“Alberto Caeiro e Ricardo Reis foram criados por Pessoa para o seu combate à “igreja de Roma”
Foi amor à primeira vista. Andava ainda no liceu em Faro, cidade onde nasceu e viveu até aos 17 anos, quando conheceu Fernando Pessoa.
Depois, já na universidade, a paixão pelo poeta foi crescendo ao ponto de, no seu exílio em Paris, o ter abraçado num compromisso que dura já uma vida.
Teresa Rita Lopes há muito que conquistou um lugar na história da literatura portuguesa, sendo considerada uma das maiores especialistas da vida e da obra poética de Fernando Pessoa.
Hoje, reparte os seus dias entre Almada, onde reside, e o sul dos seus sonhos, num triângulo que inclui Faro, Alcoutim e Cacela.
RS – A Teresa Rita Lopes é uma algarvia de gema. Nasceu em Faro, numa casa térrea da rua de S. Luís, mas não chegou a conhecer o seu pai, não é?
TRL – O meu pai morreu três meses antes de eu nascer. Nunca chegaram a saber do que é que ele tinha morrido, mas a minha avó de Alcoutim, mãe do meu pai, dizia que ele tinha nascido com “cabeça de água”, aquilo a que hoje chamam de hidrocefalia. A minha mãe só esteve 10 meses casada e dizia que o meu pai me tinha adivinhado quando aviltrava que havia de nascer uma menina.
RS – Imagino, portanto, que foi recebida e cuidada como uma menina mimada!
TRL – A minha infância foi sempre rodeada de mil cuidados, com muito receio que eu herdasse a desconhecida doença de meu pai e, desde que me lembro das coisas, recordo-me de ser olhada como se eu tivesse qualquer coisa de sobrenatural.
RS – Os seus avós paternos eram de Alcoutim e do lado de sua mãe, a sua avó era de Cacela e o avô era de Messines…
TRL – A minha avó de Cacela, que era muito santanária – como se diz no Algarve – uma vez chamou lá a casa um homem que era sacristão e diziam vidente… Lembro-me ainda de ele olhar para mim e dizer: “ai esta menina tem um futuro muito importante à frente dela”. Juntava isto ao tratamento especial que recebia até aos oito anos, tanto mais que era filha única, sobrinha única apesar de haver quatro tios, e era também neta única. De maneira que eu podia ter saído uma criancinha insuportável, uma menina mimada, porque era mimada. Andava de casa em casa, e isso também me deu algumas vivências muito especiais.
RS – E isso vê-se na maneira viva como descreve esses quadros da sua meninice…
TRL – Sim, é talvez por isso que hoje falo tanto das pessoas da família: da mãe, dos avós, dos tios, das tias e guardo deles uma particular afeição e conhecimento de como eram. De todos, mesmo de todos, porque deles tenho memória fotográfica.
RS – A tia Emília, por exemplo, de que fala muito!…
TRL – A tia Emília era professora primária, católica, mas acreditava em espiritismo. Lembro-me que uma vez, a minha tia organizou uma sessão mediúnica lá em casa mas eu percebi que ela não estava a levar o espírito a sério. No final, como era costume, dava-se qualquer coisa à vidente e, a minha tia, puxando de uma nota, disse assim: “Tome lá para o espírito comprar rebuçados”. De outra vez, a tia Emília pôs o menino Jesus de cabeça para baixo na retrete, de castigo, porque ele não atendeu o pedido que ela tinha feito ao colocar a cautela por baixo dele para lhe dar sorte. Como a cautela saiu branca, ela tratou de lhe dar o devido castigo como era hábito na época.
RS – A sua infância e, digamos a sua vida, porque nunca se desligou do Algarve, repartiu-se por um triângulo formado por Faro, Alcoutim e Cacela, não foi?
TRL – Sim eu digo isso no meu livro “O sul dos meus sonhos”, pois essas são as terras e os cenários, ainda hoje, dos meus sonhos. Ia mais a Faro e Cacela do que a Alcoutim.
RS – E em Cacela tem a honra de lá ter o nome de uma rua..!
TRL – Tenho essa honra, sim e estou bem acompanhada por um poeta árabe e dois outros que cantaram Cacela, como a Sofia e o Eugénio de Andrade. Foi uma surpresa que me fizeram, gostei muito!
RS – E nas memórias que vai escrevendo foi recuperar as redacções da Teresinha…
TRL – A Maria Teresinha, era o nome que me davam quando eu era menina. Comecei a fazer essas redacções num livro para todas as idades que se chama “Jogos, Versos e Redacções”, publicado quando os meus cinco netos eram muito novinhos. Um dia recomecei porque as pessoas gostaram e incentivaram-me a escrever mais.
RS – A Teresinha, pode dizer-se que é uma sua heterónima?
TRL – De certo modo, mas não chega a ser heterónimo à maneira pessoana porque ela tem as mesmas atitudes do que eu, só que numa linguagem diferente.
“Andam por aí a dizer parvoíces, classificando Pessoa como um escravocrata. Isso é de uma burrice total!”
“Imprimiu na sua tipografia Ibis o jornal “O Povo Algarvio”, de Loulé, que se assumiu na capa como republicano e anticlerical”
RS – E quando é que descobriu o Pessoa, qual foi o primeiro poema que leu dele?
TRL – Eu descobri Pessoa e Florbela Espanca ao mesmo tempo. Gostei logo do Álvaro de Campos e ainda hoje é aquele de que mais gosto. O Álvaro de Campos e a Florbela andavam sempre na minha pasta. Estou convencida de que a Florbela teve muita influência no Álvaro de Campos. Por isso é que ele é relativamente desbocado e desinibido: Pessoa era extraordinariamente inibido. Não me lembro qual foi o primeiro poema que conheci dele, mas li todo o Álvaro de Campos, da Ática, que é apenas um terço do Álvaro de Campos. Mas ainda assim, foi o suficiente para eu ficar completamente rendida.
RS – No seu exílio político em Paris, apercebeu-se de que, em meados dos anos sessenta, Pessoa era um desconhecido no mundo académico e intelectual dos franceses…!
TRL – Sim, e quando decidi fazer a minha tese de doutoramento sobre o Fernando Pessoa, o meu “patron”, René Étiemble, “Papa” das literaturas comparadas, disse-me: “Olhe eu não conheço o seu autor mas vou aprender consigo”. Para ver o desconhecimento que existia, ainda lhe conto outra: o José Augusto Seabra, também exilado, abordou o Roland Barthes, para seu orientador de uma tese sobre Fernando Pessoa, e pediu-lhe uma carta de recomendação para se candidatar a uma bolsa à Gulbenkian. Ele escutou-o, distraidamente, e escreveu então a carta a declarar que aceitava ser o orientador da tese de J. A. Seabra sobre “quatro poetas portugueses”: É claro que ele não a enviou – e não obteve a bolsa!
RS – E quando é que veio abrir o baú do poeta?
TRL – Só em 1969 fui a casa da irmã do poeta, Henriqueta Madalena, detentora do baú, que vivia na Avenida da República, em Lisboa. Meses antes tinha ido à biblioteca da Gulbenkian em Paris, e o seu director, o professor Veríssimo Serrão, disse-me que o espólio de Pessoa ia ser vendido para a Inglaterra. Fiquei em pânico! Era nessa altura ministro da Educação de Salazar, o professor José Hermano Saraiva, irmão do meu companheiro, António José Saraiva. Falei imediatamente com ele que expôs o assunto ao irmão. O Hermano Saraiva mandou imediatamente arrolar o espólio, impedindo-o assim de sair do país. Ordenou ainda que uma equipa de bibliotecárias fosse para casa da irmã do Pessoa fazer a catalogação do material e um breve resumo de cada um dos papéis do poeta.
RS – E foi assim que chegou aos escritos do baú?
TRL – Sim, por intervenção depois de Veiga Simão, o novo ministro da Educação, agora de Marcelo Caetano, contra a vontade dos burocratas do ministério. Comprei uma máquina de fotocopiar enorme, e lá fui para casa da mana do poeta. Fotocopiei o mais que pude com o argumento de que era para a minha tese que concluí com o título “Fernando Pessoa e o Drama Simbolista”. Estive lá durante muito tempo, fiz uma excelente relação de amizade com a irmã do Pessoa, e foi aí que eu me dei conta de que os livros que nós conhecíamos editados pela Ática, eram muito incompletos, e senti que tinha absolutamente de fazer novas edições.
RS – E em 1990 publica então “Pessoa por conhecer”!
TRL – Exatamente, no ano do centenário do nascimento de Álvaro de Campos, 1990, eu quis mostrar, em dois grandes volumes, que as pessoas ainda não conheciam o Pessoa.
“Os heterónimos e personagens, não emitem as opiniões do Pessoa, exprimem-se, contrariando-se uns aos outros, apoiam-se e desapoiam-se como numa peça de teatro”
RS – Falou em Álvaro de Campos. Alguma razão especial para Fernando Pessoa o ter colocado a nascer em Tavira?
TRL – É importantíssima essa história de Tavira, porque Pessoa fez de Álvaro de Campos, um cristão novo, como todos os seus antepassados de nome Pessoa. No cemitério de Tavira está uma lápide na sepultura do seu tio avô, onde se lê “Jacques Pessoa livre pensador”, como se designavam os maçons. O que encarna precisamente a identidade de Pessoa, é o Álvaro de Campos. Só que é um Pessoa extrovertido… Daí Álvaro de Campos dizer que Pessoa “era um novelo enrolado para dentro”… O que ele fez, foi esse novelo desenrolar para fora. Álvaro de Campos é o que acompanha mais de perto Pessoa durante toda a sua vida. E não se pode nunca perder de vista, quando se está a ler qualquer texto, quem é que disse isto ou aquilo. Os heterónimos e personagens, criados pelo poeta, não emitem as opiniões do Pessoa, exprimem-se, contrariando-se uns aos outros, apoiam-se e desapoiam-se como numa peça de teatro. Escrevi desde sempre poesia e teatro, e creio que me interessei pelo Pessoa por ele ter essa dimensão dramática.
RS – Por isso é que surgem as polémicas acerca do Pessoa esclavagista, por exemplo, não é?
TRL – Claro, as pessoas ainda não entenderam isso e andam por aí a dizer parvoíces, classificando-o como um escravocrata. Isso é de uma burrice total! É preciso perceber uma coisa muito simples, da qual temos todos que partir sob pena de não entendermos nada do Pessoa: ele é o dramaturgo que toda a vida disse ser; muita gente põe na boca de Pessoa o que é dito, por exemplo, por António Mora, um indivíduo que ele colocou a viver nos tempos da Grécia e Roma antigas onde a escravatura era considerada uma coisa normal. Esclavagista era Antonio Mora e não o Fernando Pessoa. Um não tinha nada a ver com o outro.Aliás, muito antes dos direitos humanos começarem a andar na boca das pessoas, já o Pessoa era contra a homofobia e a pena de morte!
RS – Mas, na nossa conversa, esquecemo-nos do Álvaro de Campos, em Tavira..!
TRL – Espere, oiça isto que é indispensável para se perceber o poeta. Antes de inventar os heterónimos em 1914, o Pessoa já se tinha organizado para combater a igreja de Roma. E isto vem muito a propósito do Álvaro de Campos descender dos judeus de Tavira. Fernando Pessoa não se assumiu como um judeu, mas essa identidade era extraordinariamente importante para ele. Quando percebeu as suas raízes judaicas, levou toda a sua vida – não mudou rigorosamente nada – a combater a igreja católica. Metade desses textos estão inéditos e a primeira “militância” do Pessoa, digamos assim, foi contra a igreja de Roma. É neste quadro que ele inventou, antes dos seus heterónimos, o tal “esclavagista” António Mora, personagem da Grécia antiga que tinha por função a reconstrução do paganismo ou a criação do “novo paganismo português”.
RS – Portanto, Mora nasceu antes do Caeiro, Campos e Ricardo Reis..!
TRL – Sim, Pessoa primeiro entreviu no António Mora e só depois o Alberto Caeiro e Ricardo Reis, que nasceram para sustentar esse combate religioso. As pessoas não sabem ler… o Caeiro era “o reconstrutor da sensibilidade pagã”, está escrito assim por Pessoa com todas as letras. Nasceu para isso! E o Ricardo Reis nasceu para “reconstrutor da estética pagã”. Portanto, estes dois heterónimos foram criados para esse seu combate à “Igreja de Roma”. Isto nunca foi dito.
RS – Mas voltando a Tavira e ao Álvaro de Campos…
TRL – Ele teve um avô e um tio avô em Tavira. Eram liberais e estiveram os dois na guerra contra os absolutistas e o Pessoa visitava regularmente os seus parentes de Tavira. E conto-lhe mais: Pessoa, aos vinte e poucos anos, montou a tipografia Ibis com a herança que tinha recebido da avó paterna, tendo imprimido, entre 12 de Março e 12 de Junho de 1910, um jornal chamado “O Povo Algarvio”, de Loulé, que se assumia na capa como republicano e anticlerical, cujo director era Paulo Madeira, que terá sido procurado por indicação da sua familia do Algarve. Isto digo eu, porque como é que ele, em Lisboa, ia conhecer em Loulé, o director de um jornal que tal como a família de Tavira, era republicano e maçon? Foi certamente por indicação dos seus familiares “fidalgos e judeus” que se relacionavam com esse Paulo Madeira. Portanto, o Pessoa estava numa relação de militância republicana e numa cruzada de toda a sua vida contra o que ele chamava a “Igreja de Roma”.
RS – Eu sempre pensei que ele era monárquico…
TRL – As pessoas também pensam isso erradamente. Na sua militância republicana, ele alinhou com os seus parentes de Tavira e, além da relação com o director do jornal de Loulé que o comprova, até deixou um manuscrito, militantemente republicano, chamado “O Fósforo” que nunca foi publicado. Portanto, começou por se assumir republicano e embora mais tarde se tivesse definido, interiormente, como monárquico, considerou sempre que isso era inviável em Portugal.Era, pois, ideologicamente uma personalidade dividida e aquilo que melhor o define, é a sua adesão ao sidonismo e ao conceito de um presidente-rei, que mais não é do que uma conciliação entre duas faces aparentemente contraditórias.
RS – Para final de conversa, quando é que temos o tal livro que disse estar a organizar sobre o “Pessoa Todo”?
TRL – Ó homem! Se acredita e sabe rezar, faça-o para que eu ainda dure um certo tempo porque ainda há muito de Pessoa a dar a conhecer.
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