Três meses depois da eclosão da guerra na Ucrânia, os ânimos entre as elites de Moscovo voltaram a alterar-se. É o que adianta a “Meduza”, órgão de comunicação independente russo expulso da Federação Russa, que cita fontes familiarizadas com as movimentações no interior do Kremlin. No início de março, essas fontes reportaram que a decisão de Vladimir Putin de dar início a uma guerra “horrorizou” a maioria dos altos funcionários do Kremlin, incluindo representantes ministeriais, que temiam que as sanções ocidentais arruinassem as suas carreiras. Pouco tempo depois, no entanto, uma “onda de sentimentos patrióticos” sobrepôs-se. Em abril, já várias figuras proeminentes da política russa diziam publicamente que o objetivo era lutar “até o amargo fim”.
No entanto, três meses volvidos, o pessimismo voltou a abalar os alicerces do Kremlin. Uma fonte próxima ao gabinete do primeiro-ministro, Mikhail Mishustin, garante à “Meduza” que já “não será possível viver como antes” e que o “desenvolvimento” foi, para já, suspenso, apesar de o comércio com a China e a Índia ainda estar assegurado.
As autoridades do Kremlin já não reconhecem que haja um cenário possível em que o Presidente russo dê por encerrada a ofensiva militar mantendo um alto índice de aprovação na Rússia. Alguns representantes do Governo têm mesmo discutido estratégias para “uma retirada com dignidade” desde as primeiras semanas após o início da invasão, mas as autoridades ainda não chegaram a uma conclusão.
INSATISFAÇÃO GENERALIZADA
Uma fonte próxima do Kremlin descreveu um clima de profundo descontentamento das elites russas em relação às decisões de Putin: “Não há quase ninguém que esteja feliz com Putin. Empresários e muitos membros do gabinete estão descontentes com o facto de o Presidente ter iniciado esta guerra sem pensar na dimensão das sanções. A vida normal com essas sanções torna-se impossível.”
Outras duas fontes com conhecimento das operações do Governo de Putin confirmaram esta análise, assim como outras duas pessoas ligadas ao gabinete do primeiro-ministro.
Fontes próximas do Kremlin disseram que a perspetiva dos defensores “hawkish” (política mais popular entre as elites da Rússia) é a de que, como a Rússia já se envolveu nesta guerra, não há forma de a “suavizar agora”. Pelo contrário, é necessário fazer “prego a fundo”, com uma “ampla mobilização de reservas militares e com uma atitude de ‘jogar’ para vencer”, de preferência capturando até a capital ucraniana, Kiev.
O Kremlin, no entanto, não quer para já declarar uma mobilização total. No início de abril, fontes com conhecimento da política interna do Governo de Putin disseram à “Meduza” que mesmo os russos que dizem apoiar a “operação militar especial” na Ucrânia estão relutantes em voluntariar-se para combater.
A PREOCUPAÇÃO DOS EMPRESÁRIOS
Os principais empresários da Rússia também estão descontentes com as ações do Presidente russo e criticam-no por não ter dado passos reais em direção à paz. As dificuldades económicas aumentam a cada dia. “Os problemas já são notórios e vão aparecer por todos os lados a meio do verão: nos transporte, farmácias e até agricultura. Ninguém pensou na escala [das sanções]”, disse uma fonte próxima do Governo à “Meduza”, acrescentando que ninguém dentro do Kremlin calculou as consequências de os países europeus boicotarem completamente o petróleo e o gás russos.
Porém, Vladimir Putin “não quer pensar” nas dificuldades económicas que são “óbvias para a maioria das autoridades do país”, e continua “especialmente relutante quanto a atribuir esses problemas à guerra na Ucrânia”, disseram duas fontes ligadas ao Kremlin à “Meduza”.
Putin já tinha expressado esta ideia em público. Ao líder da administração regional de Kaliningrado, o líder russo disse que não culpasse a guerra pelos problemas de abastecimento da região: “Não há necessidade, neste caso de vincular, isso à nossa operação militar especial. Também sofreram uma recessão em 2020 e 2021, e houve um declínio notável na construção. A operação militar no Donbas não tem absolutamente nada a ver com isso.”
DISCUTIR A SUCESSÃO
Fontes ligadas ao Kremlin e ao Governo federal ouvidas pela “Meduza” dizem que falar sobre “o futuro depois de Putin” é cada vez mais comum entre as elites russas. “Não é que queiram derrubar Putin agora, ou que estejam a orquestrar uma conspiração, mas há um entendimento ou um desejo de que ele não governará o Estado talvez num futuro próximo”, explicou uma das fontes. “O Presidente estragou tudo, mas ainda pode consertar tudo, chegando a algum acordo [com a Ucrânia e o Ocidente]”, refere outra fonte, admitindo que alguns funcionários do Kremlin estão a discutir secretamente os possíveis sucessores de Putin. A lista incluirá o autarca de Moscovo, Sergey Sobyanin, o vice-presidente do Conselho de Segurança Nacional e ex-Presidente Dmitry Medvedev e o um dos líderes de gabinete, Sergey Kiriyenko.
Sergey Kiriyenko tem mantido conversas regulares com Putin acerca da economia e o Donbas. Apesar de o ex-primeiro-ministro da Rússia ser apontado como um dos hipotéticos sucessores de Putin, as fontes ouvidas pela “Meduza” revelam que as elites russas reconhecem que apenas um grande problema de saúde poderia afastar Putin do cargo. Uma fonte ligada ao Governo de Moscovo ilustra mais claramente a posição dos que cercam o líder russo: “As pessoas estão enojadas, mas ainda mantêm os seus empregos, e ajudam o país a enterrar-se mais na guerra.”
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL