Vários brasileiros residentes em Portugal passaram por sucessivos problemas em viagens para o Brasil, depois de recorrerem a uma alegada agência com sede em Lisboa, que se apurou não ter registo oficial para exercer a atividade, apesar de operar na capital portuguesa há mais de dois anos.
A empresa tornou-se popular junto da comunidade brasileira por vender passagens aéreas baratas para o Brasil e por facilitar o pagamento a prestações. Porém, ao fazer o check in, os clientes constatavam que os bilhetes não estavam válidos ou sequer pagos pela agência, sendo-lhes dadas à última hora alternativas para seguir caminho vários dias depois, sem a segurança de poderem concluir viagens que geralmente incluíam várias escalas. Todos os contactos entre os clientes e a agência eram feitos por WhatsApp e os pagamentos exclusivamente feitos na aplicação MB Way.
Em causa está a agência de viagens Renata & Oliveira, com sede na Rua da Misericórdia, e que se publicita no Facebook e no Instagram como Viagens Radicais RVT. Trabalha como ‘braço’ em Portugal de uma empresa no Brasil, a Clj Viagens e Turismo, a quem os visados recorriam através de mensagens de WhatsApp quando surgiam os problemas antes do embarque.
“Esta não é uma agência de viagens, é uma empresa ilegal que diz aos seus clientes que é uma agência de viagens, sem o ser”, frisa Pedro Costa Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Agências de Viagens e Turismo (APAVT), lembrando que a atividade do sector é “muito regulada” e que o “primeiro ato” é ter o Registo Nacional de Agências de Viagens e Turismo (RNAVT) certificado pelo Turismo de Portugal. “Se a empresa não o tem, não é uma agência de viagens”, resume.
O Turismo de Portugal confirmou que esta agência não tem registo oficial para poder exercer atividade no país, remetendo o processo para a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), a quem cabe fiscalizar este tipo de casos. Contactada pelo Expresso, a ASAE informou que a empresa foi já este ano alvo de um processo de contraordenação por não ter RNAVT: o inquérito está em fase de instrução e impede a atividade até à respetiva conclusão. Ficou apurado tratar-se da operação de uma agência de viagens do Brasil, que, para ter instalações abertas em Portugal, precisa do respetivo registo, tendo agora a empresa o direito a apresentar a sua defesa.
Este é o 17.º processo de contraordenação instaurado pela ASAE desde o início de 2021 a agências de viagens, por motivos vários, incluindo a falta de registo oficial, e de que resultaram 277 fiscalizações ao sector.
Além de agência de viagens, a Renata & Oliveira – que funciona na Baixa lisboeta desde setembro de 2019 – promove-se na internet como prestadora de uma série de serviços, tais como entrega de comida ao domicílio, circuitos turísticos a pé, usando veículos automóveis ou “descaraterizados” a partir da plataforma TVDE (vulgo Uber), a par de reservas de hotel, restaurantes, alugueres de veículos, visitas a museus e “acontecimentos teatrais”, feiras ou congressos, entre outros.
O Expresso contactou a agência por várias vezes mas não conseguiu falar com a proprietária, que estará ausente do país. Segundo informação telefónica transmitida por uma funcionária, a empresa não tem RNAVT por ser uma “prestadora de serviço”. Segundo a lei portuguesa, só agências de viagens registadas e companhias aéreas podem vender bilhetes de avião, não estando contemplada nesta atividade a figura de “prestadores de serviço”. Sobre este caso, a APAVT é clara: “Operam na mais pura das ilegalidades”.
Família impedida de passar o Natal no Brasil voltou atrás a meio da viagem: “Estávamos esgotados”
Uma família de brasileiros que reside em Portugal, composta por quatro pessoas, contou ao Expresso a experiência que teve com esta agência. Adquiriram em fevereiro de 2021 passagens de Lisboa para Curitiba, com escala em São Paulo, sendo a partida a 6 de dezembro de 2021 e o regresso a 7 de janeiro de 2022. A viagem (muito ansiada, já que não iam há três anos ao Brasil) totalizou mais de dois mil euros, tendo sido pagos 709 euros de entrada e o resto em dez prestações mensais.
Na véspera, a agência enviou uma mensagem de WhatsApp informando que o voo no dia seguinte, de Lisboa a São Paulo (pela Air Europa) tinha sido cancelado devido à covid-19, e seria reposto a 8 de dezembro. Para apurar o que se tinha passado, a família foi ao Aeroporto de Lisboa e constatou junto da companhia aérea que o voo não tinha sido cancelado, os bilhetes é que não tinham sido pagos. “Foi mentira atrás de mentira”, alegam.
Conseguiram que lhes fossem passados bilhetes para São Paulo, com escala em Madrid, num voo da Air Europa que saía de Lisboa a 8 de dezembro. Na véspera, voltaram a receber mensagem de que não seria “possível embarque”: “Tínhamos estragado tudo, éramos os culpados de a viagem não se realizar porque tínhamos ido à companhia aérea confirmar se o bilhete era válido, o que tinha feito com que a companhia ficasse desconfiada e tivesse pedido documentos para comprovar que não havia fraude”.
Foram-lhes propostas duas opções: voos para o Brasil a 12 de dezembro ou o reembolso do dinheiro. Tendo optado pela devolução, a família recebeu minutos depois a informação de que já poderiam viajar a 8 de dezembro, mas ao chegar ao ‘check in’ os bilhetes não eram válidos. Conseguiram in extremis voar até Madrid: “Fomos os últimos a entrar na porta”, contam.
Chegados a Madrid, após um dia inteiro no terminal, não conseguiram prosseguir a viagem até São Paulo, e muito menos para Curitiba. Tiveram de passar uma noite na capital espanhola, com a promessa de voos para o dia seguinte, que depois constataram não estarem também válidos nem darem segurança para o regresso. “Decidimos então comprar bilhetes para Lisboa por nossa conta e regressar. Estávamos esgotados”.
No primeiro pedido de reembolso, foram insultados por mensagem: “Disseram que tiveram prejuízos connosco, e que eu era besta”. Ao irem presencialmente à agência foi-lhes devolvido o dinheiro pago, inclusive das despesas em Madrid. “Isto não apaga o que passámos, o desfazer das férias com que sonhámos o ano todo para revermos a nossa família no Brasil”, concluem.
“Percebemos que o nosso não foi o primeiro caso, e que esta agência se aproveita da vulnerabilidade dos emigrantes brasileiros: coloca-os nos voos que encontra a preços mais baratos, não respeita o que fica acordado, aproveita-se de muitas vezes não terem formas de fazer queixa, por medo ou simplesmente por não saberem a quem se dirigir sobre o que fazer”.
Voos adiados, bilhetes sem validade ao embarcar. “A nossa saúde mental ficou muito abalada”
Também Luana (nome fictício de uma cliente, que não se quer identificar) recorreu à mesma agência, “indicada por amigos”, no objetivo de comprar passagens para a sogra, para dia 1 de outubro, de Lisboa a São Paulo e prosseguindo para Cuiabá, através da companhia Azul. Os bilhetes enviados pela RVT ficaram a 299 euros. “O preço estava muito bom”, reconhece.
No momento do check in, os bilhetes não estavam válidos por “pagamento cancelado” do lado da agência. “A primeira desculpa é que o voo para Madrid tinha sido cancelado” e a alternativa apresentada era uma viagem vários dias depois ou a compra de um novo bilhete. A situação ainda se repetiu, até que a sogra de Luana conseguiu viajar a 6 de outubro “depois de muita luta e muita ameaça”.
Luana garante que não se volta a meter noutra situação igual, apesar dos preços baratos e da facilidade de pagamento. “A nossa saúde mental ficou muito abalada. Fiquei uma semana para conseguir recuperar”, confessa.
Maria Teresa (outro nome fictício) também se assume “enganada” pela agência, à qual comprou passagens “com bastante antecedência, em abril”, para ir em julho de Lisboa para São Paulo, prosseguindo para Maringá.
Ao chegar a Madrid para uma escala no voo da Air Europa, surgiram os primeiros problemas: em vez de esperar 45 minutos, teve de ficar o dia todo no aeroporto. Antes de apanhar o voo para São Paulo, recebeu a indicação por telefone de que “tinha de ir de outra forma para Maringá”, porque o voo estava cancelado. “Na realidade, a agência não tinha sequer comprado o voo de São Paulo para Maringá”, acusa.
Como resultado o irmão teve de fazer mais de 1200 quilómetros, contando ida e volta, para a levar e ao filho até Maringá, num custo estimado em 900 reais [cerca de 150 euros], do qual não teve “nenhuma devolução”. No regresso, em agosto, “o problema foi maior”: o bilhete não estava válido e, no balcão da Air Europa, referiram-lhe que a reserva estava feita para outubro. Nessa noite, teve de dormir em casa de um familiar e acabou por conseguir viajar no dia seguinte, através da TAP. A viagem ficou em 795 euros, mas Maria Teresa preferia “ter pago mais e ir em tranquilidade”.
O que mais destaca é “a falta de humanidade da agência”: “Foi horrível a forma como me trataram, e ao procurarem alternativas para os bilhetes não válidos era como se me estivessem a fazer um favor”.
Conselhos da APAVT para evitar problemas em viagens
Não ‘comer gato por lebre’ – ou seja, não confundir uma agência de viagens “digna desse nome” com empresas que operam de forma ilegal – é o primeiro conselho da APAVT. Caso contrário, e por muito baratas que as viagens possam parecer, os consumidores ficam sujeitos a vários problemas e sem poder recorrer a um apoio.
“O primeiro passo é que as pessoas se certifiquem que a empresa detém o Registo Nacional de Agências de Viagens e Turismo (RNAVT), que é público e vem na página do Turismo de Portugal”, frisa Pedro Costa Ferreira, presidente da APAVT.
Num ‘segundo degrau de confiança’, Pedro Costa Ferreira lembra que as agências associadas da APAVT oferecem aos consumidores acesso a um Provedor de viagens: trata-se de “um centro de arbitragem reconhecido pela DECO, que trata os processos com muito maior celeridade que o que é habitual nos tribunais”.
Casos como os anteriormente relatados deixam um “sabor amargo” à APAVT, que frisa que, a par dos consumidores, as agências de viagens oficiais “são as primeiras a sentirem-se lesadas” por estes procedimentos. O presidente da associação exorta a ASAE a estar de olho nos que “a exercem ilegalmente”, prejudicam as pessoas e dão mau nome ao sector.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL