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Doutorado em Literatura
na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL
Factotum é a mais recente obra de Charles Bukowski publicada pela Alfaguara em Março, que já traduziu e publicou outras sete das dezenas de obras do autor. Este é o seu segundo romance, publicado originalmente em 1975. Charles Bukowski nasceu na Alemanha em 1920 mas cresceu e viveu em Los Angeles durante cinco décadas, tendo publicado o seu primeiro conto em 1944 e começado a escrever poesia uma década depois. O livro, considerado como um dos seus melhores, é descrito, na contracapa, como uma «espécie de retrato do artista enquanto jovem» sendo Henry (Harry) Chinaski um alter ego de Bukowski. À semelhança de outras obras, Factotum foi adaptado ao cinema em 2005, com um resultado feliz, por Bent Hamer, com Matt Dillon, Lili Taylor e Marisa Tomei nos principais papéis.
Seguimos o percurso de Henry Chinaski durante o período da Segunda Guerra Mundial mediante o seu relato na primeira pessoa: «Cheguei a Nova Orleães debaixo de chuva às 5 da manhã» (p. 9). E à medida que o narrador vai desfiando o seu périplo pelos Estados Unidos da América vamos sabendo mais sobre esta personagem-narrador, conforme ele se digna, numa narrativa que se sucede sempre de forma linear, a ir dando pistas do que constituiu o seu percurso. Perceberemos, por exemplo, que tem tendências suicídas (o que aliás está presente no seu comportamento autodestrutivo ao longo do livro): «Fui bebendo devagar e pus-me a pensar outra vez em arranjar uma pistola e despachar o assunto: sem os pensamentos e sem a conversa.» (p. 13). Quando o pai o vai buscar numa certa noite à prisão, tendo de pagar a fiança, também se pode ler, quando este acusa o filho de não ter querido servir o seu país, que o psiquiatra declarou que ele não estaria apto. Depressão? Não se sabe ao certo mas é bem possível, pois como se refere páginas depois: «A noite ia no início e eu estava a ter um dos meus acessos de depressão.» (p. 46).
Henry Chinaski procura a solidão como um casulo protector: «Eu era um tipo que se dava bem com a solidão; sem ela, era apenas mais um homem sem comida ou sem água. Enfraquecia a cada dia passado sem solidão. Não me orgulhava da minha solidão; mas dependia dela.» (p. 35). E inclusivamente bebe como forma de escapar ao outro e ao real: «Sempre que alguém se sentava ao meu lado e se punha a conversar, eu sacava de uma das garrafas e dava um gole valente.» (p. 34). A visão do outro é aliás muitas vezes grotesca: «Olhei novamente para os rostos. Parecia uma visão do inferno em repetição ininterrupta. Cada nova remessa de rostos era mais feia, demente e cruel do que a anterior. Dei um golo de vinho.» (p. 35). Se bem que o narrador também não se retrate de forma muito positiva, mas sem qualquer autodepreciação ou autocomiseração: «Apercebi-me subitamente dos pregos das solas dos meus sapatos ranhosos a cravarem-se-me nas solas dos pés. A minha camisa encardida tinha três botões a menos. O fecho das calças estava encravado a meia haste. A fivela do cinto estava partida.» (p. 84).
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Começamos assim a perceber como Henry vagabundeia de trabalho em trabalho, chegando a regressar à casa dos pais apenas para logo constatar que nunca lhes conseguirá pagar a estadia, pois o pai exige-lhe o pagamento do alojamento, da comida e da roupa lavada. Dias depois a sua saída é intempestiva e aparentemente permanente, com agressão física pelo meio. A violência é também uma constante, nas relações familiares, amorosas ou no sexo esporádico que vai tendo com as mulheres que encontra, chegando mesmo a haver um momento em que se descreve toda a cena como sendo ele a vítima. Existem ainda relações que se revelam inclusivamente parasitárias – sendo o termo parasita utilizado aqui de forma intencional – como acontece com Jan, a mulher com quem Henry parece passar mais tempo dentro da sua errância. De Nova Orleães a Los Angeles, passando por Louisiana, Filadélfia ou St. Louis, o nosso protagonista, que nada tem de herói – embora entre nalgumas rixas, pois encara a luta física como desporto ou diversão – vai somando os mais diversos empregos, e vai estendendo o seu registo criminal. O próprio Henry vive por vezes como parasita social, consoante se agrava a sua incapacidade em adoptar um papel social adequado e cumpridor. Henry nunca é descrito como inepto pois, pelo contrário, adapta-se com grande facilidade às suas sucessivas ocupações, revelando inteligência, até porque não possui qualquer qualificação para os mesmos. O objectivo dele parece ser somente o de chegar ao fim da semana para ganhar o cheque e comprar bebida, numa época em que devido à Guerra haveria escassez de mão-de-obra. Henry parece assim viver à margem e acima dos comuns trabalhadores. Como diz a sua companheira Jan: «Sabes, quando te conheci, gostei da forma como atravessavas uma sala. Não te limitavas a atravessar uma sala, parecia pelo teu andar que ias atravessar uma parede, como se fosse tudo teu, como se nada interessasse.» (p. 98). Henry estudou jornalismo durante dois anos e possui uma aspiração, se bem que esta se vá perdendo ao longo da narrativa, quando se designa como «um escritor temporariamente falho de inspiração» (p. 49), essencialmente um contista que escreve três a quatro contos por semana que envia por correio para diversas revistas, até que vê finalmente um dos seus contos ser aceite para publicação, com o sugestivo título de «A Minha Alma Ébria de Cerveja é mais Triste do que Todas as Árvores de Natal Mortas do Mundo» (p. 57). Apesar de ser cada vez mais evidente que Henry é um alcoólico inveterado percebemos também, inicialmente talvez com espanto, que ele próprio boicota os postos de trabalho que vai conseguindo e percebe sempre o momento em que se prepara para ser despedido, naturalmente também em prol das suas acções que são muitas vezes vexatórias. No final do livro, composto por 87 capítulos ou trechos, as desventuras do nosso herói sucedem-se a ritmo vertiginoso, correspondendo ao longo de diversos capítulos a narração breve de como ele entra e sai de mais um trabalho a cada trecho. Essa recusa de Henry em encontrar um trabalho certo pode aliás ser percebida como uma recusa geral em viver segundo as prescrições sociais. Note-se como se descreve pejorativamente as massas da sociedade: «O dia chegava ao fim. Havia gente a trepar das estações de metro cá para fora. Semelhantes a insectos, anónimas, desvairadas, as pessoas precipitavam-se na minha direcção (…). Rodopiavam e empurravam-se umas às outras; emitiam sons horríveis.» (p. 34). Henry define-se assim como uma pessoa sem ambição, na medida em que a ambição de muita gente é um triunfo vazio: «Como raio haveria um tipo de gostar de ser acordado às seis e meia da manhã por um despertador, saltar para fora da cama, vestir-se, comer à pressa, (…) escovar os dentes e o cabelo, e penar no trânsito para chegar a um sítio onde, fundamentalmente, vai fazer com que outra pessoa ganhe montes de dinheiro e se exige que se mostre grato pela oportunidade?» (p. 116). É em torno desta crítica a uma sociedade capitalista, ainda mais quando a Segunda Guerra colocou tantos valores em causa, que se concentra a ironia e o humor cáustico do autor: «As notas de embalagem nunca estavam erradas, possivelmente porque o tipo do outro lado estava demasiado assustado com perder o emprego para ser desleixado. Normalmente, vai na sétima de trinta e seis prestações do carro novo, a mulher está a tirar um curso de cerâmica à segunda-feira à noite, os juros da hipoteca estão a sugá-lo até ao tutano e cada um dos seus cinco filhos bebe um litro de leite por dia.» (p. 122).
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A linguagem é simples, com frases curtas e incisivas, sem pretensiosismos, o que pode levar a julgar a escrita banal, mas a poesia e o cuidado estético estão sempre lá, mesmo quando o autor recorre a linguagem mais gráfica, conforme às personagens retratadas pertencentes a uma classe social de estrato baixo.
Este livro é uma espécie de descida aos Infernos do mito do escritor como ser marginal e liberto das convenções usuais da sociedade. Se bem que o próprio narrador alerte para a falsidade dessas construções míticas, pois o que parece prevalecer sempre é a lei da selva: «O mito do artista que passa fome era um embuste. Assim que nos apercebemos de que tudo não passava de um embuste, ganhámos juízo e começámos a extorquir e a queimar os nossos iguais.» (p. 56).
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)