Uma pequena aldeia portuguesa desapareceu sob as águas há mais de duas décadas, dando lugar a um dos maiores empreendimentos hidráulicos da Europa. O projeto prometia progresso e desenvolvimento para a região, mas trouxe também desafios inesperados para a comunidade que ali vivia. Entre eles, a surpreendente manutenção de impostos sobre terrenos e habitações que já não existem fisicamente, mas que continuam a constar nos registos fiscais.
A construção de uma barragem obrigou ao realojamento de uma comunidade inteira em 2002, alterando para sempre a vida dos seus habitantes. Entre as localidades afetadas, destacou-se uma em particular, cuja identidade e história continuam a marcar a memória coletiva. A Aldeia da Luz, outrora situada na margem esquerda do Guadiana, foi submersa pelas águas. A decisão de submergir a localidade não foi pacífica e, mais de duas décadas depois, os impactos desta mudança ainda se fazem sentir, não apenas na identidade da comunidade, mas também nas obrigações fiscais dos antigos proprietários.
A aldeia, com origens seculares, era composta por uma comunidade dedicada à agricultura e à pastorícia. Durante décadas, os habitantes viveram com a incerteza de um projeto que os forçaria a abandonar as suas casas. A concretização da barragem trouxe consigo a necessidade de realojamento da população. Como solução, foi construída uma nova Aldeia da Luz a cerca de dois quilómetros do local original, replicando, sempre que possível, a traça arquitetónica e os espaços comunitários.
Contudo, nem tudo foi resolvido com a mudança. Apesar da submersão das propriedades, muitos moradores continuaram a receber cobranças de IMI sobre terrenos e habitações que ficaram debaixo de água, devido a questões burocráticas que mantiveram os imóveis nos registos fiscais como se ainda existissem. Esta situação tem gerado indignação e protestos, agravando a perceção de injustiça entre os habitantes.
O processo de adaptação à nova realidade revelou-se complicado e cheio de obstáculos. Embora a nova aldeia tenha oferecido melhores infraestruturas, como escola e centro de saúde, muitos moradores sentiram que o espírito comunitário e a identidade da antiga povoação se perderam. A situação agrava-se com a persistência de obrigações fiscais sobre bens que deixaram de existir fisicamente, um problema que tem sido alvo de contestação nos últimos anos, tal como avança a Rádio Renascença.
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Para muitos habitantes, a nova aldeia representa um espaço que, apesar de moderno, nunca chegou a substituir totalmente o sentimento de pertença que existia no passado. O realojamento ofereceu novas condições de vida, mas também alterou as dinâmicas sociais. As ruas amplas e organizadas contrastam com a disposição mais espontânea da antiga povoação, onde a proximidade entre as casas fortalecia os laços comunitários e facilitava a convivência diária.
Ao longo dos anos, várias promessas de investimento para dinamizar a nova aldeia foram anunciadas, mas muitas não se concretizaram. Projetos turísticos e incentivos económicos foram apontados como formas de revitalizar a localidade, contudo, a realidade mostra que a desertificação continua a ser uma ameaça. Com menos jovens e cada vez mais casas desocupadas, a Aldeia da Luz enfrenta o desafio de manter viva a sua identidade num território onde a história ainda pesa sobre a memória coletiva.
O impacto ambiental da barragem também foi significativo. A albufeira inundou vastas áreas agrícolas, alterou ecossistemas e modificou o microclima da região. Estudos indicam que espécies endémicas desapareceram, enquanto a humidade aumentou, criando um ambiente distinto do que era habitual no Alentejo.
Por outro lado, a reserva de água impulsionou a agricultura de regadio e fomentou o turismo náutico. No entanto, para os antigos habitantes da Aldeia da Luz, o progresso veio com um custo inesperado: a continuidade do pagamento de impostos sobre propriedades inexistentes.
A memória da antiga aldeia permanece viva através do Museu da Luz, criado para preservar a identidade e história da povoação. O espaço reúne fotografias, testemunhos e uma maquete detalhada da aldeia submersa. Ainda assim, para muitos antigos moradores, a mudança foi mais do que física: foi uma rutura emocional difícil de ultrapassar.
Duas décadas depois, a nova Aldeia da Luz mantém-se como um símbolo de progresso e sacrifício. Apesar das promessas de desenvolvimento, a população tem vindo a diminuir, e o destino da localidade segue incerto.
Entre a nostalgia do passado e as oportunidades do futuro, os habitantes continuam a viver entre dois tempos, tentando conciliar a herança da aldeia perdida com a realidade da nova. Enquanto isso, os moradores continuam a lutar para que o fisco reconheça uma realidade inegável: a aldeia onde viviam há mais de 20 anos já não existe.
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