Com o fim do inverno à vista, e o Carnaval e a Páscoa à porta, há uma tendência natural para se pensar em reservar férias e viagens, uma espécie de “consumo de desforra” por tanto tempo de isolamento na pandemia.
Os números parecem começar a dar tréguas, e os países estão de forma generalizada a aligeirar as restrições em relação a viagens. Ainda assim, é essencial que ao viajar se tenham em atenção as regras sanitárias em vigor em cada destino.
O jurista da associação de defesa dos consumidores DECO, Paulo Fonseca, esclareceu ao Expresso muitas questões-tipo associadas a viagens, e os procedimentos a tomar para acautelar ou resolver problemas, sobretudo nestes tempos de covid. Dúvidas desde os cuidados básicos para evitar burlas em viagens, até saber como os passageiros podem reclamar os seus direitos se a deslocação não correr como previsto.
Quero reservar férias. Devo recorrer a uma agência de viagens?
A DECO aconselha vivamente que sim. Ao reservar férias através de uma agência de viagens, o consumidor fica automaticamente protegido quanto a eventuais problemas, uma vez que estas estão enquadradas pela legislação e têm de cumprir todos os seus requisitos. Significa isto que ficam responsáveis por eventuais problemas durante o percurso associado a transporte aéreo, alojamento ou outros serviços, tendo de responder por isso.
Ao reservar por minha conta e risco na internet, qual a proteção com que efetivamente posso contar?
Ao reservar férias avulso, aplicam-se as regras de cada serviço a que o utilizador recorre, e este fica mais entregue à sua sorte, valendo neste caso “as regras contratuais” de cada uma das entidades, sejam companhias aéreas, hotéis, alugueres de veículos ou outros. “O consumidor tem mais autonomia na escolha, mas fica com a responsabilidade preventiva de fazer uma verificação“ das condições dadas por todas as entidades que prestam cada serviço.
Reservei numa agência ‘online’ e fui enganado. Que garantias posso ter?
Esta é uma ‘zona cinzenta’, pois a net é um mundo globalizado e exige analisar, caso a caso, a legislação aplicável nos vários países, o que se torna uma tarefa hercúlea para quem decide recorrer a serviços online. A situação é menos arriscada se a agência ‘online’ a que recorreu for portuguesa e estiver abrangida pelas leis nacionais, que se aplicam a todas as empresas de viagens, sejam físicas ou virtuais.
“Quando o consumidor procura serviços escolhendo sites de que não se conhece a origem, podem ocorrer burlas” e reclamar direitos neste caso é uma tarefa difícil, adverte o especialista da DECO, pois os mecanismos de reclamação e a respetiva resolução têm a ver com as regras do local de destino. “Há sempre a possibilidade de recorrer ao Centro Europeu do Consumidor, mas não é uma garantia de haver resolução”.
As regras que valem são as que se aplicam a cada país, e por exemplo Portugal tem legislação específica sobre alojamento local, o que oferece mais garantias se algo não correr bem com reservas em plataformas online. A questão é que não há uma legislação única que permita acautelar, a nível mundial, todos os problemas associados a viagens.
“Valem as regras contratuais, as condições das transportadoras, das companhias aéreas, dos hotéis ou alugueres de veículos. Daí a vantagem para o consumidor em escolher um agregador, sem fazer a reserva diretamente.”
Quem faz reservas sem recorrer a uma agência pode contar com seguros que o protejam de todo o tipo de situações?
É difícil, dado que está a contratar diferentes tipos de serviços, e para isso teria de contratar múltiplos seguros, tendo em conta que “é o consumidor que está sozinho a construir a sua própria viagem”.
Quando o viajante reserva diretamente em sites ou plataformas, há inúmeras situações que podem surgir. Por exemplo, no caso de um voo cancelado, o viajante pode até ter solução da companhia aérea, mas terá de lidar com os impactos ao nível de alojamento, se fez a reserva num hotel ou em plataformas como Airbnb ou Booking. Mas pode fazer seguros básicos, que acautelem cancelamentos de voo ou extravio de bagagem, tendo de avaliar bem os riscos que quer ter cobertos, e verificar se estes estão abrangidos pela apólice no local de destino. Atualmente, já existem opções de seguros que contemplam cancelamento por covid-19.
De que riscos fico protegido ao reservar numa agência de viagens?
Para situações como cancelamento de voos, ou grandes atrasos, a agência tem de encontrar alternativas e também acautelar a situação do alojamento no local de destino gerada por este transtorno. Também ficam salvaguardadas situações de extravio de bagagem, ou eventuais problemas no hotel, por exemplo por “overbooking”. O conceito é que a agência é sempre o interlocutor do viajante, seja junto da companhia aérea ou do hotel.
Em casos limite que envolvem insolvência da companhia aérea (ou da própria agência), o consumidor também está salvaguardado. Este tipo de conflito “é muito mais difícil de resolver” sem recorrer a uma agência. Também situações que envolvam necessidade de repatriamento, por exemplo devido a furacões ou outros fenómenos naturais no local de destino, são acauteladas pela agência, que nestes casos tem de encontrar alternativas ao consumidor, sejam voos ou alojamento.
O consumidor só fica protegido pela agência quando compra ‘pacotes’ de viagens?
Não. Sempre que há uma combinação de serviços, por exemplo, a compra de voo mais hotel (o que também pode incluir aluguer de veículo ou reserva de espetáculo), considera-se que é uma ‘viagem organizada’, ficando a agência, segundo a legislação, com a responsabilidade de dar todas as garantias ao consumidor (o que já não se aplica no caso de adquirir um serviço isolado, como apenas um bilhete de avião, tendo para este efeito de haver pelo menos dois serviços contratados).
“Em vez de fazer a reserva sozinho no computador, – voo ou alojamento – o consumidor pode fazê-lo sentado numa agência, podendo optar por companhias ‘low cost’ ou as que preferir, usando até comparadores de preços como a Trivago.” As agências têm evoluído na procura de serviços incorporando as novas ofertas de companhias ‘low cost’ ou de plataformas como Airbnb ou Booking.
Se a pessoa reservar sozinha em companhias como a Ryanair ou plataformas como Airbnb ou Booking, “o risco fica por sua conta”.
Comprei um bilhete de avião numa agência, e passado um mês fui lá reservar alojamento local. É considerada uma viagem organizada?
Não, neste caso são considerados serviços avulsos. Para a reserva ser considerada uma viagem organizada pela agência, é preciso que os serviços (pelo menos dois) sejam efetuados em ato único e na mesma ocasião.
Reservei voo e alojamento no site de uma companhia aérea. Esta responsabiliza-se em caso de problemas?
A experiência da DECO, através de estudos realizados neste campo, aponta que não. “Numa análise que fizemos a companhias ‘low cost’ verificámos como é difícil para o consumidor fazer uma reclamação, e foi uma tarefa hercúlea obter um mero endereço de mail”, adianta o jurista Paulo Fonseca, constatando que as companhias ‘low cost’ “dificultam a resolução de problemas”, e por exemplo numa altura em que houve cancelamentos massivos da Ryanair era difícil aceder a linhas telefónicas ou os clientes entrarem nos ‘chats’.
Tornou-se habitual companhias ‘low cost’ como a Ryanair ou a Esasyjet oferecerem no seu site opções de alojamento ou aluguer de veículos a preços aliciantes, mas em caso de problemas “a companhia aérea não assume qualquer responsabilidade, redirecionando o assunto para outra plataforma, “e o consumidor não tem sequer noção com quem está a contratar”.
É preciso ter consciência que “as pessoas não estão a viajar dentro de Portugal”, e reclamar nestes casos é algo complexo por envolver regras internacionais, tendo em conta o vazio legal generalizado em relação a reservas feitas pela internet.
Todas as agências trabalham com plataformas como Airbnb ou Booking?
Depende muito das entidades com as quais as agências trabalham. Pode haver umas que sim, e outras que não, e é uma questão relevante a levantar pelo consumidor ao procurar este serviço.
Importante é que a partir do momento em que a agência se presta a fazer reservas através de plataformas como Airbnb ou Booking, ou de voos em transportadoras ‘low cost’ como Ryanair ou EasyJet, fica automaticamente responsável por problemas na viagem, uma vez que é ela o interlocutor.
O voo que tinha reservado na agência não estava válido ao fazer o ‘check-in’. É possível?
Não, segundo as leis portuguesas. Provavelmente trata-se de uma agência que opera de forma ilegal, e têm havido casos destes. O consumidor deve certificar-se que a agência a que recorreu tem registo oficial para exercer a atividade, que é público – o RNAVT (Registo Nacional de Agências de Viagens e Turismo), atribuído pelo Turismo de Portugal – sendo esta a primeira garantia que as empresas atuam de forma profissional e cumprem a legislação ao detalhe. No caso de perceber que recorreu a uma agência ilegal, o consumidor pode fazer denúncia à ASAE, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, responsável por fiscalizar este tipo de situações, e reportando os problemas que teve (no site da ASAE pode fazer uma ‘denúncia eletrónica’). Não fica é com acesso aos mecanismos de proteção que teria caso tivesse recorrido a uma agência de viagens oficialmente registada para esta atividade, e em situações em que envolvem reembolso de dinheiro, “já se entra nos chamados casos de polícia”. “Não se trata sequer de uma agência.”
Faz sentido fazer seguros de viagens, mesmo reservando através de uma agência?
Pode haver casos em que faz sentido fazer seguros adicionais, pois a agência não tem responsabilidade por situações imputáveis a cada passageiro. Se forem situações do tipo ‘overbooking’ no hotel, cancelamento do voo ou bagagem extraviada, não é preciso seguro, mas no caso de haver motivos pessoais que impeçam a viagem, como por exemplo ter na véspera um problema de saúde, pode ser importante fazer seguros adicionais.
É de destacar que nos pacotes de viagens organizados por agências, os seguros básicos já estão em regra incluídos. Em todo o caso é fundamental “verificar a apólice e as condições gerais do seguro, para certificar as situações que o consumidor pretende estão de facto seguradas”.
Contraí covid-19 e já não posso fazer a viagem. A agência é responsável?
Não, pois esta situação não deriva de ‘culpa’ da agência, mas de impeditivos de viagem imputáveis ao próprio consumidor, a quem cabe assumir as respetivas responsabilidades.
Neste caso, faz sentido fazer seguros de salvaguarda para situações associadas à pandemia. “A covid-19 é uma doença nova, e as situações epidémicas estavam excluídas dos seguros de viagens. Mas já há seguros que cobrem este tipo de situações e permitem cobrir as respetivas despesas”, refere o jurista da DECO, lembrando que as seguradoras são privadas “e tudo depende de cada seguro e das situações cobertas”.
Testei positivo ao regressar da viagem, no local de destino obrigam-me a fazer quarentena num hotel às minhas custas. A agência é responsável?
Não, mais uma vez trata-se de um motivo imputável ao consumidor, que também tem a possibilidade de se salvaguardar através de seguros específicos para estas situações.
A agência tem apenas a obrigação de “informar o passageiro sobre todas as formalidades necessárias em termos sanitários” em cada local de destino. E se a pessoa falhou por exemplo um teste à covid-19 que tinha de fazer segundo as regras do país onde viajou, ou não preencheu os formulários requeridos, a responsabilidade não é da agência mas do próprio.
Apesar de não haver aqui uma obrigação direta da agência, esta tem “a responsabilidade civil e o dever de colaborar com o consumidor para minorar os prejuízos causados na viagem, como adiar o voo de regresso”, considera Paulo Fonseca, frisando que o essencial “é o consumidor sentir que não está perdido, e tem sempre um ‘companheiro’ que é a agência de viagens”. Isto aplica-se não só à covid-19, mas em situações de “doenças que se podem contrair em destinos mais exóticos”. Quem viaja por sua conta, tem de assumir integralmente este tipo de responsabilidades.
Reservei alojamento em plataformas como Airbnb ou Booking e não correu bem. Como posso reclamar?
Apenas junto destas plataformas, que “em regra não assumem responsabilidade”, segundo adverte Paulo Fonseca, explicando que nestes casos “o consumidor tem pela frente um mero intermediário, alguém que recebe o pagamento e facilita o contacto” – e como já foi referido, caso diferente é se a reserva foi feita por uma agência de viagens.
“Se por um lado há um aumento de novos modelos de negócio, que contribuem para o crescimento do turismo, o reverso da medalha é que trazem mais riscos para o consumidor”, frisa o especialista, referindo que “esta não responsabilização das plataformas tem sido algo muito criticado pela DECO ao longo destes anos”.
“Estas plataformas utilizam muito o ‘rating’, por exemplo da Trip Advisor, mas o ‘rating’ não é solução para resolver problemas ou quando o consumidor quer reclamar” e a legislação existente não conseguiu acompanhar “a evolução do mercado turístico”.
Reclamar nas redes sociais, numa “lógica de denúncia pública e descontentamento”, também “acaba por ser uma voz para outros consumidores”, mas está longe de ser uma garantia de resolução de problemas efetivos durante a viagem.
Recorri a uma agência de viagens legal e ainda assim tive problemas. Como devo reclamar os meus direitos?
No caso de ter recorrido a um associado da Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo (APAVT) fica com acesso a um provedor independente, que garante dar resposta aos casos com celeridade. Estas reclamações podem ser feitas diretamente no site do provedor das agências de viagens.
“A regra é que sempre que há um problema no local de destino, o consumidor deve reclamar imediatamente junto da agência, que tem de dar um contacto local para a sua solução”, destaca o jurista da DECO.
Se a reclamação for feita no regresso ao país, pode ser dirigida ao Turismo de Portugal “e o consumidor tem sempre o apoio da DECO”. A resolução das reclamações varia consoante os casos, sendo estas avaliadas por uma comissão, e se houver lugar a reembolso é automaticamente acionado o Fundo de Garantia de Viagens e Turismo (FGVT), especialmente acionado para estes efeitos, o que também é aplicável no caso limite de a própria agência entrar em insolvência.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL