós. Claro que uns, mais do que outros. Como em tudo há filhos e enteados, mas esse não é o ponto aqui.
Realisticamente, é rara a produção cultural neste país que consegue sobreviver apenas com a receita gerada. Parte da razão é óbvia: é preciso haver público formado. Da mesma forma que é necessário haver produtores culturais capazes. Sem entrar em questões qualitativas, a formação de público não é algo que possa ser feita só a nível académico. Pode e deve ser feita a nível académico, mas não chega. É preciso que haja uma constante e permanente oferta cultural que não esteja subjugada nem aos poderes nem às tendências vigentes. Em que os critérios de atribuição de subsídios sejam mais do que um concurso de popularidade, compadrio ou um mero seguir as tendências.
O brado de indignação acerca da aplicação dos dinheiros públicos entregue a músicos, escritores, encenadores, realizadores, editores e outros artistas é elevado, como se fossem um bando de malandros que não quer trabalhar. Isto quando há milhões públicos gastos em imbecilidades como jogadores de futebol, palcos religiosos e operações militares. Já sem mencionar o desperdício que grassa em festas, fatos e outras coisas de que nem sequer temos conhecimento. Sendo públicos, a palavra chave aqui.
Eu até poderia viver com isso, se ao menos não atrapalhassem quem quer realmente contribuir e que o faz. Não obstante a falta de apoios, de público ou de condições básicas. Não é um lamento, é uma constatação.
A solução é fazer, aconteça o que acontecer.
Aqueles que escolhem uma vida ligada à cultura, escolhem uma vida insegura e precária. É uma escolha. Assim como ser um bilionário mentecapto é uma escolha. Já ser explorado por um, é, frequentemente, uma inevitabilidade.
O estado deve financiar projectos culturais (como financia bancos). É uma obrigação – não descrita desta forma, é certo – prevista na constituição. Já que jogamos o jogo da democracia, então tentemos pelo menos seguir as suas regras.
Obviamente que é problemático um estado formar uma população que coloca demasiadas questões. Formar pensamento crítico é, ou pelo menos devia ser, o papel da cultura. E nesse sentido, compreendo que o estado não esteja disponível para financiar uma linha cultural que questione a sua conduta, quando não a sua própria existência, pelo menos nos moldes actuais. O mesmo para os grandes filantropos privados.
Naturalmente, nem toda a cultura se apresenta como dissidente. Primeiro porque muitas vezes o entretenimento passa por cultura e depois porque é frequente ser a produção cultural desprovida de valores a chegar ao grande público. Invariavelmente o motivo invocado é ser “o que as pessoas querem.” Da mesma forma, o motivo invocado para outro tipo de decisão estatal de carácter mais coercivo e autoritário é ser “o que as pessoas precisam” (veja-se a lei do tabaco ou das drogas leves, por exemplo). Tal cria uma clara situação de dois pesos e duas medidas em que nenhuma está certa.
Não pode ser a quantidade de público ou as vendas a determinar o sucesso de uma obra. Essa é uma preocupação para o magnata de fato de gravata. Não para o criador. Tal como os produtores de leite e de carne são financiados para manter os preços acessíveis e a rotação do consumo, também a cultura deve beneficiar de tratamento semelhante.
Se a bitola para a cultura for o sucesso comercial, então tudo isto foi um estrondoso falhanço:
Velvet Underground; Fernando Pessoa; Van Gogh; Emily Dickinson; Franz Kafka; Edgar Allan Poe; Henry David Thoreau; Oscar Wilde; Johann Sebastian Bach.
Todas estas pessoas foram desacreditadas pela crítica e ignoradas pelo público e hoje em dia são valores reconhecidos. Obviamente morrer primeiro ajuda muito, mas talvez possamos começar a valorizar os nossos artistas enquanto ainda vivem?
Faço minhas as palavras de Simone de Beauvoir, quem muito aprecio e merece mais do que uma citação descontextualizada: “Erguer o povo ao nível da cultura e não rebaixar a cultura ao nível do povo.”
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia