Quando o Presidente russo deu o toque de partida para a “operação militar especial” da Rússia na Ucrânia, a 24 de fevereiro, garantiu que quem tentasse travar o país ou criasse “ameaças” enfrentaria “consequências nunca antes vistas na sua história”. Não falou em armas nucleares, mas estava implícito. Este domingo foi mais longe e anunciou ter dado ordens às suas chefias militares para colocarem as forças nucleares do país em alerta máximo. Há muitas questões neste momento – desde logo quanto ao tipo de armas nucleares que podem ter sido preparadas para ser utilizadas e ao alcance destas – mas a principal é saber como vai a NATO reagir face a este anúncio, diz ao Expresso João Vieira Borges, major-general do Exército e professor no Instituto Universitário Militar.
Antecipando uma resposta da Aliança Atlântica para breve, depois das negociações entre os Governos russo e ucraniano que vão decorrer esta segunda-feira na fronteira entre a Ucrânia e a Bielorrússia, na região do rio Pripyat, João Vieira Borges explica que há vários cenários em cima da mesa, sendo que o “pior” seria a NATO criticar a decisão de Putin quanto ao armamento nuclear. “Se a NATO considerar grave o anúncio do Presidente russo, significa que está a dar uma resposta”, tornando plausível a hipótese de vir a responder na mesma medida, isto é, colocando as suas forças nucleares também em alerta máximo.
O desfecho dessa eventual escalada do conflito é incerto, mas o major-general não descarta a possibilidade de a Rússia utilizar efetivamente armas nucleares contra os seus inimigos a Ocidente. “Com autocratas no poder, há sempre esse risco. É reduzido, é certo, mas existe. As armas estão lá, na Rússia, portanto não devemos descartar essa hipótese.” Há, contudo, outros cenários menos bélicos, com a NATO “a considerar que não se trata de um assunto” ou “a não se pronunciar sequer sobre o mesmo, remetendo-se ao silêncio”. Não seria de esperar, nessas circunstâncias, que o anúncio de Vladimir Putin tivesse grandes consequências.
NATO pode dar resposta “semelhante”
Para Carlos Branco, major-general na reforma, a NATO pode mesmo vir a responder de forma “semelhante” à Rússia, preparando também as suas armas nucleares para o caso de ser necessário recorrer às mesmas. “Tudo é inverosímil até acontecer. Há menos de uma semana eu achava que era impossível a Rússia invadir a Ucrânia, e acabou por acontecer. Na véspera da Guerra da Bósnia, 90% da população dizia que era impossível a guerra acontecer, e aconteceu.”
Carlos Branco, que é também investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, não descarta igualmente a hipótese de a Rússia utilizar armas nucleares, mas só num cenário tão “improvável” quanto o de termos tropas americanas ou outras forças da NATO em território ucraniano, combatendo ou ajudando a combater o Exército russo. “Não seriam lançados mísseis internacionais, como é evidente, mas poderiam ser lançadas outras armas nucleares. Há peças de artilharia que lançam munições nucleares. Não teria de haver, necessariamente, lançamento de mísseis.” Mas Carlos Branco reforça: “É uma hipótese muito remota.”
O Presidente russo justificou a decisão de colocar forças nucleares em alerta máximo com a postura e “declarações agressivas” dos países do Ocidente. “Os países ocidentais não só estão a tomar medidas hostis contra o nosso país na esfera económica, como também altos funcionários dos principais membros da NATO fizeram declarações agressivas em relação ao nosso país”, disse Putin durante a reunião com os seus chefes militares, segundo a televisão russa.
A existência de uma ameaça pode ser um pretexto para apertar a ofensiva na Ucrânia ou para tomar medidas mais radicais, mas pode também ser real – ou pelo menos percecionada por Putin como real. Carlos Branco lembra que, na sequência do ataque de hackers a vários organismos governamentais russos, nomeadamente o ministério da Defesa, foi equacionada a possibilidade de haver uma retaliação “de âmbito cibernético” por parte da Rússia, tendo a NATO admitido a hipótese de dar uma resposta ao abrigo do artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte, segundo o qual um ataque contra um dos países que integram a Aliança “é considerado um ataque contra todos”. Ou seja, a NATO deixou em aberto a hipótese de enviar tropas para a Ucrânia, o que constitui uma ameaça para a Rússia.
O Governo de Putin também se pode sentir ameaçado face à possibilidade de a NATO enviar tropas para a Ucrânia. Trata-se, reitera, de uma hipótese “extremamente improvável”, mas “os russos podem ter informações de que não dispomos”. “É preciso incluir este ponto na lista de razões que podem justificar esta subida de tom por parte de Putin”, diz o investigador do IPRI, explicando que ter as forças militares em alerta máximo significa precisamente que “ocorreram determinados acontecimentos que justificam o emprego de determinado tipo de armamento”, o que inclui “armas convencionais e nucleares”. Segundo a doutrina militar russa, “quando não se consegue derrotar o inimigo de forma convencional, há que passar para um patamar nuclear tático”, acrescenta, referindo, contudo, que esta estratégia russa é “fundamentalmente defensiva”.
Partir à frente nas negociações com a Ucrânia
A chave para interpretar o anúncio de Putin está, no entender de João Vieira Borges, nas negociações com o Governo ucraniano que vão ter início esta segunda-feira, 28 de fevereiro. “O Presidente russo quis partir de uma posição de força para as negociações. Ao longo dos últimos dias, perdeu a liberdade de ação que tinha, com toda a pressão por parte da comunidade internacional e o envio pela primeira vez de uma força de reação rápida por parte da NATO, e entendeu que devia recuperá-la, transmitindo uma mensagem forte.” Por outro lado, mostra com este anúncio “que está preparado para fazer face a qualquer ataque da NATO.”
Segundo o major-general do Exército, é impossível saber que armas podem vir a ser utilizadas pela Rússia, que tem “mais de seis mil ogivas nucleares” com “vários níveis de intervenção” – nível tático, operacional e estratégico, explica. Os níveis vão progredindo consoante o alcance das armas. “Temos as armas que estão nos canhões e que são utilizadas no teatro de operações, as armas que estão mais distantes desse teatro, entre cerca de 50 a 100 quilómetros, e as armas com capacidade para alcançar distâncias ainda maiores, como os mísseis intercontinentais.” Desconhece-se que armas podem ter sido colocadas em alerta máximo e “nem mesmo a NATO saberá por enquanto”. “Através de imagens captadas por satélite, será prestada máxima atenção a possíveis movimentações de armas e viaturas.”
O major-general do Exército lembra ainda o discurso feito por Putin a 24 de fevereiro, quando anunciou o início de uma “operação militar especial” na Ucrânia, apontando, em específico, a última parte desse texto. “Putin disse que quem se opusesse às suas ações iria ver armas que nunca viu na vida. As únicas armas que nunca vimos em vida são as nucleares.”
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL