O Postal do Algarve participa da FESTA publicando, ao longo do mês de outubro, uma seleção de textos e poemas relacionados com a temática a cada ano explorada pelos artistas e estudantes envolvidos na realização de cada edição.

(Foto Urgélia Santos / A|NAFA)
EXCERTOS DE «O MARINHEIRO». DRAMA ESTÁTICO EM UM QUADRO. Fernando Pessoa
A Carlos Franco
Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto vê-se que é circular. Ao centro ergue-se, sobre uma essa, um caixão com uma donzela, de branco. Quatro tochas aos cantos. À direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar.
Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente à janela, de costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela.
É noite e há como que um resto vago de luar.
PRIMEIRA VELADORA — Ainda não deu hora nenhuma.
SEGUNDA — Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia.
TERCEIRA — Não: o horizonte é negro.
PRIMEIRA — Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando o que fomos? É belo e é sempre falso. ..
SEGUNDA — Não, não falemos nisso. De resto, fomos nós alguma cousa?
PRIMEIRA — Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é belo falar do passado… As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela. Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer cousa?…
(uma pausa)
A MESMA — Falar do passado — isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena…
SEGUNDA — Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido.
TERCEIRA — Não. Talvez o tivéssemos tido…
PRIMEIRA — Não dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão falso de nos esquecermos! … Se passeássemos?…
TERCEIRA — Onde?
PRIMEIRA — Aqui, de um lado para o outro. As vezes isso vai buscar sonhos.
[…]
SEGUNDA — À beira-mar somos tristes quando sonhamos… Não podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no passado… Quando a onda se espalha e a espuma chia, parece que há mil vozes mínimas a falar. A espuma só parece ser fresca a quem a julga uma… Tudo é muito e nós não sabemos nada… Quereis que vos conte o que eu sonhava à beira-mar?
[…]
SEGUNDA — Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas… Não vi se alguma vez pousavam… Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali… Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas… Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas.
[…]
TERCEIRA — Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha?
SEGUNDA — Não, minha irmã; nada é absolutamente necessário.
PRIMEIRA — Ao menos, como acabou o sonho?
SEGUNDA — Não acabou… Não sei… Nenhum sonho acaba… Sei eu ao certo se o não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?.. Não me faleis mais… Principio a estar certa de qualquer coisa, que não sei o que é… Avançam para mim, por uma noite que não é esta, os passos de um horror que desconheço… Quem teria eu ido despertar com o sonho meu que vos contei?… Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu sonho… Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite… Não estejais silenciosas… Dizei-me ao menos que a noite vai passando, embora eu o saiba… Vede, começa a ir ser dia.. Vede: vai haver o dia real… Paremos… Não pensemos mais… Não tentemos seguir nesta aventura interior… Quem sabe o que está no fim dela?…. Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite… Não falemos mais disto, nem a nós próprios… É humano e conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza.
TERCEIRA — Foi-me tão belo escutar-vos… Não digais que não… Bem sei que não valeu a pena… É por isso que o achei belo… Não foi por isso, mas deixai que eu o diga… De resto, a música da vossa voz, que escutei ainda mais que as vossas palavras, deixa-me, talvez só por ser música, descontente…
SEGUNDA — Tudo deixa descontente, minha irmã… Os homens que pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam provam-no, porque mudam com tudo… De eterno e belo há apenas o sonho… Por que estamos nós falando ainda?…
PRIMEIRA — Não sei… (olhando para o caixão, em voz mais baixa) — Por que é que se morre?
SEGUNDA — Talvez por não se sonhar bastante…
A FERNANDO PESSOA, DEPOIS DE LER
‘O MARINHEIRO’. Álvaro de Campos
Depois de ler o seu drama estático «O Marinheiro» em «Orpheu I»
Depois de doze minutos
Do seu drama OMarinheiro,
Em que os mais ágeis e astutos
Se sentem com sono e brutos,
E de sentido nem cheiro,
Diz uma das veladoras
Com langorosa magia:
De eterno e belo há apenas o sonho.
Porque estamos nós falando ainda?
Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras…
1915
1ª publ. in Solução Editora, nº4. Lisboa: 1929.
NOTA: A FESTA DOS ANOS DE ÁLVARO DE CAMPOS 2019 decorre até ao próximo dia 30 de novembro, em Tavira, com poesia, momentos musicais, cinema, jantares vínicos, exposições, entre outros eventos, cujo programa pode acompanhar AQUI.