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Arqueólogo, sócio da AGECAL
A afirmação de Leite de Vasconcelos1 vem aqui a propósito de que, há uns 2070 anos atrás, os Romanos fundaram nas margens da ria, junto à actual Luz de Tavira, uma cidade que povoaram com os deslocados de outra terra, a cerca de 10 quilómetros. A nova localização trazia vantagens: a cidade foi planeada com ruas direitas e espaçosas, com casas arejadas, e infra-estruturada com abastecimento de água e esgotos, dotada de centro cívico e religioso, termas, circo, cemitérios e instalações portuárias.
Durante mais de 500 anos, a cidade foi habitada por gente de variadas origens e os arredores ocupados com assentos de lavoura. Detinha um estatuto político invejável, cabeça de um território que ia desde Bias do Sul ao Guadiana, abarcando a faixa do litoral e parte do barrocal e da serrania do Caldeirão. Ali se consumiram e negociaram produtos de muitas procedências. Numa posição privilegiada nas rotas marítimas, a cidade beneficiou do comércio entre o Mediterrâneo e o Atlântico, mormente após a Britannia ser integrada no Império.
Há 1.600 anos atrás, a cidade foi sendo despovoada e as suas construções desmanteladas, os objetos destruídos ou dispersos, os materiais reutilizados. No plaino abandonado, a cidade, agora invisível, ficou sujeita ao dinamismo da atividade humana. Instalaram-se assentos de lavoura.
Há pouco mais de 400 anos atrás, os humanistas reencontraram o nome da cidade: Balsa. Há 150 anos atrás, a sua localização foi confirmada pelos arqueólogos. Mas há 40 anos atrás, a campina da Luz começou a ser profundamente alterada, com o cultivo mecanizado de vinha e pomares de fruta. O espaço agrícola foi usurpado por moradias e vivendas de férias. As ruínas dos romanos foram delapidadas e pilhadas. Só a partir de então a cidade foi delimitada com rigor e beneficiou de escavações arqueológicas.
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Há 30 anos atrás, a criação do Parque Natural da Ria Formosa visou a proteção e conservação do sistema lagunar, nomeadamente da sua flora e fauna e respetivos habitats. Sem esquecer a presença das gentes, o Parque propôs proteger, classificando, o que restava da cidade romana. Em 1990, foi finalmente oficializada a proteção do imóvel como bem cultural. Contudo, só uma mínima parte da área arqueológica acabou classificada, em 1992, como bem de Interesse Público. Que há 6 anos atrás passou a dispor de uma Zona Especial de Proteção.
Mas a prevalência da proteção da natureza e da paisagem e a intervenção do Parque termina onde começa o perímetro do Aproveitamento Hidroagrícola do Sotavento, um avultado investimento público para a rega e abastecimento urbano. Aí, os beneficiários da obra de rega podem e devem praticar a atividade agrícola e esta intensificou-se com cultivos em túneis, para exportação e altamente rentáveis.
Contudo, a paisagem daquele plano tem uma componente eminentemente cultural, pontuada por ruínas de paredes, pavimentos e escombros. Conotados com a sustentabilidade da Dieta Mediterrânica, encarada como um recurso de desenvolvimento regional, o conhecimento e valorização de Balsa enquanto bem cultural, incluindo os seus valores paisagísticos, arqueológicos e imateriais, exigem ampla participação dos intervenientes no processo de ordenamento e de gestão cultural do território, para definir e avaliar criticamente objetivos operacionais e mecanismos legais de recuperação deste património único e insubstituível da região e do país.
1 De Campolide a Melrose. Lisboa, Imprensa Nacional, 1915, p. 37
(Artigo publicado na última edição do Caderno de Artes Cultura.Sul)