Entre o Céu e o Inferno. Vida e Morte nos Navios da Expansão Portuguesa (1497-1655), de Marco Oliveira Borges, da chancela Crítica, da editora Planeta de Livros Portugal, foi publicado em setembro do ano passado, e distinguido poucos meses depois com o prémio da Fundação Calouste Gulbenkian, História da Presença de Portugal no Mundo, atribuído pela Academia Portuguesa da História.
Este livro resulta de uma aturada investigação levada a cabo pelo historiador Marco Oliveira Borges, investigador das temáticas relacionadas com os Descobrimentos e a Expansão Europeia dos séculos XV-XVII. Depois de um estudo que resultou numa volumosa tese de doutoramento, a ponto de ser dividida em dois volumes, o autor apresenta-nos aqui uma versão condensada, de leitura aprazível e erudita, sobre o quotidiano a bordo das embarcações da Carreira da Índia. Ao procurar dar voz a escravos, mulheres, soldados, marinheiros e outros tripulantes, focando-se muitas vezes nas minorias, com recurso constante a fontes aqui citadas – nas passagens mais relevantes e ilustrativas -, de relatos da época que o autor leu, interpretou e transcreveu, e outras fontes históricas (que embora numerosas, pouco se debruçam sobre as miudezas da vida quotidiana a bordo de um navio da época). O entusiasmo do autor na escrita é de tal forma que o próprio português parece colar-se ao da época – entre o vernáculo e o coloquial. Veja-se, como exemplo, a seguinte passagem acerca da tripulação ter colocado mercadoria no convés, o que os atrapalhou num momento de recontro com outra embarcação em que era preciso combater:
“Consequentemente, isso teve uma dupla contrariedade: para além de ter estorvado os trabalhos a bordo, visto que o convés ficou empachado e avolumado de mercadorias, sem se poder preparar decentemente uma batalha, cansou bastante os homens, que durante aqueles dias não fizeram mais nada do que acartar mercadorias.” (p. 274)
A leitura deste livro nunca se torna, portanto, fastidiosa, e muitas vezes parece ressoar episódios ou passagens que possamos ter lido na História Trágico-Marítima ou na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto (cujos naufrágios e perdas são tão constantes que lhes perdemos a conta, a ponto de o autor alegar ter voltado para Portugal apenas com o que tinha no corpo).
Desde que se cumpriu em 1499 a primeira viagem marítima entre Lisboa e a Índia, com início a 2 de julho de 1497, sob a capitania de Vasco da Gama, que se tornaram regulares as travessias programadas, numa “ligação transatlântica anual” que se tornou conhecida como a Carreira da Índia, com o objetivo de estabelecer contactos mercantis, a implantação de feitorias, a compra de especiarias e o seu envio para o reino – sempre com muito lucro próprio pelo meio. Não se pense, contudo, pelas inúmeras viagens que se cumpriram, que estas eram isentas de perigos e reveses. Até mesmo o tempo de calmaria podia tornar-se um problema a longo prazo, chegando a atrasar e a boicotar a partida de diversas naus. Calmarias que podiam durar até sessenta dias, sem que um barco se movesse um único grau, sem a mais leve brisa de vento.
Tripulantes e passageiros enfrentavam o medo do desconhecido
Nestas viagens que duravam entre cinco a sete meses, os tripulantes e os passageiros enfrentavam o medo do desconhecido, de um mar feroz, a morte e a incerteza de chegar ao seu destino, tudo na vã esperança de alcançar uma miragem de riqueza. Muitos partiam aliás contra a sua vontade. Quase nenhum sabia nadar.
Como se vai tornando claro ao longo deste estudo, e assim se explica o título, muitas vezes as desgraças que acometiam os barcos nas suas viagens eram vistas como castigo divino. Quando alguém morre ou cai ao mar durante estas expedições marítimas, será comum pensar que tal se deve ao facto de aquele ser um pecador incontrito (com origens no episódio bíblico do pecador Jonas). Por isto, rezar pode ser a única salvação, sendo igualmente importante ter sempre a confissão em dia…
Numa situação já por si incerta e desesperante, os infortúnios de que estes marinheiros podiam padecer revestiam-se de um tom trágico, a que a religiosidade conferiu forma como melhor lhe convinha, também de modo a chamar a si novos conversos. Também nesta linha de pensamento, os sítios mais fortemente associados a esta “realidade trágico-marítima”, como o hoje Cabo da Boa Esperança eram então conhecidos por nomes emblemáticos como “o cabo da boca do Inferno” (p. 60).
Entre o Céu e o Inferno divide-se em duas partes, sendo que na primeira, mais extensa, o autor se debruça sobre a vida a bordo nas Carreiras da Índia. Ao longo dessas páginas (cerca de 250), o autor aborda temas como: os preparativos para o embarque; a perceção que o homem tinha do mar; o medo do mar e dos naufrágios, a ponto de alucinarem ou de imaginar/criar monstros – ainda que quase sempre com um certo fundo de realidade – que hoje continuam a perdurar no nosso imaginário; a tipologia, os problemas de uso do espaço dos navios; a falta de manutenção (ou de cuidados especializados), a degradação e a sobrecarga dos navios (em virtude da ganância); a composição social dos navios – uma espécie de microcosmos da época –, a alimentação, a higiene (ou a falta dela), a saúde, as doenças e os acidentes a bordo; as práticas religiosas, os passatempos, as diversões; a sexualidade (outro tipo de diversão) e seus desvios; as tensões e os conflitos que tinham lugar em plena travessia interoceânica – por vezes resolvidos com gente literalmente a ser atirada ao mar. Acresce ainda que muitos detalhes e pormenores que aqui se contam não figuram habitualmente nos manuais de história. Como rapidamente se percebe, os temas não são tão estanques como o índice e o que aqui se apresenta podem fazer crer, pois tocam-se e interrelacionam-se, pelo que é frequente, ao falar de uma situação num navio, o autor dar rédea solta à recriação e análise desses episódios – fazendo-nos reviver tais momentos – e assim espraiando-se num ensaio que é parte interpretação e parte reconstituição. Talvez por isto mesmo, na segunda parte do livro, que abrange apenas umas 40 páginas, o autor tenha optado por destacar algumas das várias viagens feitas na Carreira da Índia, selecionando 6 naus, num período histórico que compreende cerca de 100 anos – entre 1562 e 1655. Estes relatos de viagens não resultam da transcrição de manuscritos, como Kioko Koiso aponta no seu prefácio à obra, mas sim de relatos já publicados. Relatos estes que resultam, como se torna óbvio ao longo do livro de Marco Oliveira Borges, de cartas de jesuítas – uma classe privilegiadamente letrada na época – e outros testemunhos.
Neste inédito retrato vivo e englobante da vida a bordo na Carreira da Índia somos levados a conhecer de perto as pessoas que embarcavam na Carreira da Índia, os motivos que as moviam, como viviam dentro das naus, o que comiam, os perigos que enfrentavam – e os tubarões, aqui recorrentes, quase parecem um mal menor –, numa análise pertinente da vida a bordo dos navios que permitiram a expansão marítima e o desenvolvimento do Império Português.
Marco Oliveira Borges nasceu em Cascais (1984). É licenciado em História, mestre em História Marítima e doutorado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo desenvolvido, sob financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, uma tese doutoral no âmbito do PIUDHist: O trajecto final da Carreira da Índia na torna-viagem (1500-1640). Problemas da navegação entre os Açores e Lisboa: acções e reacções (2 vols.). Atualmente, é professor do Ensino Secundário, investigador integrado do Centro de História da Universidade de Lisboa e membro efetivo da Academia de Marinha. A sua investigação principal incide em temáticas relacionadas com os Descobrimentos e a Expansão Europeia dos séculos XV-XVII. Os resultados das suas investigações têm sido apresentados em encontros científicos de âmbito nacional e internacional, em diversos artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras da especialidade, tal como nalgumas páginas de divulgação histórica na Internet.
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