Sobre Júlio Pomar, talvez o nome mais indispensável das artes plásticas portuguesas, uma constante omnipresença criativa desde o neorrealismo até aos dias de hoje, parece que tudo estava escrito sobre a obra multifacetada, o ativismo político dos anos 1940 e 1950, o seu trabalho entre Paris e Lisboa, o gigantismo da sua obra, pois ele foi o nº1 do neorrealismo, desestabilizou o traço e a forma, moldou cerâmica e vidro, fez escultura e assemblage, murais, retrato, tapeçaria, ilustração, cenografia, foi o nº1 da cooperativa Gravura, ei-lo sempre juvenil e insaciável, o mais contemporâneo dos nossos artistas contemporâneos; mas nem tudo estava escrito, faltava o pintor no tempo, houvera um passado, uma militância e um confronto sem tréguas entre a sua arte e um regime ditatorial. Esse quase foi ocupado por um ensaio de grande precisão e rigor. Júlio Pomar confrontou a ordem então estabelecida, foi o fogueiro das vanguardas estéticas que atiraram os cânones nacionalistas para o caixote do lixo. Foi ele, acima de tudo.
A historiadora Irene Flunser Pimentel, no início de 2017 foi convidada pelo Atelier-Museu Júlio Pomar a fazer uma reflexão que, de algum modo, destapasse os processos, mecanismos e meandros da censura política exercida à data em Portugal. Assim nasceu este precioso ensaio em que o artista é sistematicamente inserido no contexto político e histórico do Estado Novo de Salazar e Marcelo Caetano. Como diz a historiadora na nota prévia: “O que aqui se pode ler é uma descrição dos contextos político, social e cultural da vida de Júlio Pomar, dando importância às suas facetas de crítico e historiador e teorizador de arte, a começar pelo neorrealismo na pintura, nos anos 40 e parte da década de 50, e a terminar em 1974”. É este o propósito a que se acomete “Júlio Pomar, O Pintor no Tempo” por Irene Flunser Pimentel, Atelier-Museu Júlio Pomar / Sistema Solar (Documenta), 2017.
Júlio Pomar nasceu com a Ditadura Nacional, a historiadora enquadra os eventos sobre a ascensão do regime de Salazar, o ingresso de Pomar nas escolas de belas-artes de Lisboa e Porto, os seus primeiros e consagrados quadros neorrealistas, os seus escritos, a ideologia do neorrealismo, nomeadamente a partir de 1945, ano em que participa na Missão Estética de Férias de Évora e dá profunda atenção ao trabalho de outros contemporâneos. O confronto com a arte oficial do Estado Novo é dado pelas Exposições Gerais de Artes Plásticas, patentes na Sociedade Nacional das Belas-Artes, iniciadas em 1946, quando se iniciou a Guerra Fria. Pomar ativíssimo, detido pela PIDE, escreveu nas revistas, agindo no seio do MUDJ, pinta O Almoço do Trolha, a polícia política manda destruir o mural do cinema Batalha.
A partir de 1948, com o despontar do surrealismo, os dois movimentos estéticos separam-se. Pomar multiplica-se no vidro, na cerâmica, na decoração, descobre a gravura. São anos difíceis para a oposição política, estalam conflitos em que a estética e a ideologia perdem o unanimismo. Funda-se a cooperativa Gravura, é uma porta aberta para uma nova geração de artistas que veem os seus múltiplos em casa dos associados: Bartolomeu Cid, Hogan, António Areal, Alice Jorge, Pomar, e tantos outros, até Almada Negreiros colabora. A diversidade de intervenções de Pomar parece imparável: jarras e garrafas coloridas de Pomar e Alice Jorge na loja Rampa; entre 1957 e 1959, Pomar com Alice Jorge trabalham um mural de azulejos na Avenida Infante Santo, em Lisboa; sopram ventos de liberdade com a campanha de Humberto Delgado, aproximam-se ventos tumultuosos com a descolonização e com as revoltas estudantis, a luta armada pela independência das colónias portuguesas africanas obriga o regime de Salazar a recentrar-se; Pomar parte para Paris mas a historiadora vai pontuando o acervo de acontecimentos que vão alterando a vida interna e o isolamento de Salazar; Pomar anda lá e cá, dedica-se ao retrato, alicia-se por novos temas, sem nunca abandonar o figurativismo, na sequência de experiências que desenvolvera ainda nos anos 1950, vai decompondo formas, o nome Júlio Pomar já possui reconhecimento internacional. A historiadora anota exposições e novos percursos de Pomar a partir de 25 de abril.
Em jeito de síntese, a autora lembra que Pomar se envolveu na atividade política clandestina, da elaboração teórica cultural, fez-se pintor e desenhador fora dos cânones escolares, sentiu a mão longa repressiva da polícia política, não se exilou mas partiu para Paris e nunca fugiu às discussões sobre os grandes princípios da estética. Por exemplo num questionário que lhe foi feito em 2014 diria que a alternativa entre “erudito e popular” remetia para uma falsa contradição e um engano. O popular era “resultado de uma cristalização e sintetização de saberes” em “construções depuradas pelo tempo” que eram “formas extremamente eruditas”. Afirmou não haver conteúdo sem forma e que toda a “cor que tem traço e todo o traço é uma cor” da mesma forma que eram inseparáveis o espaço e o tempo. Pomar lembrou que o ser humano precisa de dispor de tempo, sem o qual não haveria espaço ou oportunidade para mais nada.
Uma bela homenagem ao nome cimeiro das artes plásticas portuguesas, situando o homem a agir no tempo e o tempo a abrir caminho para as ousadias do seu génio, irrequieto e imparável, tal como o conhecemos desde os anos 1940.