O Postal do Algarve participa da FESTA publicando, ao longo do mês de outubro, uma seleção de textos e poemas relacionados com a temática a cada ano explorada pelos artistas e estudantes envolvidos na realização de cada edição.

(Foto Cláudia Perdigão / A|NAFA)
CARTA A OPHÉLIA QUEIROZ – 28 MAIO 1920. Fernando Pessoa
Segunda carta
Querido Bebezinho do Ibis:
A carta, que te escrevi ainda agora e que já deitei no correio, não contém, como no fim dela te disse, tudo quanto eu te queria escrever. O caso é que, quando eu ia quase no fim (felizmente não foi antes) apareceu o primo no Café Arcada, onde eu estava escrevendo, e onde estou, também, escrevendo esta. Tive que interromper a carta, e fiquei irritado — não com ele, é claro, que estava longe de ter culpa, até tinha ficado de aparecer a essa hora (seis), mas com o Destino, que combinara assim tão mal as coisas.
Como nessa carta te digo, eu tinha que estar de volta na Baixa às 9 horas. Pois, com a demora do meu primo a falar comigo, dentro em pouco era um quarto para as sete; ele saiu, acabei a tua carta à pressa, deitei-a no correio… e lembrei-me nessa altura que tinha que ir fazer a barba.
Resultado: não tenho tempo para ir a casa jantar e estar de volta na Baixa às 9 horas. Por isso voltei ao Arcada para comer qualquer coisa; é do «Arcada» que te estou a escrever.
Bebezinho meu: o que eu te queria dizer na outra carta, e não tive tempo, mas que te digo nesta, é isto, e peço que aprendas bem a lição, e, se me tens amor, que escutes este conselho:
O Destino é uma espécie de pessoa, e deixa de nos ralar se mostrarmos que nos não importamos com o que ele nos faz. Por isso tu deves ter a força de vontade de só pensar isto : gosto do Fernando, não há mais nada .
O rapaz, e o que ele diz, trata com desprezo, mas com desprezo autêntico e verdadeiro: não penses nele. Achas difícil? Não admira, porque és muito nova; mas não serás capaz, pedindo-te eu , de concentrar o teu espírito numa atitude de indiferença por tudo quanto não seja o teu Nininho? Se não puderes fazer isto, não sabes amar ainda.
Bem sei: apoquentam-te por todos os lados, ralam-te, cansam-te. Toma conta de ti mesma (percebes?) e não olhes a nada disso.
Gostas de mim, do Ibis, do Nininho?
Eu sou muito nervoso, mas tenho já o espírito educado ao ponto de receber com sangue frio o pior e o mais complicado. Se eu fosse dez anos — que digo eu? basta dois anos — mais novo, ficava todo atrapalhado com o que me contaste.
Fiquei apoquentado por tua causa, mas por mim não imaginas como estou calmo, tranquilo, em ordem dentro da minha cabeça. E gosto imenso de ti, Bebé, acredita; não quer isto dizer que eu te não ame; quer dizer que, nisto tudo, ligo só importância a ti e a mim, não me importando o resto para nada.
Tu és capaz de me fazer um favor? É procurares estar calma, ter desprezo, ter indiferença. Tu estás dando ao rapaz um prazer imenso. Olha: de mim não tira ele prazer nenhum…
Amanhã há de ver-te. O natural é que vá ter a Belém durante a tua hora de almoço — um pouco do meio-dia em diante. Mas procurarei estar em Santos à hora da tua ida, para combinar contigo.
Não imaginas. Tenho positivamente uma sensação de alegria. É que me estorvam; e eu não desgosto que me estorvem, para eu remover os obstáculos.
Limpa as lágrimas, Bebé mau! Tens hoje do teu lado o meu velho amigo Álvaro de Campos, que em geral tem sido só contra ti. Alegra-te! Só vale a pena o que se consegue com esforço.
Mil beijinhos, beijos e chi-corações do teu, sempre teu
Fernando
28/5/1920
P.S. Pode ser que, por qualquer razão contra a minha intenção, eu não possa aparecer de manhã. Nesse caso espera-me em Belém logo depois do meio-dia. Espreita o meu aparecimento e sobe para me falar. Não é natural que teu pai esteja, não é verdade? — Quanto ao rapaz, pode estar à vontade, que isso não tem importância.
F.
28-5-1920
Cartas de Amor. Fernando Pessoa. (Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz.) Lisboa: Ática, 1978 (3ª ed. 1994).
NOTA: A FESTA DOS ANOS DE ÁLVARO DE CAMPOS 2019 decorre até ao próximo dia 30 de novembro, em Tavira, com poesia, momentos musicais, cinema, jantares vínicos, exposições, entre outros eventos, cujo programa pode acompanhar AQUI.