A ausência de uma maioria absoluta por parte da Aliança Democrática nos resultados das eleições legislativas deste ano, trouxe a debate possíveis especulações de entendimentos entre outros partidos, acompanhado do receio desta margem tão curta em relação ao segundo, o PS, na sequência do que aconteceu em 2015, pela maioria de esquerda.
A vergonha da tentativa do CHEGA de travar a eleição do Presidente da Assembleia da República, exibindo o novo “poder” que parte do eleitorado lhe concedeu e a aproximação do dia 25 de Abril criaram o cenário perfeito para o lançamento do livro Identidade e Família, promovido pelo Dr. Passos Coelho.
A hipocrisia de berrar, através deste livro, o direito à tradição, ao mesmo tempo que se mostram apologistas de abafar e reverter o direito à diferença das minorias é evidente
As páginas de Identidade e Família, que contam com a contribuição de 22 coautores, dão corpo a uma conceção social conservadora, em que são repudiadas atuais ideias de identidade de género, do conceito de família, da eutanásia, da procriação medicamente assistida e do estatuto da mulher, sobre o mote daquilo que nomeiam “luta pelo bem”.
Espelha-se, como ponto de partida, uma certa preocupação ao ataque do conceito tradicional de família, apontando o dedo a iniciativas legislativas oponíveis ao Estado, retratado como cúmplice deste movimento.
Numa primeira linha, aborda-se a ideologia de género como culpada de exercer pressão forçando o indivíduo a uma desvinculação familiar, rejeitando a “sabedoria” dos antepassados e retratando a instituição da família como opressora. Estes “adversários da família”, como lhe chamam, defendem que o género é constituído pela identidade psicológica ao mesmo tempo que negam a identidade biológica, sem bases científicas. Argumentam a frequente associação destas disforias de género a patologias psiquiátricas, reprovando o “relativismo moral” e a “indiferença” que a sociedade contemporânea padece. Parece-me que o cerne deste grande problema, tal como os autores apontam, não é a escola pública “promover” estes novos paradigmas junto dos mais novos, mas educá-los para as realidades destas minorias, estimulando a inclusão e o respeito de crianças de famílias “tradicionais” para crianças de famílias com outras orientações ideológicas e sexuais. É crescente a inquietação que sinto, ao virar de cada página, face à repulsa receosa e à urgência de supremacia que esta visão conservadora e radicalista transparece.
Nesta sequência, defendem que os casais homossexuais devem preferir a adoção à procriação medicamente assistida, mas com que fundamento? O facto de indicarem esta sugestão a casais homossexuais e não também a heterossexuais que não podem, em alguns casos, ter filhos, não me parece ser fruto de uma preocupação com as crianças que, pelas mais diversas razões, não puderam crescer com os seus pais biológicos. É não querer que duas pessoas do mesmo sexo contrariem a natureza biológica e divina que os impede de procriar. Para além da reprovação que demonstram ao recorrer a estes métodos de “esvaziamento, um tanto infantil, da moral”, “nem tudo o que é cientificamente possível é eticamente desejável.”
Numa segunda linha, apontam que a promoção do “divórcio na hora” é causa do aumento das famílias de coabitação, monoparentais e reconstituídas e efeito do desinteresse do Estado em robustecer a família. Este “ataque à família tradicional” é uma estratégia política comum a todas as tiranias, de acordo com os autores. A título pessoal, tenho as minhas dúvidas que a complicação dos processos de divórcio através de alterações legislativas diminuísse situações em que os casais pretendem uma rutura na vida conjugal. Para efeitos estatísticos e formais, seriam claramente menos, mas significaria também colocar uma venda aos olhos de quem vê estas desejadas dissoluções e que não pode, nem deve impedir.
Ao mesmo tempo que acusam o paradigma moderno de retratar uma mulher cisgénero ou homem heteronormativo como menos autênticos do que uma pessoa multigénero e de ser intolerante a opiniões contrárias ao politicamente correto, sob ameaça de um “cancelamento público”, criticam a legalização do aborto e da eutanásia, invalidando essa opção perante um sofrimento intolerável. A hipocrisia de berrar, através deste livro, o direito à tradição, ao mesmo tempo que se mostram apologistas de abafar e reverter o direito à diferença das minorias é evidente. Considero deveras interessante toda a narrativa construída à volta de um cenário em que as minorias pretendem engolir a sociedade, como se o seu apelo ao respeito e à aceitação fosse, na verdade, uma imposição do modelo a adotar pelos restantes “dividindo a sociedade em microsegmentos desde a raça à preferência sexual”.
Numa outra linha, abordam o estatuto da mulher no que toca ao direito a preferir ser dona de casa permanecendo no seio do lar a escolher laborar, retratando essa opção não como um castigo-efeito da desigualdade de género, mas como uma verdadeira expressão de vontade feminina e maternal. Se, por um lado, é verdade que é insustentável para uma família, atualmente e na esmagadora maioria dos casos, optar, seja o pai ou a mãe, voluntariamente pela dedicação exclusiva à família, educando sem necessidade de recursos a creches ou infantários, também é um facto que isso já não espelha propriamente a mulher do século vinte e um. Sugerem, neste seguimento, a atribuição de um salário para o pai ou para a mãe que assim optasse, tornando-o exequível. Se isto parece indiciar, de uma forma, um certo retrocesso àquela que foi a luta por um equilíbrio de género, também, de outra forma, é retratar uma possibilidade de execução deste direito que hoje já não é praticamente exequível.
Reconheço o meu engano, quando pensava que este livro não me iria surpreender mais. Ao virar a página, dou de caras com o questionamento da “estranheza” da convicção de que a mulher ao longo dos séculos foi sucessivamente oprimida e desprezada. E presenteiam-me com dois “grandes” argumentos: por um lado, as mulheres sempre foram a maioria da população, “o que torna insólito que sejam dominadas pela minoria masculina” e por outro lado, é que as senhoras, “alegadamente tiranizadas, nunca se queixavam nem manifestavam o seu desagrado”. Ignoremos todos juntos, portanto, os índices de subordinação e dependência financeira das mulheres aos homens de antigamente, aliado à ausência da consagração legal de um crime e violência doméstica – somente plasmado no Código Penal de 1982 e que antes incutia um dever de obediência ao marido. Não nos parece isto motivo suficiente para o silêncio de revolta feminino?
O Identidade e Família surge no contexto da missão do Movimento Ação Ética (MAE) que proclama promover iniciativas cívicas de abordagem, de reflexão e de contributo em torno das questões axiológicas. Torna-se claro a influência religiosa de que padece, pela contribuição de três sacerdotes (um deles da prelatura de Opus Dei), um cardeal, um bispo e outros autores com ligações nesta linha. Cita-se várias vezes o Papa numa referência a uma batalha e crise cultural.
Acredite-se que estas ideias de “adulteração do conceito de casamento, fazendo nele incluir uniões de pessoas do mesmo sexo, a destruição da biparentalidade como base do vínculo da filiação, através da adoção ou da procriação medicamente assistida por parte de pessoas solteiras ou casais do mesmo sexo, a transformação do aborto e da eutanásia em direitos, numa total desproteção das situações mais frágeis da vida humana e em menosprezo da família” incorporam políticas conservadoras de retrocesso que eu insisto que pretendem persuadir os menos perspicazes a apoiar um entendimento PSD-CHEGA em prol de um governo mais à direita cego de princípios liberais. É uma tentativa de aproveitamento de certas causas modernas que, numa nota infeliz, atingiram exageradamente certos limites desaprováveis, com a pretensão de nos fazer esquecer a necessidade delas, numa vertente mais moderada e consciente.
Por conseguinte e às portas da celebração dos cinquenta anos do 25 de Abril desconsidere-se este Livro Vermelho do Conservadorismo que mancha a direita e que mais acredito que empurrará o eleitorado receoso para o extremo partidário oposto.
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