Dizem os neurologistas que a doença de Huntington é das piores. Alguns comparam-na a uma espécie de esclerose lateral amiotrófica (ELA) junta com uma espécie de Parkinson, porque afeta tanto a parte motora como a cerebral.
Foi no ano em que a pandemia se entranhou no mundo, e era Natal. Joana conduzia o carro pelas familiares ruas de Vila das Aves quando, num simples movimento de um ponto de embraiagem, sentiu que lhe fugiu o pé. “Mexeu-se de uma forma muito clara”, recorda, logo ali invadida pela sensação de não ter sido ela a comandar aquele impulso. Joana conhecia o significado daquele reflexo. Esperava-o, mais cedo ou mais tarde. Mas nem isso preveniu o “pânico” que se apoderou dela, ali, de mãos ao volante, pela incerteza do que a vida lhe traria a partir de então. Era a Huntington a comunicar. Eram os primeiros sintomas da doença que descobriu ter uma década antes.
Entretanto, Joana Silva vendeu o carro. Os movimentos involuntários adensaram-se, mesmo persistindo sempre a dúvida de terem sido ou não intenção sua. “Consigo identificar alguns, principalmente na mão esquerda e no pé esquerdo. Outros irão acontecendo sem que eu me aperceba deles”, reflete, dois anos depois do episódio com a embraiagem, em 2020, que lhe marcou os primeiros sintomas da Huntington, uma doença degenerativa causada por um erro no código genético para a qual não há tratamento nem cura. Dizem os neurologistas que é das piores. Alguns comparam-na a uma espécie de esclerose lateral amiotrófica (ELA) junta com uma espécie de Parkinson, porque afeta tanto a parte motora como a cerebral.
Nessa degradação do cérebro e do sistema nervoso, com o tempo Joana perderá o controlo sobre alguns movimentos, terá mudanças de humor e a capacidade cognitiva ficará comprometida. Numa fase avançada, sabe que deixará de conseguir falar, andar, comer e respirar sozinha.
É um abalroamento. Um abalo perturbador saber-se acabar assim. É o fim da “síndrome da imortalidade”, como lhe chama. Mas aos 41 anos o discurso sobre a doença transparece, além de ponderado, muito resoluto. “É o confronto inevitável com a realidade da doença. Há dias bons. Há outros que são verdadeiras batalhas interiores para tentar viver com a certeza daquilo que a doença trará, do que virá a seguir”, exterioriza, sem tabus.
É uma aprendizagem motivada pelo trauma do final de vida do pai, também ele doente de Huntington, que lhe passou o erro genético (porque os filhos têm 50% de probabilidade de ter a doença). O pai terminou a vida dependente, demente e hostil para com os outros. “Eu não quero chegar ao estado a que o meu pai chegou, alimentado a papas e cheio de dores. Isso, sim, foi doloroso. O meu pai sofreu horrores, agonizou como um animal”, conta Joana, já de testamento vital escrito e ideias fixas sobre o uso da lei da eutanásia, se ela for novamente aprovada na Assembleia da República e pela primeira vez promulgada pelo Presidente da República.
Já pensou muito na morte, não esconde. Se a ideia de eutanásia sempre lhe pareceu bem-vinda, certo é que desde que se descobriu doente de Huntington, aos 30 anos, aprofundou a ideia de morrer quando deixasse de viver para apenas estar viva, servil da dor e a depender de terceiros para as mais pequenas rotinas. E a decisão solidificou-se de forma inverosímil para quem olha de fora e não consegue calçar-lhe os sapatos: Joana decidiu que quer morrer.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL