O seu discurso fala mais pelo que não diz do que por aquilo que afirma serem os seus propósitos. Em quase tudo deixa a porta entreaberta, seja no que respeita a um regresso à vida política ativa, seja no tocante a uma eventual candidatura à Câmara de Loulé. Afirma que pagou um preço alto por ser regionalista e considera que Cavaco Silva foi um ingrato.
Entrevista: Ramiro Santos – Jornalista | Fotos: Ana Pinto
P – Para quando o regresso do Dr. Mendes Bota à política portuguesa? Que funções lhe reserva o futuro em Lisboa?
R – Já aprendi, por experiência própria, que não se deve dizer “desta água não beberei”, nem a empregar a palavra “nunca”. Fiz 65 anos, e tenho 42 anos de descontos, numa vida de trabalho sempre muito intenso, sem descanso. Desde muito novo, tinha estabelecido os 62 anos de idade como data limite para cessar a vida ativa e ter tempo para fazer coisas que foram sendo adiadas, ou para tentar compensar a família por tanta ausência (agora já tenho dois netinhos para ajudar a cuidar). Esse limite já foi ultrapassado em três anos.
P – Não será demasiado cedo para o “descanso do guerreiro”?…
R – Só posso dizer que estou numa fase de reorganização da minha vida pessoal. Calculo possuir entre seis a oito mil volumes por classificar na minha biblioteca. É uma paixão. Há muitas toneladas de papel que fui acumulando ao longo de quarenta anos de vida pública, dezenas de milhares de jornais e revistas, um arquivo gigantesco que carece de ser revisto e expurgado do que não tem importância nenhuma, salvaguardando o que é interessante do ponto de vista da minha vivência. Tenho sido um acumulador de papel e souvenirscompulsivo, preciso de libertar os meus espaços. E desejo ter tempo para a agricultura da amizade, intervir civicamente, ser mais solidário, fazer mais desporto, assistir a espetáculos de cultura, viajar por puro prazer, desacelerar o ritmo de vida e tratar da saúde. No fim da revisitação ao meu arquivo, começarei a escrever, para transmitir tantos episódios das experiências que tive a felicidade de usufruir, depois de trabalhar e viver em quatro países diferentes (Bélgica, França, Itália e Portugal). Este programa para o resto da minha vida não sei se poderia comportar um regresso à atividade política…
“Nunca entrei nos bastidores da política lisboeta e paguei um preço por isso, por ser regionalista e por ser do Algarve”
P – Não vai negar que o “bichinho da política” está lá dentro de si, que existe uma chamada interior e externa para regressar ao ativo?
R – Sabe, a política tornou-se demasiado tóxica. Regressar à política significa encontrar gente boa, mas também conviver com muita malformação, interesseirismo e mediocridade que tornam a nossa vida muito amarga, por vezes, até infernal. Não estou interessado em percorrer de novo esse caminho. Já dei o meu contributo, muito ou pouco, bom ou mau, cada qual julgará. Poderia ter ido mais longe? Talvez. Fala-me em Lisboa? Fiquei sempre muito agarrado ao Algarve, nunca entrei por opção própria nos bastidores da política lisboeta, nos círculos de cumplicidades, nas organizações secretas ou nos almoços dos grandes interesses. Deitei sempre cedo e cedo ergui. Fui um lobo solitário e paguei um preço por isso. E por ser regionalista. E por ser do Algarve. Contribuí para a eleição de vários líderes do PSD, mas isso não me serviu de elevador político. O apoio das bases, dos eleitores, Loulé, depois Algarve, foram sempre o meu suporte, não o topo. Mota Pinto faleceu precocemente. Cavaco Silva foi um ingrato. Marcelo demitiu-se no auge. Menezes saiu de repente. E Passos Coelho, que é o último grande político do espaço do centro direita, um homem que venceu duas eleições, retirou-se depois de ter prestado o serviço patriótico de salvar Portugal da bancarrota. Tenho muito para contar escrevendo, um dia, se lá chegar…
P – Diz que Cavaco Silva foi ingrato consigo. Quer explicar melhor?
R – Isso é uma história triste que não vou focar nem aqui, nem agora. Para quem estiver interessado recomendo a leitura do livro “A Ascensão ao Poder de Cavaco Silva”, do jornalista Adelino Cunha, e compreenderá a minha participação nesse processo.
“Regressar agora (Câmara de Loulé), é uma hipótese pouco provável, para meu descanso e para descanso de quem lá está”
P – E no Algarve? Fala-se que poderá ser candidato à presidência da Câmara de Loulé, um cargo que já desempenhou no início do seu percurso político nos anos oitenta…
R – Tem-me surpreendido o número de pessoas que pelas mais diversas vias me tem feito chegar um apelo nesse sentido. Bondade delas, mas tenho uma perfeita noção das realidades. O poder local estabelecido em Loulé tem muita força. Gere um orçamento anual de quase duzentos milhões de euros. Estou afastado da política local e regional há muito tempo. Provavelmente, mais de metade das pessoas que conheceram a minha ação já cá não estão para se lembrar, e as novas gerações nem sabem quem fui. O tempo não volta para trás nem a água passa duas vezes debaixo da mesma ponte. Regressar agora é uma hipótese pouco provável, para meu descanso e para descanso de quem lá está.
P – Foi deputado em oito legislaturas diferentes. Como vê o Algarve hoje?
R – Fui parlamentar durante 24 anos na Assembleia da República, no Parlamento Europeu, no Conselho da Europa e na UEO. O Algarve foi sempre a minha bandeira, o combate à violência contra as mulheres o que de melhor fiz. Sinto que faltam hoje à região personalidades políticas com carisma como foram Luís Filipe Madeira, Cabrita Neto, José Vitorino, Carlos Brito, Macário Correia…
P – E Mendes Bota, não figura nessa lista?…
R – Esse é um juízo que não me compete fazer. Mas é verdade que houve períodos na minha vida em que fui conhecido de Norte a Sul do País e sempre identificado como “defensor do Algarve”, o que muito me honrou…
“Tenho uma visão optimista do pós-pandemia. Acredito que se vai registar um boomna procura de viagens, e o Algarve será um dos destinos principais”
P – Considera que o Algarve não tem sido bem defendido? Como vê a situação económica e social do Algarve nos dias que correm?
R – Conheço a situação difícil que vivem as empresas e os trabalhadores do Algarve. Mas tenho uma visão otimista do pós-pandemia. Acredito que se vai registar um boomna procura de viagens, estadias, restaurantes, bares, discotecas, concertos, lojas, centros comerciais, e o Algarve será um dos destinos principais. As pessoas estão fartas de máscaras, distanciamento, regras de conduta, proibições, e estão sedentas de liberdade, afetos, reencontros. A questão é saber quantos estabelecimentos do lado da oferta sobreviverão à crise atual e estarão abertos para receber essa explosão do lado da procura. Um dos entorses do Algarve sempre foi uma excessiva dependência dos setores do Turismo e Serviços, e isso não foi corrigido. E mesmo com a renovação do setor primário, com a introdução de novas culturas, a criação de empregos destina-se sobretudo às revoadas de imigrantes coletores sazonais. Há dias a CCDRA abriu candidaturas para projetos de diversificação da atividade económica com uma dotação de um milhão e meio de euros. Isso dá para quê?…
P – Que outras debilidades encontra no Algarve de hoje?
R – O Parque das Cidades continua um gigante adormecido, o Estádio do Euro é o maior elefante branco do Algarve. O Hospital Central do Algarve, pelo qual nos batemos há duas décadas, continua esquecido nas decisões de Lisboa. Faro continua sem um metro de superfície a ligar ao aeroporto. A Regionalização está metida na gaveta desde o referendo de 1998 e a maquilhagem das CCDR’s não mudou o essencial. Ainda não é clara qual a parcela do Plano de Recuperação e Resiliência, a chamada “bazuka”, que caberá ao Algarve. Ou que é feito dos anunciados 500 milhões de euros de um plano específico para a Região.
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