As inúmeras mortes não tinham atropelado o ego daquela figura política de proa que, em tempos idos, terá tido o significado lexicográfico de empecilho, de um fardo para outros. Para sua catarse emocional, resolve ir a um festejo hedonista, por aceno de um homem de negócios instalado num sumptuoso palacete em São Bento. Ao chegar, compenetrado, de calça vincada e sapatos engraxados, esforçando-se por ser polido no trato e por esconder uma esfuziante alegria que a tragédia não consente, embarca, perante a distração dos telemóveis, no continuado e inglório esforço dos políticos, em levarem o pessoal ao delírio das festas murchas. Apercebendo-se, entretanto, que se esquecera do convite, vê o seu ingresso barrado por um jovem segurança:
– O senhor vai-me desculpar, mas sem convite não posso deixá-lo entrar.
– Ora essa! É inadmissível que você, ainda que moço, não reconheça o presidente da sua edilidade! – resmunga, enérgico, o governante local, empertigado com a autoestima feérica do seu poder. Uma autoestima que se projeta na antecâmara dos espetáculos eleitorais, onde a classe política sempre costuma revelar uma tremenda obsessão por ser amada, transmitindo esvoaçantes sorrisos, numa ocasional e rechonchuda simpatia.
E, ao que parece, assim perdurará o grave fingimento que é o de ignorar a atual erosão dos quadros de referência da juventude do seu país e a preocupante esfera do seu ativismo político, num mundo social cada vez mais massificado, incerto e exigente.
Rigoroso, o jovem segurança, ufana-se da visibilidade social do seu cargo e corpo, marcados pela excessividade e pela espetacularidade, lidas e reivindicadas como radicais. Ele, para quem a verdade e o futuro habitam com mais esperança no passado que no presente, insiste:
– Então, faça favor de me mostrar os seus documentos.
– Também não os tenho aqui. Tenho andado desobstinado, a antecipar o frenesim da festa, a tentar fazer da minha vida um perfeito podcast e você aqui a fazer-me perder um tempo precioso… também esqueci a carteira. – justificou, insuflado, o Trambolho, que parecia aflito por temer ficar fora de cena de uma vida de aplausos, relatórios, despachos, criações e bastidores, pensando poder ter que vir dedicar-se a um tempo depois das sobras.
Como os demais, embora saiba que a política constitui uma passagem fugaz, tal como a vida, sempre insiste em fazer dela uma ávida e ininterrupta biografia, candidatando-se a outros municípios – vizinhos ou não – como forma de contornar a lei da limitação de mandatos autárquicos.
– Desculpe, mas não vou poder deixá-lo entrar! – afirmou o jovem segurança, que não tendo cruzado fronteiras para fugir à tropa, como a geração dos seus avós, tinha abandonado a ideia do homem novo e da verdade como arte da libertação.
– O quê? Você está a duvidar da honradez da minha palavra? Nunca me viu em bico de pés, na TV? Olhe bem para mim! Não vê quem sou?
Cético, temendo embarcar na narrativa de um autarca mergulhado na grandiosa e minuciosa encenação que sempre assiste às mediáticas peças teatrais dos políticos, sobretudo em períodos eleitorais, que até obras prematuras lançam, o jovem parece aquiescer:
– De facto, o senhor é parecido com o presidente da edilidade. – responde-lhe, indiferente à arrogância que permanece naquela cidade, outrora incomensuravelmente provinciana. – Mas, sabe como é! Nada me garante que não existam por aí uns sósias seus, ou mesmo uns sicários, com parecenças consigo. Tenha paciência, prove-me que é realmente quem diz ser. – Desafiou o segurança, estranho a uma geração de políticos cultos que tivera bem mais convicção, folego e inspiração que os atuais fazedores da política espetáculo, enxertados em aparatosos outdoors,juncados de slogans concebidos com frases feitas – ideias estreitas, que desfiguram o espaço público e provocam uma profunda e alérgica comichão cultural.
O político que, na adolescência, nunca frequentou um campo de trabalho, ou uma espécie de universidade de veraneio, como experiência fundadora de liderança e humildade, que não sabe fazer da vida uma rábula para dela retirar umas pitadas de humor, ameaça com redobrada arrogância:
– Moço, você está armado em dono da bola, ou quê? Por que carga d’água não posso entrar? – insiste o Trambolho.
Perante a desenvoltura loquaz deste jogo palavroso, investido quase como recurso de confrontação social, a seu ver bem semelhante às teatradas na Assembleia da República, o segurança sugere:
– Olhe, o senhor é que sabe! Mas ainda lhe vou dar uma outra possibilidade. – Dou-lhe como exemplos: o Ronaldo, que também se esqueceu do convite e dos documentos… eu dei-lhe uma bola e ele logo me fez uma convincente exibição; a Cuca Roseta, que também deles não se lembrou, cantou-me um fado com uma maestria, uma paixão e uma profundidade que só dela…
Ao ver o caso malparado, o Trambolho lança um lamuriento desabafo:
– P**…, mas eu não sei fazer nada que jeito tenha!
Meio embaraçado com resposta tão incisiva, o segurança agiliza, de imediato, a entrada dando-lhe instantânea permissão.
– Ok! Peço que desculpe o transtorno, Sr. Presidente. Faça o favor de entrar.
Pois é! Reza a estória que terá sido assim, tal-qualmente, que o termo trambolho terá sido incorporado na lexicografia dedicada à elaboração do primeiro dicionário do Português de Portugal.
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