O Postal do Algarve participa da FESTA publicando, ao longo do mês de outubro, uma seleção de textos e poemas relacionados com a temática a cada ano explorada pelos artistas e estudantes envolvidos na realização de cada edição.

(Foto Isabel Macieira / A|NAFA)
MANIFESTO. Fernando Pessoa
Toda a arte antiga baseava-se n’um elemento; isto tanto acontece à arte clássica, do paganismo, como à arte da Renascença, como à arte romântica. Só modernissimamente se começou a fazer evoluir a arte para fora d’este vetusto e rígido molde.
Os gregos e os romanos (e com eles os homens da Renascença, mais esbatidamente) pretendiam dar a sensação que sentiam perante determinado objeto ou assunto de modo a vincar fortemente a realidade d’esse objeto. Os românticos viram, porém, que a realidade, para nós, não é o objeto, mas sim a nossa sensação dele. Curaram mais, por isso, de dar a sensação do objeto, do que o objeto propriamente dito; longe de se afastarem da Realidade, procuraram-na, visto que a sensação do objeto é que é a Realidade verdadeira, e não o objeto concebido como existindo fora da nossa sensação, visto que fora da nossa sensação não existe nada, pois que para nós a nossa sensação é o critério de existência. O homem é a medida de todas as coisas; a frase de Protágoras vale pela verdade, no seu sentido total e abstrato.
A interiorização produzida pelo cristianismo levou os homens a reparar (primeiro inconscientemente) para o facto de que a realidade, o facto real, não é o objeto mas a nossa sensação dele, onde ele existe. Fora d’isso existirá ou não; não o sabemos.
Mas o romantismo viu pouco. O facto é que a Realidade verdadeira é que há duas coisas — a nossa sensação do objeto e o objeto. Como o objeto não existe fora da nossa sensação — para nós, pelo menos, e isso é o que nos importa — segue que a realidade verdadeira vem a ser contida nisto: na nossa sensação do objeto e na nossa sensação da nossa sensação.
A arte clássica era uma arte de sonhadores e de loucos. A arte romântica, apesar da sua maior intuição da verdade, era uma arte de homens que adolescem para a noção real das coisas, sem estarem ainda adultos de sentidos perante ela.
A realidade, para nós, é a sensação. Outra realidade imediata não pode para nós existir.
A arte, seja ela o que for, tem de trabalhar sobre este elemento, que é o único real que temos.
O que é a arte? A tentativa de dar dos objetos — entendendo por objetos, não só as coisas exteriores, mas também os nossos pensamentos e construções espirituais — uma noção quanto possível exata e nítida.
A sensação compõe-se de dois elementos: o objeto e a sensação propriamente dita. Toda a atividade humana consiste na procura do absoluto. A ciência procura o Objeto absoluto — isto é, o objeto quanto possível independente da nossa sensação dele. A arte procura a Sensação absoluta — isto é, a sensação quanto possível independente do Objeto. A filosofia (isto é, a Metafísica) busca a relação absoluta do Sujeito (Sensação) e do Objeto.
Ora a Arte busca a Sensação em absoluto. Mas a sensação, como vimos, compõe-se do Objeto sentido e da Sensação propriamente tal.
Intersecção do Objeto consigo próprio: cubismo. (Isto é, intersecção dos vários aspetos do mesmo Objeto uns com os outros).
Intersecção do Objeto com as ideias objetivas que sugere: Futurismo.
Intersecção do Objeto com a nossa sensação dele: Interseccionismo, propriamente dito; o nosso.
1915?
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio
de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993. – 140. – 140.
NOTA: A FESTA DOS ANOS DE ÁLVARO DE CAMPOS 2019 decorre até ao próximo dia 30 de novembro, em Tavira, com poesia, momentos musicais, cinema, jantares vínicos, exposições, entre outros eventos, cujo programa pode acompanhar AQUI.
(CM)