Filho, vais seguir o caminho das pedras, mas se é isto que queres e que te dá sentido à vida, segue o teu caminho
Teve uma educação católica e republicana, mas aos 21 anos já era militante comunista. Herdou do pai, deportado político em Moçambique, a coragem para enfrentar os perigos e os abismos do risco. Esteve preso mais de oito anos e dez de clandestinidade. Sofreu a tortura e o isolamento, a delação e a perfídia. Aos 87 anos, Carlos Brito, dirigente histórico do PCP, braço direito de Álvaro Cunhal, revela uma inteligência lúcida e uma memória prodigiosa. Apesar dos anos e do cansaço, sobra-lhe ainda energia para outros desafios.
Entrevista de Ramiro Santos – Jornalista
RS – Nasceu em Moçambique para onde o seu pai foi deportado pelos militares do golpe 28 de maio de 1927 que abriu as portas à ditadura de Salazar. Foi em Lourenço Marques que os seus pais se conheceram, não é?
CB – Sim, foi lá que se encontraram porque o meu avô, o pai de minha mãe, Luis Jesus Brito, que era de Tavira, foi para Moçambique integrado nas tropas de Mouzinho de Albuquerque para realizar acções de pacificação daquela colónia. Ele participou nessas campanhas que conduziram à prisão, em Chaimite, do régulo Gungunhana, um chefe tribal com grande influência junto das populações locais. Foi ainda ele que escoltou o prisioneiro até Lisboa.
Depois das campanhas, o governo monárquico de então convidou os militares que tinham participado nas campanhas, e que tivessem mais do que a instrução primária, a regressarem a Moçambique para serem integrados na administração colonial. O meu avô estava nessas condições e aceitou, acabando por fazer uma carreira que o levou até quase ao topo da hierarquia.
RS – E onde encontramos aqui a sua mãe e o seu pai?
CB – A minha mãe, Maria Fernanda Brito, era de Tavira, e como disse, o pai dela também, e a sua mãe, Silvéria Rosa, minhã avó, nasceu em Alcoutim. A minha mãe, que se divorciara entretanto, foi ter com os pais a Lourenço Marques e foi lá que conheceu o futuro marido, Alfredo Nordeste, de Aveiro, meu pai. Foi assim que se encontraram e fizeram vida em conjunto. Tiveram três filhos – eu e duas irmãs – mas não chegaram a casar.
O meu avô, terminada a carreira colonial regressou ao continente ou à metrópole, como se dizia então, mas o meu pai, deportado político, era um homem muito namoradeiro e a minha mãe teve medo de ficar em África com três filhos e com um companheiro que era bastante incerto. Resolveu, por isso, vir com os pais.
RS – O Carlos Brito nasceu em Moçambique e veio para Portugal com três anos….
CB – Primeiro para Lisboa e depois para Alcoutim, porque a minha avó materna era de lá e tinha uma ligação profunda à sua terra. Após um curto período em Lisboa, acabámos por vir para Alcoutim morar em casa dos meus avós, porque aqui sempre viveríamos mais desafogados financeiramente. Dez anos depois, o meu pai, tendo ficado em África, regressou em 1946, no pós guerra, beneficiando de uma amnistia para presos políticos, que Salazar teve que tomar para mostrar uma nova imagem aos aliados vencedores da guerra.
RS – E foi em Alcoutim que fez o ensino primário. E depois?
CB – Depois, ou ia para Faro ou para Lisboa, porque só havia ensino secundário nas capitais de distrito. A família avaliou a menos onerosa decisão, tendo acertado com os meus padrinhos de nascimento, que também eram de Tavira, as condições para ficar em casa deles e continuar os estudos em Lisboa.
RS – O ensino secundário já o fez, portanto, em Lisboa…
CB – Sim, primeiro na escola Veiga Beirão onde fui colega de Luis Filipe Costa. Ambos partilhámos durante quatro anos o quadro de honra até irmos os dois para o Instituto Comercial de Lisboa.
Os professores tinham, por isso, muita consideração por nós e a dada altura houve um processo de perseguição a um deles, por desconfiarem que era comunista. Então, a direcção da escola, pressionada pela Pide, nomeou um professor que fez o inquérito e que nos perguntou o que pensávamos dele, como é que ele dava as aulas e outras perguntas, tentando saber se falava em luta de classes, de mais valias e coisas assim. Respondemos que não e que no livro de estudo é que estavam essas palavras. Deduzimos logo que o inquiridor fosse um enviado da PIDE. O professor perseguido era Esteves Belo e foi secretário de Estado, depois do 25 de Abril.
A minha mãe mudou-se para Caxias quando eu fui para Caxias e para Peniche quando eu estava em Peniche, sempre para estar perto de mim
RS – Durante a guerra civil espanhola, estava em Alcoutim e era ainda um miúdo de seis ou sete anos. Teve consciência do que se passava do lado de lá do rio? Não falavam disso em casa?
CB – Eu tive uma educação católica e republicana. O meu pai, advogado e militar, tinha sido deputado da República e a minha mãe sempre nos criou no respeito por ele e pelas suas ideias republicanas. O meu avô também era republicano e o que eu apanhava em relação à guerra civil espanhola era o que ia escutando em casa e na rua.
RS – Mas para além das conversas apercebeu-se de alguma coisa?
CB – Aqui em Alcoutim foi muito sentida. Aqui ouviam-se os fuzilamentos. Do local onde hoje é a pousada da juventude, via-se o cemitério do lado de lá e os cortejos fúnebres. Foi uma grande desgraça. Tenho a memória viva de que os fascistas de Franco demoraram muito tempo a chegar aqui ao Guadiana, porque havia uma guerrilha muito activa em Rio Tinto que lhes barrava o caminho. Só chegaram quase no fim da guerra civil e vi o desfile das falanges nas ruas de Alcoutim a cantar o “Cara al Sol”. Depois tomámos conhecimento da miséria tremenda em que a Espanha ficou, cheia de fome e na maior desgraça.
RS – Alcoutim, nunca lhe serviu de refúgio nas suas andanças de clandestinidade?
CB – Não. Era desaconselhado. Eu ia era para o norte onde não se lembravam de me encontrar e ajudava os outros.
RS – Detendo-me ainda na sua estada em Alcoutim, na infância e nas férias grandes de Verão. Guarda ainda outras memórias?
CB – Alcoutim para mim e para a minha geração de amigos, foi por esses tempos uma escola de cidadania. Criámos uma associação transformada em Grupo Desportivo que ainda existe e iniciámos as festas de Alcoutim, com o objectivo de arranjar fundos para a construção de um hospital sub-regional onde o cirurgião João Dias, um benemérito e amigo do povo, pudesse operar. Nessa altura fazer uma cirurgia era coisa só para ricos que iam para uma Casa de Saúde em Faro, Portimão ou Tavira. A nossa vila transformou-se num verdadeiro centro de saúde. Uma parte da população alugava quartos a doentes que aqui se instalavam aguardando a sua vez.
RS – Em 1951, estava com 17 anos quando entrou para o MUD juvenil…
CB – Sim, mas o MUD não era um movimento comunista, sendo embora muito influenciado pelo PCP. Mas em Lisboa fiz amizade e convivi com o António José Saraiva, o Keil do Amaral e o Alexandre O’Neill. Foi aí que descobri o Jorge Amado e li o Processo Histórico, de Juan Clemente Zamora e Marx. Ao mesmo tempo que frequentava uma biblioteca marxista de velhos operários, organizámos uma biblioteca para troca de livros num grupo onde estava também o Carlos Paredes e o Vasco Granja, que tinha uma tabacaria no Rossio e era lá que íamos buscar os livros que vinham de França e passávamos uns aos outros.
RS – Nessa altura era já membro activo do MUD e acabou por ser preso pela primeira vez em Caxias, aos 20 anos…?
CB – Sim, era responsável por uma sede do MUD, numa casa que aluguei em nome de Alfredo, meu segundo nome. Fui preso em 1953, quando um grupo de antifascistas foi esperar Maria Lamas ao aeroporto para impedir que ela, que vinha de Moscovo, fosse presa. Acabámos por ser presos também e enviados para Caxias onde cumpri dois meses de cadeia.
RS – E quando é que decidiu aderir ao PCP?
CB – Quando saí da cadeia em 1954, passados uns dias sou abordado por José Dias Coelho, pintor, depois assassinado pela PIDE, recrutador do partido, que me convidou para entrar no PCP.
RS – Aceitou sem consultar a família, por exemplo?
CB – Falei com o meu pai e ele disse-me: “filho, vais entrar no caminho das pedras e condicionar ou perder a tua liberdade, mas se é isso que queres e te dá sentido à vida, segue o teu caminho”.
RS – E Aljube, em que circunstâncias se dá a sua detenção pela polícia política, a primeira das duas vezes que passou por lá?
CB – Já era militante e funcionário do PCP, há dois anos. Estava em Lisboa e já estava preparado para entrar na clandestinidade completa, mas a PIDE chegou primeiro, estava eu a almoçar com a minha companheira…
RS – Quem era a sua companheira, posso saber?
CB – Era uma algarvia de Portimão…
RS – …chamada…
CB – Chamada Deolinda… e pronto, volto a ser preso no restaurante.Estávamos a almoçar e começámos a perceber que a PIDE estava a vigiar-nos, que o restaurante estava enxameado de PIDES. Quando íamos a sair, deram-nos voz de prisão e prenderam-nos aos dois na altura
RS – Foi então para Aljube… Quanto tempo lá esteve?
CB – A primeira em 1956, estive sete meses. Fui à tortura do sono e mandado depois para as celas, onde estive cinco meses em isolamento total, que era uma coisa anormal estar tanto tempo!. Só ao terceiro mês consegui que entrasse um jornal. Até os cordões dos sapatos me tiraram para não me enforcar. Numa das sessões da tortura do sono, o inspetor, Boim Galvão, disse: “Ah não falas? – então, vais apodrecer nas celas do Aljube.”
RS – E visitas não tinha?
CB – Tinha visitas da minha mãe e da minha mulher, que entretanto, tinha sido posta em liberdade. Um dia fomos selecionados oito, todos funcionários do PCP, e transferidos, para uma enfermaria desativada, no último andar do Aljube. Verificámos que era possível fugir dali, mas era muito complicada porque tínhamos de caminhar ao longo de um algeroz, que era muito estreitinho e o muro de protecção dava-nos abaixo do joelho. Aquilo era altíssimo e muito perigoso, mas conseguimos escapar.
Tornei-me num especialista da clandestinidade e, para mim, a traição mesmo sob tortura, esteve sempre excluída
RS – E depois, novamente, no Aljube, em 1959. Foi apanhado após uma correria a fugir dos PIDES que o perseguiram pelas ruas de Lisboa…
CB – Sim, levaram-me para o Aljube onde dormi duas noites no chão, sem mais nada, antes de me transferirem para Caxias e depois para Peniche. Em Caxias, eu e mais três camaradas estávamos a preparar uma fuga vestidos de guardas republicanos, em fatos de trabalho de ganga e já tínhamos até os bivaques, que conseguimos fazer entrar na cadeia, com a roupa. Estava tudo preparado, mas, entretanto, deu-se a fuga de Cunhal em Peniche, e a PIDE apertou a vigilância e a repressão em todas as cadeias, o que fez abortar a fuga. Fui então transferido para Peniche.
RS – Em Peniche, esteve lá sete anos…
CB – Sim, sete anos, dos quais mais de dois em completo isolamento que, mais do que a porrada e a tortura do sono, foi para mim, o mais difícil de tolerar. Estar numa cela, acompanhado apenas pelos seus pensamentos e em total solidão, foi o mais terrível!
RS – E o que é que fazia?
CB – Fazia bonecos… mas a certa altura, comecei a dizer em voz alta os meus poetas, como o O’Neill e outros que eu sabia de memória, fazendo recitais e isso era muito bom, porque exercitava as cordas vocais e a memória. Às tantas, de rompante, entra o guarda que quase cai em cima de mim: “mostre cá o que tem”- os gajos estavam convencidos que eu tinha um rádio e estava a transmitir para qualquer lado… “Eu não tenho nada”, disse eu, e eles: “ah! então fala sozinho?” – Sim, respondi, “estou a recitar poesia, não posso?”. -“Pode”, mas mais baixinho.” Mas não me deixou cantar: “o menino não pode cantar. É proibido cantar”.
RS – Já disse que a pior tortura, para si, foi o isolamento…
CB – Sim, o isolamento prolongado e quando cheguei a Peniche, apreenderam-nos os livros e só podíamos ter livros escolares. Claro que isso deu grande barulho e discussão sobre o que são livros escolares e o que não são. Chegámos a um consenso e cada um estabeleceu um plano de leituras e esse plano de leituras foi discutido e aprovado. Eu escolhi o século XIX, livros sobre a história do pensamento democrático, a revolução liberal de 1820 no nosso país até a revolução republicana, porque eles achavam que aquilo era história e não era política.
RS – A tortura requer seguramente uma enorme exigência, coragem física e uma grande firmeza ideológica para não ceder. Onde é que nessas alturas se vai buscar a força interior para se resistir à brutalidade?
CB – Pois…
RS – Já disse que à poesia, à sua memória e à leitura, mas mesmo assim, é preciso muito mais do que isso…
CB – Pois… firmeza nas convicções políticas, coragem física, psicológica e moral…. Coragem, que nesta zona de fronteira recebemos da mentalidade do contrabandista com quem aprendemos, por exemplo, nunca trair os camaradas. É uma coisa de dentro, para mim não era esforço nenhum. A traição para mim era uma questão que estava completamente excluída. Uma realidade nunca considerada!
RS – Nunca pensou quando esteve preso, que podia não sair de lá vivo?
CB – Isso é o ponto principal, estar preparado para essa possibilidade.
RS – E como é que era viver com esta iminência da morte, porque uma das técnicas da PIDE era precisamente a construção da iminência da morte para levar a pessoa a ceder?
CB – Eu tinha de pensar que iria conseguir superar tudo e sair dali vivo, mas uma pessoa prepara-se para o pior também.
RS – Portanto, convivia bem com essa ideia?
CB – Eu sobrevivi bem…
RS – Ficou com alguma sequela física da tortura?
CB – Não, não… mas alguns dos meus camaradas, submetidos à tortura do sono, ficaram com muitas perturbações.
RS – Aconteceu alguma vez um agente da PIDE ter sugerido que se passasse para o lado deles e abandonasse a luta política, seria libertado?
CB – Digamos, que tudo o que eles faziam compreendia sempre essa ideia dizendo: o senhor está aí há três dias sem dormir e basta uma palavra sua e esse sofrimento desaparece. Só uma palavrinha.
RS – Só dependia de si…
CB – Esse tal Boim Galvão dizia-me essas coisas e eu começava a rir… “Estás a rir, não falas?” e ameaçava: “vou meter-te nos curros do Aljube.
RS – Ao todo, esteve oito anos nos cárceres da PIDE, não é?
CB – Sim, e dez anos na clandestinidade. Houve um período em que eu controlava a organização de Lisboa e Baixo Ribatejo, mas morava no Porto. Havia uns camaradas do Porto que me traziam para Lisboa, e eu depois para regressar ao norte, era de noite, ia no wagon lit, que era frequentado quase exclusivamente por gente doutorada e engravatada. Eu entrava no comboio igualmente bem vestido, e o cobrador cumprimentava-me respeitosamente e soltava um: “boa noite, Sr. Engenheiro”, sem suspeitar quem eu fosse. Tornei-me num especialista da clandestinidade e passei a aconselhar os mais novos: “façam assim, façam assado” e eles escutavam a voz de uma pessoa experiente e com provas dadas.
RS – Na clandestinidade não tinha atividade profissional, apenas vida política, como é que sobrevivia… quem é que lhe pagava as suas despesas?
CB – Era o partido.
RS – Teve conhecimento alguma vez de agentes duplos ou infiltrados?
CB – Alguns puseram-se ao serviço da PIDE depois de presos. Houve um que apareceu morto mais tarde.
RS – Houve algum momento em que sentiu que foi denunciado?
CB – Sim, muitas vezes.
RS – E sabia quem era?
CB – Sim, nalguns casos soube.
RS – Nas suas andanças de terra em terra, de casa em casa, escondido, a sua mãe sabia de si?CB – Não.
RS – Nunca soube?
CB – Não.
RS – Como é que apaziguava a saudade da mãe e a sua preocupação?
CB – Tenho um poema que é dedicado a ela e que termina assim:“A voz da minha mãe que sabia calar as suas queixas para não aumentar os meus remorsos”.
RS – A sua mãe morreu antes do 25 de Abril?
CB – Não, não, morreu depois. Viu-me chegar!
RS – Grande alegria!…
CB – Pois… é aí que eu lhe perguntei “Ó mãe, então e tu? Ah Tudo bem.” E chorámos abraçados de emoção e alegria!…
RS – Ela estava em Vila Real de St António?
CB – Sim, mas houve um período em que ela, quando eu fui para Caxias, foi morar em Caxias, quando fui para Peniche mudou-se para Peniche, sempre para estar perto de mim..!
RS – Grande mulher e uma mãe enorme!
CB – (Emociona-se, lábios trémulos com as lágrimas a bailarem-lhe nos olhos)
RS – Ela também era uma resistente…
CB – …(silêncio)…
RS – Nunca foi tentado a gozar um pouco da vida sem as exigências da clandestinidade ou as obrigações da disciplina partidária?
CB – Sim, na altura da substituição do Cunhal e em que foi eleito outro camarada do partido para o seu lugar.
RS – Nunca pensou em ser você, o sucessor?
CB – Não. Numa entrevista à TSF perguntaram-me se eu gostaria de ser secretário-geral do PCP, e eu disse “não, não gostaria”.
RS – Nunca pensou em alimentar essa ideia?
CB – Não. Sempre tive outros projetos. E o Cunhal embora soubesse disso, até admitiu… mas nada que eu considerasse.
(Segunda parte na próxima edição papel)
Nota – Na próxima edição de 6 de novembro, pode ler a segunda parte desta entrevista, que inclui: o primeiro encontro com Álvaro Cunhal, a desilusão e o abandono, os amores clandestinos e a atualidade política.
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