Catar, Qatar ou Katar… Seja qual for a primeira letra, o que interessa é que foi este o país escolhido para a cerimónia inaugural do “MSC World Europa”. Ao sair do avião em Doha, capital de um país abundante em petróleo e gás natural mas não em território, o calor sufocante atinge-nos com agressividade, apesar de ser meia-noite.
Durante a viagem até ao porto vislumbramos os arranha-céus de West Bay, iluminados com néons. A Corniche — passeio marítimo que se estende por sete quilómetros junto à baía — está fechada e só autocarros e carros autorizados circulam entre os muitos postos de controlo. Ao chegar ao novo terminal de cruzeiros somos rapidamente encaminhados para o interior, sob o olhar de seguranças – estamos a uma semana do arranque do Campeonato do Mundo de futebol.
Passada a barreira do check-in, o “MSC World Europa” dá-se a conhecer. Não é um navio pequeno, antes pelo contrário, é um dos maiores navios do mundo, com 333,3 metros de comprimento, 47 metros de largura e 215.863 de arqueação bruta.
Ao subir a bordo, a primeira sensação que temos é de estarmos perdidos. Há elevadores que sobem e descem numa azáfama constante, corredores que não terminam, portas que vão dar a um espaço exterior, depois ao interior e depois novamente ao exterior. Tudo é grande, mas mesmo grande. O batismo da nova joia da coroa da MSC também foi celebrado com grande alarde, perante o olhar de dois mil convidados.
O espetáculo teve vários momentos tecnológicos, um vídeo projetado no casco, música por Matteo Bocelli e fogo de artifício, mas o ponto alto da cerimónia foi um surpreendente espetáculo de cor e movimento criado por 600 drones.
Também houve recados políticos — quando o acutilante presidente da Qatar Airways e chairman do Turismo do Catar, Akbar Al Baker, considerou as notícias negativas na imprensa internacional como sendo fake news e garantiu que, “quando o Mundial acabar, cada cidadão catarense vai erguer-se um metro mais alto do que hoje”.
Estava a referir-se a notícias sobre um país onde as relações homossexuais são proibidas, as manifestações de carinho desencorajadas e os direitos das mulheres desrespeitados, ou sobre os trabalhadores que morreram na construção dos estádios. O jornal britânico “The Guardian” avançou com a estimativa de 6500 mortos em 10 anos de obras.
O evento terminou com a irmã do emir, Sheikha Hind Bint Hamad al-Thani, madrinha do navio, a cortar a fita da garrafa de champanhe. O “MSC World Europa” estará atracado no Grande Terminal do porto de Doha durante todo o evento desportivo, funcionando como um hotel flutuante.
A partir de 20 de dezembro fará a sua viagem inaugural a partir de Doha, fazendo escala no Dubai, Abu Dhabi, ilha Sir Bani Yas, nos Emirados Árabes Unidos, e Damã, na Arábia Saudita. A partir de março de 2023, este colossal e sofisticado navio, com capacidade para 6762 passageiros e com 2138 tripulantes, deslocar-se-á para o Mediterrâneo.
A HISTÓRIA AJUDA AO ENCANTO DOS NAVIOS DE CRUZEIRO
Em 1844, a companhia de navegação britânica Peninsular & Oriental Steam Navigation Company, hoje conhecida por P&O, introduziu um novo serviço para os passageiros: viagens de lazer. Não eram cruzeiros como os que se fazem atualmente, mas uma combinação de várias viagens em navios de linha cuja função principal era o transporte de correio e nos quais, durante a longa espera nos portos onde paravam, eram oferecidas excursões aos locais de maior interesse cultural. Os paquetes a vapor saíam de Falmouth, no Reino Unido, e faziam escala em Lisboa, Cádis, Gibraltar, navegando depois pelo Mediterrâneo até ao Egito.
Estas viagens turísticas foram bem-sucedidas e despertaram o interesse de alguns armadores britânicos, que começaram a utilizar navios de passageiros exclusivamente em cruzeiros. O primeiro foi organizado em 1886 pela North of Scotland, Orkney & Shetland Steam Navigation Company, ou simplesmente North Company, como ficou conhecida. A 24 de junho, o vapor “St Rognvald” largou de Leith (Edimburgo) com 90 passageiros, pagando cada um 10 libras (um trabalhador comum ganhava 30 libras por ano) por nove dias de viagem aos fiordes da Noruega. Para os padrões de hoje, a pequena embarcação tinha interiores bastante espartanos, não havia iluminação elétrica, e os camarotes que acomodavam entre duas e seis pessoas não tinham casa de banho, apenas existindo quatro no exterior. Mas na época era considerado um navio impressionante, com instalações mais do que adequadas.
Seguiram-se mais quatro cruzeiros nesse verão, todos à Noruega, e o êxito foi tal que levou a companhia a encomendar supostamente o primeiro navio de passageiros projetado para fazer cruzeiros, o vapor “St. Sunniva”, com 864 toneladas de arqueação bruta e lotação para 142 passageiros. Inaugurado a 26 de maio de 1887, este pequeno navio a vapor de 72 metros tinha uma sala de jantar/salão principal onde o único entretenimento era um piano para uso dos passageiros. Na popa existia uma sala de fumo masculina e outra para senhoras. Os cruzeiros limitavam-se então aos fiordes da Noruega, entre maio e setembro. O inconveniente da imobilização dos navios nos meses restantes foi ultrapassado com a expansão dos itinerários a outras regiões, começando pelo Báltico e o Cabo Norte, logo seguido das ilhas britânicas e do Mediterrâneo a partir de 1888.
TOTAL DE NAVIOS DE CRUZEIRO ENTRE 1887 E 2022
Na Alemanha, o diretor da HAPAG, Albert Ballin, reconheceu igualmente o potencial dos cruzeiros, organizando o primeiro em 1891. O luxuoso paquete “Auguste Victoria” largou de Cuxhaven (Alemanha), com destino a Southampton, Gibraltar, Génova, Alexandria, Jafa, Beirute, Constantinopla (Istambul), Pireu, Malta, Palermo, Nápoles, Lisboa e Southampton, regressando novamente a Cuxhaven. A bordo seguiam 241 viajantes ousados, dos quais 67 eram do sexo feminino, que pagaram entre 1600 e 2400 marcos de ouro (aproximadamente entre 28.550 e 42.800 euros) pelos 57 dias de viagem. Os ilustres passageiros, principalmente alemães, britânicos e americanos, desfrutaram de um excelente serviço, com mordomos de luvas brancas, flores da época nos camarotes, cozinha requintada, bailes, jogos de convés e excursões a terra que muitas vezes se transformavam em verdadeiras viagens de aventura.
O jovem diretor Albert Ballin, na altura com apenas 33 anos, seguiu a bordo para orientar e cuidar de todos os aspetos da viagem, que foi um êxito, provando que existia um novo nicho de mercado — os cruzeiros de luxo com tudo incluído. Mas o “Auguste Victoria” tinha limitações significativas para as viagens de prazer. Os passageiros tinham falta de comodidades a bordo, os camarotes eram indesejáveis para passageiros de primeira classe, e o navio era grande demais para atracar em portos turísticos mais pequenos.
Em 1900, a HAPAG era a maior companhia de navegação do mundo, e Ballin voltou a apostar no futuro ao encomendar o primeiro navio de cruzeiros projetado exclusivamente para viagens de luxo, muito aproximado do conceito que existe nos dias de hoje. Batizado em homenagem à única filha do imperador alemão, o “Prinzessin Victoria Luise”, com 124 metros de comprimento, era um navio extraordinariamente luxuoso, com os padrões mais elevados da época. Os 180 passageiros tinham ao seu dispor um grande ginásio, salão social, biblioteca, sala para fumadores, uma galeria de arte em redor da sala de jantar, amplos decks de passeio, salão de baile, câmara escura para fotógrafos amadores e 120 camarotes excecionalmente luxuosos, cada um equipado com elegantes móveis europeus. O “Prinzessin Victoria Luise” inspirou várias gerações de navios de cruzeiros.
Ao longo de 122 anos, as companhias de navegação construíram navios cada vez mais corpulentos, criaram novos itinerários, diversificaram as atividades a bordo e introduziram “pacotes” para todos os gostos… e bolsos. O preço é apenas o segundo fator que mais interfere na escolha dos portugueses, sendo ultrapassado pelos itinerários como os fiordes, o Báltico, o Mediterrâneo ou as Caraíbas. Por outro lado, é atribuída uma grande relevância à credibilidade da empresa, oferta a bordo e mordomias. “Hoje, a indústria de cruzeiros concorre com os resorts, que apesar de paradisíacos não deixam de ser estáticos. A bordo de um navio podemos visitar vários locais”, afirma Eduardo Cabrita, diretor-geral da MSC Cruzeiros em Portugal.
PRINCIPAIS DESTINOS DOS PASSAGEIROS EM 2022
Com 22 decks, o “MSC World Europa” permite que os 6762 passageiros de várias idades possam usufruir do melhor tempo do seu dia a bordo sem nunca estarem parados no mesmo sítio ou fixos na mesma opção.
A grande novidade do navio é a promenade exterior, com 104 metros de comprimento, um espaço aberto na popa. No lado oposto encontra-se uma sala de espetáculos que leva mais pessoas do que o Teatro Nacional D. Maria II. Para quem não gosta de nada disto há sempre as piscinas (sete no total) e os escorregas, como num verdadeiro parque aquático. Mas a grande sensação do navio não tem propriamente água. Chama-se “Venom”. Trata-se de um escorrega com 11 decks de altura, cuja entrada é feita na boca de uma cobra gigante — é só entrar no tubo e mergulhar num abismo de escuridão e velocidade até chegar lá abaixo.
Para as refeições existem três buffets à escolha, além de quatro restaurantes principais. Se quiser uma experiência gastronómica diferente, pode escolher um dos seis restaurantes de especialidade, como o Kaito Sushi, de comida oriental, o Butcher’s Cut, dedicado às carnes maturadas, ou o La Pescaderia, onde o peixe fresco é escolhido logo à entrada do restaurante. Depois das refeições, o pub Masters of the Sea é o local mais concorrido, graças à sua própria produção de cerveja. Se preferir um local mais calmo, o navio dispõe de mais 19 bares e lounges. Depois há ainda as lojas de marca, os carros de choque, o simulador de Fórmula 1, uma sala de cinema, um casino… até que chegamos a um ponto em que nos esquecemos de que, na verdade, estamos dentro de um navio.
O ESTALEIRO ONDE O PASSADO E O FUTURO SE ENCONTRAM
Quando Napoleão III decidiu dotar França com um estaleiro capaz de construir grandes navios transatlânticos, confiou a sua construção a John Scott, engenheiro escocês, então diretor do estaleiro de Greenock. O estaleiro nasceu em 1861, na margem direita do estuário do Loire, perto de Saint-Nazaire. Desde então foram aí construídos 138 navios de passageiros, que cruzaram diligentemente os oceanos e os principais acontecimentos da História mundial.
A 23 de abril de 1864, o “l’Impératrice Eugénie” (nome da mulher de Napoleão III), o primeiro transatlântico construído em França, deixou o estaleiro Penhoet, o nome inicial que lhe foi dado por Napoleão. Com 108 metros de comprimento, propulsão mista de vela e vapor e equipado com rodas de pás, podia atingir uma velocidade de 13 nós e transportar 215 passageiros. Um pouco antes da II Guerra Mundial foi lançado o maior, mais rápido e mais luxuoso transatlântico do mundo, o “Normandie”, para ligar Le Havre a Nova Iorque. Em 1960, já ostentando o nome de Chantiers de l’Atlantique, o estaleiro lançou o “France”, com 316 metros de comprimento, um verdadeiro palácio flutuante, dotado de todo o luxo e conforto moderno. E em março de 2021 entregou o maior navio do mundo, o “Wonder of the Seas”, à Royal Caribbean.
Na escuridão da madrugada de 26 de outubro de 2022, o “MSC World Europa” deixou o porto de Saint-Nazaire e os estaleiros Chantiers de l’Atlantique rumo ao Catar. O corte da primeira chapa foi feito a 30 de outubro de 2019, tendo demorado sete meses para juntar os 59 blocos que constituem o casco. O princípio é o mesmo do lego, mas em ponto grande. O navio é montado às peças, que depois se vão sobrepondo. No total foram precisos mais de 29 meses até o colossal “MSC World Europa” ficar terminado, com um custo astronómico que superou os 1200 milhões de euros.
O “MSC World Europa” não é o primeiro navio de cruzeiro movido a gás natural liquefeito (GNL) — título que pertence ao “AIDAnova”, lançado ao mar em 2018 —, mas é o mais inovador e mais avançado em termos ambientais construído até hoje. Além de ser alimentado a GNL, o combustível fóssil mais limpo atualmente disponível, reduzindo as emissões de dióxido de carbono para a atmosfera em 25%, é o primeiro navio do mundo a dispor da tecnologia de célula de combustível, que serve para produzir energia e calor a bordo de uma forma altamente eficiente por meio de uma reação eletroquímica sem combustão.
Esta célula, quando estiver aperfeiçoada, permitirá que os navios sejam autossuficientes, produzindo a sua própria energia, sem emissões para a atmosfera. A ambição da MSC é acelerar o seu desenvolvimento, de forma a atingir zero emissões de gases de efeito de estufa até 2050.
OS 10 MAIORES PAQUETES DO MUNDO
No que toca a eficiência energética, na nova joia da coroa da MSC destaca-se ainda o formato do casco, desenhado para diminuir a resistência na água e o impacto acústico na fauna marinha, ou o sistema de dessalinização da água do mar para ser utilizada a bordo (exceto para beber) e o seu tratamento antes de ser devolvida à natureza. O segundo navio desta classe, o “MSC World America”, já está entretanto a ser construído nos estaleiros Chantiers de l’Atlantique, para ser lançado em 2025.
O NASCIMENTO DE UM IMPÉRIO
Para contar a história da MSC Cruzeiros é preciso voltar ao ano de 1970, quando Gianluigi Aponte, um jovem comandante italiano, fundou a Mediterranean Shipping Company (MSC) e comprou o seu primeiro navio, o “Patricia”, para fazer o transporte marítimo de carga entre Sorrento, a sua cidade natal, e vários portos no norte de África.
Em 1971 adquiriu um navio ainda maior, ao qual deu o nome da sua mulher, “Rafaela”, seguido pelo cargueiro “Ilse”, dois anos depois. Já com a empresa de transporte marítimo a ir de vento em popa, Gianluigi Aponte acabou por entrar na indústria de cruzeiros em 1987 para ajudar um amigo em dificuldades, Achille Lauro. Este armador do sul de Itália era dono da companhia de cruzeiros Lauro Lines, que operava dois navios, o “Angelina Lauro” e o “Achille Lauro”, ambos destruídos pelo fogo.
O “Angelina Lauro” estava atracado em Saint Thomas, nas Ilhas Virgens Americanas, quando sofreu um incêndio na cozinha que se espalhou rapidamente pelo navio. A enorme quantidade de água usada para apagar o fogo acabou por provocar o seu afundanço no cais. Declarado como perda total, foi contratada a empresa Eckhardt & Company, de Hamburgo, para o colocar novamente a flutuar e levar para a sucata, mas acabou por nunca chegar ao seu destino. Afundou-se a 24 de setembro de 1979 no Pacífico, a caminho de Taiwan.
Mas os problemas da Lauro Lines estavam longe de terminar. A 7 de outubro de 1985, quatro palestinianos desviaram o “Achille Lauro”, depois de o navio ter saído do porto egípcio de Alexandria com 440 passageiros a bordo. O incidente ficou marcado pelo assassínio do sexagenário americano (e judeu) Leon Klinghoffer, morto a tiro e depois atirado ao mar na sua cadeira de rodas. Os sequestradores da Frente de Libertação da Palestina exigiam a libertação de 50 palestinianos detidos em cadeias israelitas. O desfecho terminou ao fim de dois dias com a rendição dos quatro palestinianos e a libertação de todos os reféns.
Após o sequestro, o armador de Nápoles Achille Lauro começou a ter sérias dificuldades financeiras, mas o seu amigo Gianluigi Aponte, que não se imaginava no negócio dos cruzeiros, comprou a empresa e mudou-lhe o nome para StarLauro Cruises.
O “Achille Lauro” continuou em serviço até novembro de 1994, quando sofreu um incêndio na casa das máquinas ao largo da costa da Somália. O cruzeiro de Génova para a África do Sul acabou com 572 passageiros e 402 tripulantes amontoados e aterrorizados em barcos salva-vidas. O navio inclinou-se e, depois de dois dias de agonia, afundou-se.
Em 1995, para se distanciar do desastre do “Achille Lauro”, a família Aponte fez desaparecer para sempre a StarLauro Cruises e criou a MSC Crociere. Nesse ano adquiriu o “Cunard Princess” à companhia britânica Cunard e rebatizou-o de “MSC Rhapsody”. Hoje possui a terceira maior frota do mundo (depois da Carnival e da Royal Caribbean), com 20 navios, e até 2028 mais 11 serão lançados ao mar, num investimento de 9,4 milhões de euros.
Para o presidente da MSC Cruzeiros, Pierfrancesco Vago, casado com a filha de Gianluigi Aponte, o futuro será brilhante para a indústria dos cruzeiros, que deverá ultrapassar até ao final de 2023 o volume de passageiros registado em 2019, antes de a guerra contra a covid-19 ter silenciado os oceanos. Segundo a Cruise Industry News, em novembro, dos 430 navios de cruzeiros existentes no planeta, 375 já retomaram as suas atividades.
O Expresso viajou a convite da MSC Cruzeiros
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL